sábado, 1 de junho de 2024

Giovanni Alves: Natureza e trabalho

Entre 22 e 27 de maio de 1875, as duas correntes do movimento operário alemão: o Partido Operário Social-Democrata, dirigido por August Bebel e Wilhelm Liebknecht, e a União Geral Operária Alemã, dirigida por Hasenclever, Hasselmann e Tolcke, celebraram sua unificação num congresso na pequena cidade alemã de Gotha. Os dois partidos desejavam se unir para poder enfrentar o poderoso chanceler alemão Otto Von Bismarck.

O Congresso de Gotha pôs fim à divisão nas fileiras da classe operária do país. O projeto de programa do partido unificado foi submetido a uma aguda crítica por Karl Marx que escreveu no começo de maio de 1875, as Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão. O que nos interessa, num primeiro momento, é a crítica feita por Marx à frase de abertura do Programa do novo Partido Operário Alemão. A frase é a seguinte: “O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura”.

De forma categórica, Marx contesta tal proclamação dizendo: “O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é tanto a fonte dos valores de uso (e é bem nestes que, todavia, consiste a riqueza material [sachlich]!) como o trabalho, que não é ele próprio senão a exteriorização de uma força da natureza, a força de trabalho humana”.

Marx é incisivo: o trabalho não é a fonte de toda a riqueza. Ele pode até aceitar esta frase “desde que ela subentenda que o trabalho se realiza com os objetos e os meios a ele pertencentes”.

Na verdade, Marx vincula a categoria trabalho à questão do controle social e da propriedade dos meios de produção. A frase está correta desde que o trabalho se realize numa sociedade socialista em que os objetos e meios pertencem aos produtores associados: “Aquela frase encontra-se em todos os manuais infantis e está correta se se subentender que o trabalho se processa com os objetos e meios pertinentes”.

Discutir o trabalho sem fazer a crítica do capital é render-se à ideologia burguesa. O capital aliena o trabalho da Natureza. Alienado da Natureza, o trabalho não pode ser fonte de toda a riqueza e de toda a cultura. Antes, o trabalho precisa se emancipar do capital.

Mas vejamos a frase no original em alemão: “Die Arbeit ist die Quelle alles Reichtums und aller Kultur”. A palavra alemã “Quelle” significa “fonte” ou “nascente” em português. Sua origem etimológica vem do proto-germânico “kwellaz“, que significa “brotar, fluir”. Assim, “Quelle” é um termo comum na língua alemã para se referir a uma fonte natural de água que brota do solo.

Portanto, “O trabalho é fonte de toda riqueza e toda cultura” – de imediato – parece correta, mas não é. A incorreção da frase não é apenas política, mas semântica. A frase induz a confusão semântica entre “fonte” e “mediação”. A frase correta seria: “É por meio do trabalho que se produz toda riqueza e toda cultura”. Trabalho – portanto – não é a “fonte”, mas a “atividade mediadora” da produção social. Nesse caso, utilizando “trabalho” enquanto “utilização da força de trabalho” ou ainda “atividade orientada a um fim”, ou ainda, trabalho como “criador de valores de uso, como trabalho útil, […]uma condição de existência do homem, independente de todas as formas sociais, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (Ibidem.p.120).

É verdade que a frase se encontra – como diz Marx – “em todos os manuais infantis” do movimento operário. Isto é, tal frase se encontra nos primórdios – primeiros passos – do movimento da classe trabalhadora (o que explica o sentido de “infantis”. Por exemplo, eis a frase de abertura dos Princípios Fundamentais de uma proclamação da associação cooperativa de tecelões de Pipponden (Inglaterra) em 1832, relatada por E.P. Thompson (1987: 396-397): “Primeiro. Que o trabalho é a fonte de toda a riqueza: por conseguinte, as classes trabalhadoras criaram toda a riqueza. Segundo. Que as classes trabalhadoras, embora as produtoras de riqueza, ao invés de serem as mais ricas, são as mais pobres da comunidade: portanto, não podem estar recebendo uma recompensa justa pelo seu trabalho”.

•        Crítica da fraseologia burguesa

Marx fundamenta sua crítica nos seguintes termos: “O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza [die Natur] é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana” (Marx, 2012: 23).

A riqueza material [sachlich] são os valores de uso, produto (ou não) do trabalho humano. Mas a Natureza é a fonte da riqueza material [sachlich] e do próprio trabalho que as produziu. Na verdade, o trabalho é a “exteriorização de uma força da natureza” [die Äußerung einer Naturkraft], a força de trabalho humana.

Distinguimos alhures, natureza produzida [valores de uso] e natureza constituída [trabalho vivo ou a força de trabalho], sendo isto o que Marx destacou acima quando faz referência à riqueza material e ao trabalho (a exteriorização de uma força da Natureza), respectivamente. Mas, a crítica de Marx ao Programa de Gotha não é uma crítica academicista, mas sim uma crítica política. Marx exige rigor científico nas formulações programáticas do partido revolucionário sob pena de render-se às fraseologias burguesas: “Mas um programa socialista não pode permitir que tais fraseologias burguesas possam silenciar [verschweigen] as condições que, apenas elas, dão algum significado a essas fraseologias. Apenas porque desde o princípio o homem se relaciona com a natureza [Natur] como proprietário, a primeira fonte de todos os meios e objetos de trabalho, apenas porque ele a trata como algo que lhe pertence, é que seu trabalho se torna a fonte de todos os valores de uso, portanto, de toda riqueza” (Marx, 2012: 23-24).

A natureza — a primeira fonte de todos os meios de trabalho e objetos de trabalho – diz respeito às condições objetivas e subjetivas do trabalho [natureza produzida e natureza constituída]. É a relação dos humanos para com a Natureza – se eles são proprietários/controladores dela ou não – que dá efetivamente sentido à atividade do trabalho. Quando inserimos nesta equação a categoria força de trabalho (“a exteriorização de uma força da natureza”), entendemos porque uma Natureza alienada faz estranhar [Entfremden] o sentido do trabalho na medida em que ele – o trabalhador – é parte dela. Portanto, a verdadeira crítica do capital é a crítica da Natureza alienada – incluindo o próprio trabalho humano como força natural. A verdadeira emancipação do trabalho é a emancipação da natureza – e vice-versa.

Por que considerar o trabalho como a fonte de toda riqueza, é uma fraseologia burguesa [bürgerlichen Redensarten]? Diz Marx: “Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho essa força sobrenatural de criação [übernatürliche Schöpfungskraft]; pois precisamente do condicionamento natural do trabalho segue-se que o homem que não possui outra propriedade senão sua força de trabalho torna-se necessariamente, em todas as condições sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriaram das condições objetivas do trabalho [gegenständlichen Arbeitsbedingungen]. Ele só pode trabalhar com sua permissão, portanto, só pode viver com sua permissão.” (Marx, 2013: 24).

Marx afirma que os burgueses têm “excelentes razões” para proclamarem que o trabalho é a fonte de toda a riqueza, retratando-o como uma “força sobrenatural de criação”. No entanto, ao ocultarem sua propriedade e controle sobre a Natureza, incluindo a força de trabalho, os burgueses encobrem – ocultam ou ficam silenciados sobre [verschweigen] – a verdadeira Natureza (as condições objetivas quanto subjetivas do trabalho). Por isso, cabe ao movimento operário “quebrar o silêncio” sobre a necessidade política dos trabalhadores se tornarem verdadeiramente a fonte de toda a riqueza, re-apropriando-se da natureza.

Deixar de lado a discussão da propriedade/controle das condições objetivas/subjetivas da produção social é tornar o trabalho uma “força sobrenatural de criação”, pois “criar” do nada é algo…sobrenatural. A burguesia – os proprietários das condições objetivas do trabalho –, também domina as condições subjetivas (a força viva do trabalho, a vida do trabalhador) na medida em que, devido à alienação dos trabalhadores da Natureza, “só pode trabalhar com a autorização deles, portanto, só pode viver com a autorização deles”. É interessante que Marx – em 1875 – repõe de forma mais mediada por meio das categorias da economia política – a sua crítica do trabalho estranhado elaborada por ele nos idos de 1844 (o que demonstra que é falso conceber um “corte epistemológico” entre o jovem Marx e o Marx maduro: o que existe é um aprimoramento crítico).

Vejamos com mais atenção a questão da natureza e do trabalho. Não se trata de mera discussão escolástica, como são a maioria das discussões feitas entre marxistas e a letra escrita de Marx, mas sim de uma discussão política fundamental, tendo em vista que vivemos na era do colapso ambiental e das contradições metabólicas do capital.

•        Natureza e trabalho

Em primeiro lugar, o trabalho é atividade mediativa. Dizer “trabalho” significa dizer – na perspectiva de Marx – “umacondição de existência do homem, independente de todas as formas sociais, eterna necessidade natural de mediaçãodo metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (Marx, 2013: 120).

Marx diz “uma condição de existência do homem” – a outra condição é a natureza. Ele diz também sobre o trabalho: “eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza”. Nesse caso, trabalho é atividade de mediação – eterna – e “necessidade natural”, isto é, a força da Natureza que faz a mediação da atividade humana com o mundo exterior.

Façamos digressões sobre a categoria de trabalho e a sua dialética com a natureza nesta passagem do Capítulo 5 de O capital: “O trabalho é, antes de mais, um processo entre homem e natureza, um processo em que o homem medeia, regula e controla a sua troca material com a natureza através da sua própria ação. Ele faz face à própria matéria da natureza como um poder da natureza. Ele põe em movimento as forças da natureza que pertencem à sua corporalidade – braços e pernas, cabeça e mão – para se apropriar da matéria da natureza numa forma utilizável para a sua própria vida. Ao atuar, por este movimento, sobre a Natureza fora dele e ao transformá-la transforma simultaneamente a sua própria natureza. Desenvolve as potências nela adormecidas e submete o jogo das suas forças ao seu próprio domínio. Não estamos aqui a tratar das primeiras formas de trabalho, animalescamente instintivas” (Marx, 2013: 255).

Essas passagens são bastante ricas e iremos comentá-las: (i) “O trabalho é, antes de mais, um processo entre homem e natureza”. Marx diz “processo”, mas pode-se dizer também “metabolismo” [stoffwechsell], que é processo e interação: troca de matéria.

(ii) […] um processo em que o homem medeia, regula e controla a sua troca material com a Natureza […]”. Marx coloca três categorias importantes: mediar, regular e controlar. Pode-se mediar, sem regular e controlar; pode-se regular, sem controlar; o controle é a categoria fundamental para que o sujeito que trabalha supere a alienação/estranhamento/fetichismo do capital. O socialismo é a forma social que se caracteriza pelo controle que o trabalho exerce na sua troca material com a natureza. Não basta, portanto, só mediar e regular, pois isso pode ocorrer sob o capitalismo, mas sim, controlar a troca material com a Natureza (Natureza com “N” maiúsculo [Natur] – quer dizer: um conceito ampliado de Natureza..

O texto fala em “troca material” – isto é, troca objetiva-subjetiva, troca prático-sensível-espiritual. O conceito de “material” é – neste sentido – amplo. Assim, o controle que os humanos devem exercer sobre a troca material, implica estes vários aspectos da atividade humana.

(iii) “Ele faz face à própria matéria da Natureza como um poder da natureza”. Nesta frase, a dialeticidade do pensamento marxiano é visível. Noutra tradução – mais clara – lemos: “Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural” (Marx, 1996: p.297). Nesta última tradução, onde se lê “poder da Natureza” (com “N” maiúsculo), lê-se “força natural” – neste caso, perde-se o sentido de que a Natureza é um poder com a qual os humanos se defrontam. A “matéria natural” é uma força, um poder com a qual nós nos defrontamos.

Não nos esqueçamos que – como iremos ver adiante – os humanos são parte da Natureza (“ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade[…]”). Portanto, Natureza não diz respeito apenas à natureza externa, mas existe também uma natureza interna face a qual os humanos se defrontam (corpo e mente = subjetividade). Assim, podemos dizer que “os humanos se defrontam com sua própria natureza interna [corpo e mente] como um poder da Natureza”.

(iv) “[…] as forças da natureza que pertencem à sua corporalidade […]”

Eis o ponto: as forças naturais ou as forças da natureza dizem respeito também à sua corporalidade. Marx utiliza um conceito ampliado de “corpo”, incluindo nele braços e pernas, cabeça e mão. Corpo é tudo aquilo que é movimentado – físico-espiritualmente – pelo trabalho (a utilização da força de trabalho). A idéia de Natureza no sentido ampliado – que temos utilizado – torna-se mais visível. Deste modo, torna-se mais fundamental a necessidade do controle social sobre a natureza como forma de restaurar a “fratura metabólica” (um tema que discutimos alhures).

(v) “[…] Ao atuar, por este movimento, sobre a Natureza fora dele e ao transformá-la transforma simultaneamente a sua própria natureza.[…]”. A dialética natureza – humanos está exposta nesta frase: a “natureza fora dele” (ou a ‘natureza externa a ele”, noutra tradução) é a natureza exterior a partir do qual os humanos – ao se defrontarem por meio da atividade do trabalho – transformam (sem o saber?) a sua própria natureza (o que entendemos como natureza interior, mente e corpo, ou corpo na acepção ampliada de Marx). Na verdade, natureza externa e natureza interna compõem o movimento da objetividade e subjetividade do trabalho.

Podemos considera-las una (a natureza)? Sim e não.

Sim, pois o colapso ambiental demonstra que a degradação da Natureza é outro modo de explicitação da degradação dos humanos na medida em que ambos compõem o sociometabolismo do capital.

Não, pois a natureza externa tem suas legalidades específicas, leis da matéria natural – como disse Marx. A matéria natural tem “potencias nela adormecidas” que os humanos precisam conhecer para transformá-la, enfim, entender “o jogo de suas forças” para fazer o trabalho.

Podemos estender tal entendimento não apenas para a natureza externa, mas também para a natureza interna, a natureza da subjetividade – ou melhor, da práxis social, política, histórica – com suas legalidades próprias às quais os humanos se defrontam e que precisam entender o “jogo dessas forças” para que possam modificá-las. Assim, a unidade da Natureza é a dialética da identidade e da não-identidade.

(vi) “[…] Não estamos aqui a tratar das primeiras formas de trabalho, animalescamente instintivas”. Marx reconhece que existem primeiras formas de trabalho ainda animalescamente instintivas. Mesmo sendo “animalescamente instintivas”, eram trabalho – formas primeiras ou primitivas. Tudo o que comentamos acima diz respeito também a essas formas de trabalho – afinal, eram trabalho humano ainda que numa forma primitiva. Fica a pergunta: em que momento o humano passou a se distinguir do não-humano? Em que momento, a atividade instintiva se tornou atividade de trabalho – que mesmo nas formas primitivas, ainda eram animalescamente instintiva? Marx não trata disso em O capital. Interessa-lhe apenas o trabalho humano consolidado historicamente para além (salto ontológico) do instinto animalesco.

Para concluir tais notas críticas podemos dizer que a frase correta é: “A fonte de toda riqueza e de toda a cultura é a natureza”; ou ainda, como Marx assinalou, “o trabalho enquanto proprietário/controlador dos meios de produção e meios de subsistência, e enquanto força da natureza, é a fonte de toda riqueza e de toda a cultura”.

O que Marx quis dizer foi que numa sociedade em que a natureza se encontra alienada do trabalho, como na sociedade capitalista em que prevalece a propriedade privada dos meios de produção, o trabalho não pode ser a fonte de toda riqueza e cultura.

A força de trabalho é exteriorização da força natural. Enquanto ela for mercadoria e estiver alienada dos produtores, a natureza vai estar alienada do trabalho vivo, a mediação naturalmente necessária entre os humanos e a natureza. Portanto, a relação dos humanos com a natureza entendida como condição objetiva e subjetiva de toda produção social, é determinação necessária para entender o próprio sentido do trabalho. Discutir as relações sociais de produção – da qual faz parte as relações de propriedade e de controle dos meios de produção – é fundamental para entender o significado do trabalho enquanto categoria social e o mais importante: a Natureza enquanto fonte de toda riqueza material.

Uma discussão do trabalho que não leve em consideração as relações sociais de produção e portanto, as relações – de propriedade/controle – dos humanos com a natureza, é uma discussão “sobrenatural”, funcionando assim, como ideologia burguesa no sentido de fraseologia burguesa que oculta a relação-capital (o que significa que a maior parte da sociologia e psicologia do trabalho se rendeu à ideologia burguesa quando se recusa a criticar o capital).

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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