EUA: Da estruturação do mundo no pós-Guerra
Fria à ordem multipolar
Após o fim da Guerra
Fria, os Estado Unidos reivindicam para si e de maneira unilateral a tarefa de
“estruturar o mundo”, o que passa pela “capacidade de enfrentar qualquer ameaça
aos seus interesses em qualquer parte do mundo e a construção de uma ordem
econômica liberal global (a chamada globalização econômica)”.
A expansão da OTAN, a
colocação de bases militares estadunidenses e a imposição de políticas
econômicas neoliberais (Terapia de Choque) mundo afora fazem parte desta
estratégia de manter os demais países sob rédeas curtas.
Mas toda ação gera uma
reação, o que vale também para as questões geopolíticas. Rússia e China,
temendo as ameaças representadas pelos Estados Unidos, dão passos
significativos de aproximação e articulação, rompendo com a ordem unipolar
imposta na década de 1990 pelos EUA, com a consequente “fragmentação desta
ordem do ponto de vista político e seu reflexo sobre os ordenamentos
econômicos, monetários e financeiros” e a instauração de uma nova ordem: a
ordem multipolar.
As reflexões são de
Maurício Metri feitas durante a sua fala que deu sequência, no dia 11 de maio,
à série de debates [online] Questões do Antropoceno, abordando o tema Mundo em
guerra: fragmentação, conflitos e riscos existenciais. A iniciativa do CEPAT
conta com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU; do
Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES; do
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá – UEM e do
Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB.
Mauricio Metri é
professor associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em
Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de Economia da UFRJ. É doutor,
mestre e graduado em Economia pelo Instituto de Economia da UFRJ. Coordenador
do Laboratório Orti Oricellari de Estudos em Economia Política Internacional,
vinculado ao IRID-UFRJ e ao PEPI-UFRJ. Membro do Grupo de Pesquisa Poder Global
e Geopolítica do Capitalismo vinculado ao PEPI-UFRJ e CNPq.
Metri começou sua
exposição fazendo referência a um acontecimento recente, do início do mês, que,
segundo ele, aponta para o que está em jogo hoje. O presidente da China, Xi
Jimping, esteve na Sérvia, em visita a Belgrado, e uma das razões da visita
foram os 25 anos do bombardeio da OTAN à Sérvia. E neste bombardeio, a
embaixada chinesa foi alvo do ataque e destruição. Já na época houve
publicações de jornalistas importantes que mostravam que este incidente não foi
um ato acidental, como alegou o governo dos Estados Unidos. Na verdade, existiu
ali uma intenção deliberada.
É bem significativo
que o presidente da China faça uma viagem à Sérvia e faça questão de sublinhar
este atentado ocorrido há 25 anos. Em março de 1999, aconteceu o primeiro passo
do processo de expansão da OTAN, o qual foi seguido pelo bombardeio da Sérvia
sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia e a China já
tinham manifestado sua contrariedade.
Ponto de inflexão
O que é importante
perceber, segundo Metri, é que esta conjuntura do final do século é um ponto de
inflexão e que nos ajuda a compreender o que está acontecendo hoje no mundo.
Ponto de inflexão em relação a uma ordem que foi anunciada em 1991, em razão do
fim da Guerra Fria, uma nova ordem mundial anunciada pelos EUA em função da sua
vitória na disputa geopolítica com a União Soviética. Existe – diferente de
outras disputas de outras potências em que ocorreram negociações de paz,
tratados de paz – neste conflito, embora não tenha ocorrido nenhuma
confrontação direta, um documento oficial dos EUA em que eles, como vencedores,
reivindicam para si a estruturação do mundo no pós-Guerra Fria.
Este é um documento
rotineiro publicado pela Casa Branca, neste caso sob a administração do Bush
pai. E o documento é muito explícito em relação às intenções de como os EUA
queriam estruturar o mundo, e de fato o organizaram. Este documento apresenta
dois pontos fundamentais: a capacidade de enfrentar qualquer ameaça aos seus
interesses em qualquer parte do mundo e a construção de uma ordem econômica
liberal global (a chamada globalização econômica).
Dentro destas duas
linhas principais existem três diretrizes básicas e um ângulo cego, analisa
Metri. A principal diretriz que ali constava era que a Rússia continuaria sendo
a principal ameaça aos EUA e à ordem centrada em Washington. Isso porque, a despeito
do processo de colapso do bloco soviético, a Rússia ainda seria detentora de um
importante arsenal atômico. E a implosão do bloco soviético tornou, naquele
momento, a Europa Central do Leste o tabuleiro prioritário da disputa e de
projeção do poder estadunidense. E apontou também a ideia de guerras
preventivas.
E tem um ângulo cego
nesta doutrina que diz respeito à China. Naquele momento, a China não era
percebida como uma ameaça aos interesses dos EUA; o problema maior era a
Rússia. E em relação à Rússia, que saiu da Guerra Fria derrotada, nada muito
diferente do que a história ensina em relação aos tratados de paz, ao
pós-guerra, às ordens que nascem depois de um período de confrontação, no caso,
de uma confrontação indireta.
• Terapia de Choque e expansão da OTAN
Com o débâcle da União
Soviética, a Rússia teve perdas territoriais, sofreu guerras separatistas
fomentadas por potências estrangeiras, e o mais simbólico de tudo foi a
imposição de um programa econômico que se convencionou chamar de Terapia de
Choque. Na verdade, foi uma violência bastante significativa em termos de
reorganização da vida econômica interna, cujos resultados são impressionantes.
Tem-se de 1990 a 1998 uma diminuição do PIB real em 51%. Em termos sociais, a
população pobre em 1988 na União Soviética era de 2% e passou para 39% da
população russa em 1995. Foi um verdadeiro desastre social e econômico. Vale
lembrar que a Terapia de Choque foi coordenada por economistas ocidentais, que
tinham como objetivo central a desestruturação da economia russa.
Simultaneamente, houve
um processo de expansão da OTAN. A despeito da vitória na Guerra Fria, os EUA
acharam por bem manter a OTAN em funcionamento, e não só mantendo-a como
fomentando a sua expansão, uma vez que a Rússia continuava a ser vista como a
principal ameaça à ordem internacional, à sua segurança e aos seus interesses.
De 1990 a 2020, a OTAN saltou de 16 membros para cerca de 30. E hoje, as
distâncias entre as fronteiras da OTAN e as principais cidades da Rússia – São
Petersburgo e Moscou – são relativamente curtas: respectivamente 130 km e 580
km.
• EUA abandonam o Tratado sobre Mísseis
Antibalísticos
Outro elemento de suma
importância, na análise de Metri, é o abandono, por parte dos Estados Unidos e
de maneira unilateral, do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos, de 1972, que
implicava o não desenvolvimento de sistemas defensivos contra os mísseis balísticos.
Isso quer dizer que, se uma vez uma potência conseguiu construir um sistema
antimísseis, torna inócua a capacidade ofensiva dos seus adversários.
Neste sentido,
recriar-se-ia a vantagem estratégica de que os EUA desfrutaram em 1945 quando
de fato bombardearam o Japão com duas armas nucleares. Portanto, em 2002, os
EUA romperam este acordo e passaram a desenvolver sistemas antibalísticos, uma
tentativa de tornar o arsenal russo inócuo perante uma tentativa de ataque
estadunidense.
Em resumo, a partir
desta conjuntura dos anos 1990, o que se percebeu é a expansão da OTAN, uma
estrutura militar global que segue viva até hoje.
Atualmente, os EUA
dispõem de 750 bases militares fora do seu território nacional, um verdadeiro
império militar global. Nos últimos 30 anos, os EUA fizeram uma cronologia de
guerras que impressiona. De 1990 a 2020, fizeram 47 guerras ou intervenções militares,
o que dá uma média de uma guerra a cada 7 meses durante 30 anos. Algumas dessas
guerras duraram duas décadas, como a guerra do Afeganistão (2001-2021).
Este é, pois, o mundo
do pós-Guerra Fria. É uma tentativa de criar uma ordem unilateral e
centralizada em Washington.
• Quem financia esta nova ordem mundial
militarista estadunidense?
Mas quem financia este
processo? Para surpresa de muita gente, não são os cidadãos estadunidenses, mas
os cidadãos do mundo inteiro. Por quê? Porque a construção de uma ordem liberal
pós-1991 apresenta alguns fenômenos importantes: uma expansão desmesurada dos
fluxos de capitais que passaram a contar com uma enorme liberdade de
movimentação, e neste mundo marcado por uma desregulamentação e uma
liberalização financeira, o resultado é uma enorme pressão sobre as economias
nacionais e até mesmo sobre os agentes econômicos que cooperam a nível
internacional. Tudo isso multiplicou as crises econômicas nos últimos 30 anos
decorrentes de ataques especulativos ou de bolhas em mercados de capitais.
Diante deste quadro de
desregulamentação financeira, a principal estratégia para todos os países e os
principais agentes econômicos que atuam internacionalmente passou a ser
acumular reservas denominadas em dólar, sobretudo títulos da dívida pública
americana. Porque este passou a se constituir no principal elemento que
permite, no caso dos bancos centrais, evitar no mercado de câmbio os ataques
especulativos.
Em decorrência, se o
mundo passa a entesourar sem limite aparente ativos denominados em dólar,
sobretudo títulos da dívida pública estadunidense, o que acontece do ponto de
vista do Estado americano é uma capacidade de emissão de títulos em uma
capacidade de endividamento e gasto absolutamente desproporcional a qualquer
outro país.
Assim, prossegue
Metri, não é difícil perceber que os EUA conseguiram construir um sistema
monetário internacional que funciona na prática como um mecanismo de extorsão,
porque se os países são compelidos a entesourar títulos da dívida pública
estadunidense para poderem se inserir nesta ordem internacional, a consequência
disso é uma capacidade de gasto e endividamento da autoridade americana que lhe
permite sustentar, entre várias outras coisas, um complexo industrial e militar
absolutamente gigantesco, uma cronologia de guerras de 30 anos, a maior aliança
do planeta que não para de se expandir (a OTAN) e uma descomunal estrutura de
bases militares mundo afora.
• Reação da Rússia e da China
Diante deste contexto,
não é difícil perceber a posição da Rússia e da China frente a essa projeção e
pressão dos Estados Unidos. E tem uma regra que a longa história nos ensina e
que nos mostra que esta situação atual não é nova. Ou seja, tornou-se um imperativo
a Rússia e a China, que são os principais alvos da projeção estadunidense,
reagirem a este processo e formarem uma aliança contra o que sentem também como
ameaça.
E, para ilustrar este
ponto, Metri apresenta dois fatos históricos: 1º) quando Luís XIV começou suas
cronologias de guerra, enquanto teve (Jean-Baptiste) Colbert como assessor nas
suas primeiras guerras, conseguiu evitar uma projeção excessiva da França que
empurrasse outros atores a uma aliança antifrancesa. Mas bastou Colbert morrer
durante a Guerra dos 9 anos (também conhecida como Guerra da Grande Aliança),
no final do século XVII, para que a máquina de guerra do monarca francês
passasse a operar numa lógica de ir contra todos. E quanto mais persistiu nessa
lógica, mais empurrou os outros atores a uma lógica antifrancesa.
2º fato) outra
situação é quando o chanceler (Otto von) Bismarck, no final do século XIX, após
a unificação da Alemanha, operou uma política externa evitando uma aliança
antigermânica dentro da Europa. Mas bastou a ascensão do imperador Guilherme II
para destituir Bismarck e colocar a Alemanha numa lógica militarista,
expansionista, preparada para uma guerra contra todos os europeus numa aliança
de países de outras potências. E o resultado é a formação de uma aliança
impensável naquele tempo entre a França, a Inglaterra e a Rússia.
• “Um erro fatal”
Voltando à questão
atual, não é de se estranhar, portanto, que diante da posição dos Estados
Unidos se arme uma aliança contra essa ordem militar estadunidense unipolar. Já
em 1997,ou seja, dois anos antes da expansão da OTAN, o mais importante
diplomata americano do pós-Segunda Guerra, George Kennan, formulador da
política de contenção, escreveu um artigo no New York Times intitulado “Um erro
fatal”, no qual já havia identificado este processo.
Na visão de Kennan, se
os EUA seguissem uma lógica expansionista, empurrariam a Rússia a uma postura
nacionalista, militarista, antiocidental e que buscasse convergências com
outros atores que também pudessem se sentir pressionados pelos Estados Unidos. E
foi exatamente neste erro que os EUA incorreram logo depois, como mostram os
fatos acima narrados. E no início deste século, a China e a Rússia começaram a
resgatar uma série de iniciativas e a aprofundá-las.
O mundo caminha para
uma ordem política fragmentada. Ao mesmo tempo, a economia internacional vai
responder a esta fragmentação política criando uma ordem multipolar.
• Tabuleiros de militarização dos Estados
Unidos
No entanto, adverte
Metri, nos últimos anos, os Estados Unidos vêm apostando numa lógica militar,
em detrimento da lógica diplomática para a resolução de conflitos. E isso
fundamentalmente em três tabuleiros.
1. Guerra na Ucrânia.
A Ucrânia tornou-se um elemento central, um espaço de disputa, para Estados
Unidos, Atlântico Norte e a Rússia, devido à sua posição geopolítica. Moscou
teme que a Ucrânia entre no guarda-chuva da OTAN, aproximando seu raio de influência
ainda mais para perto de suas fronteiras, o que Moscou não toleraria. Moscou
sempre estabeleceu que a Ucrânia nunca poderia entrar na OTAN, dada a pressão
que isso significa para a sua segurança.
Kissinger, em 2014,
defendeu a transformação da Ucrânia em zona neutra, como era a Finlândia até
recentemente. Infelizmente, a decisão de Washington foi provocar a guerra, com
incidentes que remontam, segundo Metri, pelo menos, a 2014 (deposição de um governo
pró-Moscou e apoio a um pró-Washington).
A Alemanha, sob Angela
Merkel, começou a estabelecer parcerias estratégicas com a Rússia, sobretudo na
questão energética com a construção do gasoduto Nord Stream. Esta relação é um
dos elementos de uma espécie de interdito geopolítico consagrado há muito
tempo. Do ponto de vista do Atlântico Norte não pode haver uma parceria
estratégica entre Berlim e Moscou, interdito que está na estruturação da
criação da própria OTAN. De acordo com um dos seus idealizadores, a OTAN serve
para manter os Estados Unidos dentro da Europa, a Rússia fora da Europa e a
Alemanha agachada. Este é um princípio muito caro.
A guerra da Ucrânia e
o gasoduto Nord Stream recolocaram o fosso entre a Alemanha e a Rússia. A
guerra, do ponto de vista dos Estados Unidos, cumpre um papel importante, mesmo
sabendo que não a vencerão no campo de batalha contra a Rússia devido a uma revolução
na arte da guerra. A tentativa de militarização da Ucrânia empurrou a Rússia
para uma intervenção numa linha vermelha que ela já tinha sinalizado e que
parte da elite americana já havia percebido que o resultado seria este (vide
Kennan e Kissinger).
2. Mar do sul da
China. Este é outro tabuleiro onde os Estados Unidos apostam na militarização,
com destaque para Taiwan, onde se encontram dois cinturões de bases militares
americanas que remontam aos anos 1950 para bloquear a saída da China aos mares.
Neste contexto, a iniciativa chinesa da Rota da Seda é uma tentativa
geoeconômica que responde a uma geopolítica que se deu pelo bloqueio dos
Estados Unidos à saída da China aos mares. Portanto, o que ali acontece é uma
crescente militarização promovida e financiada por Washington.
3. Oriente Médio. Mas
o tabuleiro mais dramático está no sudoeste asiático em razão do genocídio
israelense do povo palestino em Gaza. Israel é um instrumento dos interesses
geopolíticos dos Estados Unidos nesta região, em que o principal desafio dos
EUA é o Irã. No ano passado, o Irã entrou na Organização para Cooperação de
Xangai, que é uma organização de cooperação militar coordenada por Moscou e
Pequim. Além disso, também no ano passado, entrou nos BRICS, e a China mediou a
restauração das relações diplomáticas entre Teerã (Irã) e Riad (Arábia
Saudita), que estavam interditadas desde 2016. E a Arábia Saudita também entrou
nos BRICS.
Portanto, do ponto de
vista dos Estados Unidos, é do seu interesse a militarização, a crescente
escalada da violência no tabuleiro do Oriente Médio de forma a acentuar
rivalidades e financiando o genocídio israelense. O Irã é o principal ente do
que se convencionou chamar de Eixo da Resistência, que articula o Hamas, o
Hezbolah, forças de resistências na Síria contra o Estado Islâmico e as forças
de resistências no Iraque contra as posições estadunidenses neste território.
Neste sentido, o Irã
tem uma participação absolutamente chave nestas tensões e rivalidades que estão
nesta configuração geopolítica do sudoeste asiático. Vale lembrar que o Irã
mostrou, nas últimas semanas, uma capacidade militar ofensiva efetiva que não
havia mostrado desde 1979, ao atingir duas bases militares israelenses. A
correlação de forças mudou completamente no Oriente Médio por conta destes
acontecimentos recentes na região, na análise de Metri.
• Resolução dos conflitos via
militarização ou diplomacia?
Sintetizando, a OTAN
não vai assistir imóvel a esse quadro de capacidade de reação defensiva de um
eixo que está articulando cada vez mais Moscou, Pequim e Teerã. Haverá,
portanto, uma reação desse eixo, o que já está acontecendo, o que nos coloca
diante de dois caminhos: prevalece o grupo mais ligado ao pensamento militar;
mas existe a esperança de que prevaleçam os canais diplomáticos.
Mas em ambos os casos,
a fragmentação já é um processo inevitável, ou seja, já vivemos em uma ordem
multipolar – a Rússia e a China já têm autonomia sobre seus espaços e conseguem
defender seus interesses estratégicos frente à pressão do Atlântico Norte. E a
tendência que o mundo tem apontado é para a fragmentação desta ordem do ponto
de vista político e seu reflexo sobre os ordenamentos econômicos, monetários e
financeiros.
Fonte: IHU
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