segunda-feira, 3 de junho de 2024

Miriam Corrêa: Os abutres rondam a catástrofe

Livros e palestras de autoajuda empresarial propagam a ideia de que onde há crise, os espertos veem oportunidades. Essa é a lógica do capitalismo, ou seja, é possível lucrar inclusive com as tragédias. Países apoiam guerras em outros pontos do planeta para que sua indústria bélica venda armamentos  – muitas vezes para ambos os lados – e, depois de terminado o conflito, suas empresas reconstruam os países destruídos. Da mesma forma, alguns governantes atuam para que determinadas empresas públicas sejam sucateadas para, depois de perderem a credibilidade, serem privatizadas.

Assim foi feito com a CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica) e com a Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento), no Rio Grande do Sul. Com a Carris (Companhia Carris Porto-Alegrense) e o DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), e poderia ter sido privatizado o DMAE (Departamento Municipal de Águas e Esgotos), em Porto Alegre.

Foi tentado com a Petrobras, com os Correios, com o Banco do Brasil, com a Caixa Econômica Federal, porém – felizmente! – não foi levado a cabo porque o Lula venceu a eleição de 2022. Conclusão: o capitalismo visa o lucro, não obedece à ética, nem se pauta pelas necessidades do povo.

Muitos dos leitores não eram nascidos durante o tempo em que vivemos a inflação, quando o valor pago por um produto no supermercado chegou na casa dos milhões. Sim, milhões! À época, final da ditadura civil-militar (de 1964 a 1985), vivemos uma recessão imposta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) que, em troca de renegociação de dívidas do Estado Brasileiro, impunha aos governantes a implementação de arrochos à população brasileira. Desemprego em alta, salário de fome, milhões de brasileiros abaixo da linha da miséria. Obviamente eram governantes do espectro político da direita.

Volta e meia o capitalismo vive suas crises, crises que, aliás, ele mesmo gera. O neoliberalismo é uma tentativa de sobrevida do sistema capitalista. No Brasil, vem se manifestando a ideia – por meio de retóricas como “o mercado se autorregula”, de que o Estado gasta demais com políticas sociais – de que se deve vender (privatizar) empresas estatais, enfim, da defesa da ideia de um Estado mínimo. Interessante salientar que esses setores empresariais defensores do Estado mínimo, quando ocorre uma crise, são os primeiros a gritar pelo socorro do Estado, como os bancos privados, agronegócio e grandes empresas, ao mesmo tempo em que se opõem que o Estado proteja a população que se encontra em maior vulnerabilidade diante do capital.

Neste exato momento, estamos assistindo ao revigoramento dessa retórica de que o Estado atrapalha. Talvez muitos dos leitores estejam até se convencendo e repetindo inadvertidamente.

É nos períodos de crises que se costuma “passar a boiada”, infelizmente.

Diz a Psicologia que para superar o trauma precisamos viver o luto, e após o luto, sobrevém a raiva. A energia da raiva, nesse momento, é o que nos impulsiona para agir, nos impedindo de cairmos na apatia e na depressão. A tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul nos impacta tão dolorosamente que somos passíveis de cair na desesperança. Daí que discursos sobre realocar populações de bairros e de cidades inteiras podem parecer tentadores. Mas, atenção: não são! Significa ser indiferente às vidas, à história, à cultura e às memórias, com o pertencimento de comunidades inteiras construído através do tempo naqueles locais, transferindo-as como se não possuíssem autonomia, igualdade e dignidade. E para quê? Para destinar esses mesmos locais a empreiteiras que lucrarão com a especulação imobiliária, sonhando reproduzir torres como as de Dubai exclusivas para os VIPs.

Há políticos que deveriam estar trabalhando na iniciativa privada, pois, quando governantes, usam a estrutura do Estado, trabalhando para destruí-lo, apenas para privilegiar os interesses mercadológicos em detrimento das necessidades do povo.

As repúblicas e os Estados Nacionais surgiram e foram organizados para frear o poder virulento de monarquias absolutistas. Neste momento, precisamos do Estado para frear a sanha do mercado que é, como se diz, um capitalismo selvagem. Ao contrário do capitalismo neoliberal, o Estado deve obedecer à ética.

Assim, em solidariedade às gerações passadas, as presentes e às futuras, em vez nos prostarmos impotentes e acatarmos as imposições das vontades de lucros e, sabendo que muitas das perdas e danos foram ocasionados por negligência, aqueles que contribuíram para a tragédia devem SIM ser responsabilizados.

 

•        Enfrentamento à tragédia climática no RS em tempos de capitalismo de catástrofe. Por Marcelo Soares

Um dos principais debates após a tragédia climática que atingiu o Rio Grande do Sul nas últimas semanas foi sobre o papel do Estado na prevenção e no enfrentamento às inundações. Segundo dados da Defesa Civil Estadual, atualizados em 27 de maio, as enchentes afetaram 469 municípios e 2.345.400 pessoas, desalojando mais de 580 mil e causando 169 mortes, tendo ainda 56 pessoas desaparecidas e mais de 55 mil abrigadas.

Logo após a inundação de Porto Alegre, Canoas e outros municípios da região metropolitana, as redes sociais foram tomadas por vídeos de ações de resgates realizadas por cidadãos que cobravam a omissão dos governos, principalmente do governo federal e das Forças Armadas no socorro às pessoas que tiveram suas casas alagadas. Como se viu posteriormente, grande parte desses depoimentos tiveram origem de influencers e centros de irradiação da extrema-direita, preocupados não apenas em desgastar o  governo Lula, mas em difundir a ideia da falência das instituições estatais no atendimento às necessidades da população, enaltecendo o “nós por nós” como estratégia de enfrentamento a tragédias que teriam sido ocasionadas pela própria omissão e falta de planejamento dos governos. Até governantes de direita, como Eduardo Leite e Sebastião Melo, foram massacrados pela extrema-direita nas redes sociais.

Por sua parte, a esquerda, além de se dedicar à iniciativas solidárias, como as cozinhas solidárias e distribuição de água e alimentos, focou na culpabilização de Eduardo Leite e Sebastião Melo como os grandes responsáveis por esta tragédia, pelo negacionismo climático e pela não destinação de recursos da Defesa Civil, no caso de Leite; e pela falta de manutenção das comportas e bombas que poderiam ter evitado a inundação do centro e vários bairros de Porto Alegre, no caso de Melo.

Longe de mim querer isentar Leite e Melo de suas responsabilidades, mas entendo que o foco exagerado nessa pessoalização impede uma avaliação mais profunda de um evento climático extremo, como o que tivemos agora e os dois eventos ocorridos no ano passado no Rio Grande do Sul. Também dificulta atentar para os limites do Estado no momento atual de uma acumulação capitalista predatória, a qual ameaça inviabilizar a própria vida humana em um planeta cada vez mais aquecido pela emissão de gases de efeito estufa.

Partindo da concepção do Estado capitalista como um locus de condensação de poder entre as diferentes frações de classe dominantes, entendo como equivocadas tanto a crítica da extrema direita, como a crença na ação estatal como única saída para o enfrentamento de crises e tragédias produzidas pelo sistema capitalista, ainda mais no estágio nomeado, muito apropriadamente, por Naomi Klein como “capitalismo de catástrofe”, ou seja, da utilização de tragédias como oportunidades de negócios, para acumulação de capital, assim como sempre foram e ainda são as guerras.

Naomi Klein exemplifica essa sua tese com a neoliberalização do controle dos recursos públicos destinados à reconstrução de New Orleans após o furacão Katrina, onde a população negra foi removida dos bairros centrais da cidade e privatizou-se a educação pública; ou no tsunami na Ásia em 2004, quando numerosas praias deixaram de ser públicas, e comunidades de pescadores foram removidas para permitir o acesso de grandes cadeias de hotéis.

O entendimento do papel do estado capitalista neste momento de avanço do neoliberalismo e do “capitalismo de catástrofe” é fundamental para entendermos a reação dos diferentes governos à tragédia climática no Rio Grande do Sul. O governador Eduardo Leite se apressou em clamar por um Plano Marshall de reconstrução do estado; o presidente Lula anunciou a destinação de volumosos recursos para esse fim, mas criou uma Secretaria Extraordinária com status de ministério para tratar da reconstrução; e o empresariado gaúcho apresentou uma lista de reivindicações que nem disfarça a intenção de obter vantagens com uma tragédia que atingiu principalmente as populações de baixa renda, que representam a grande maioria abrigada hoje.

O fato de a consultoria contratada para elaborar e gerenciar a reconstrução no Rio Grande do Sul ser a mesma que trabalhou na reconstrução de New Orleans aumenta ainda mais a possibilidade de utilização desta tragédia para avançar nas políticas neoliberais implantadas por Eduardo Leite e Sebastião Melo, como já foi aventada a possibilidade de construção de cidades de lona em pontos afastados dos bairros centrais de Porto Alegre e outros municípios da região metropolitana, o que representa claramente uma proposta higienista.

A partir do entendimento do contexto em que se situa a atual tragédia climática no Rio Grande do Sul, cabe às esquerdas não apostar todas as fichas no papel dos governos na reconstrução, mas avançar na auto-organização popular que está dando grande resposta no atendimento às populações desabrigadas, principalmente com a experiência das cozinhas solidárias. Nossa luta deve ser pela cobrança de participação nas decisões e transparência na execução das obras e iniciativas de reconstrução.

Ao contrário do "nós por nós" individualista da extrema direita, vamos seguir a máxima de Brecht, dos homens ajudando a si mesmos, mas os homens entendidos como a classe trabalhadora, construindo um outro mundo ainda possível e cada vez mais necessário, em comunhão com a natureza e livre da barbárie capitalista.

 

•        Desmonte sem precedentes dos serviços públicos levou Porto Alegre ao colapso. Por Everton Gimenis

As empresas públicas e os serviços públicos da nossa cidade, que já foram referência para o país todo, sofreram, nos últimos 20 anos de governos de direita, com a visão neoliberal de defesa do Estado mínimo. Um desmonte sem precedentes. A política de terceirização e privatização atingiu praticamente todos os setores da administração pública.

Empresas como a Carris, que nas administrações populares era eleita como a melhor empresa de transporte coletivo do país, foram sucateadas até serem entregues à empresa Viamão. O serviço de coleta de lixo, feito pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), que também era referência, inclusive, pela coleta seletiva, foi terceirizado e o serviço ficou péssimo. A assistência social, por meio da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), que fazia um trabalho de acolhimento das pessoas em estado de vulnerabilidade social, também foi terceirizada.

O resultado mais visível dessa política de terceirizar o cuidado com a vida das pessoas foi, infelizmente, a tragédia da Pousada Garoa, onde morreram dez pessoas. Nesse triste episódio, ficou evidenciado o total descaso da atual gestão da prefeitura com o nosso povo, pois ficou claro que, além de terceirizar o serviço, o governo não fiscalizou o contrato, apesar de inúmeras denúncias de irregularidades e descumprimento do contrato por parte do contratante. A prefeitura fez vistas grossas até o pior acontecer.

Agora, no colapso do sistema anticheias de Porto Alegre e no sistema de drenagem da cidade, a receita neoliberal se repetiu. A gestão anterior do prefeito Marchezan Júnior (PSDB), que era apoiada na Câmara Municipal pelo mesmo bloco político de direita que apoia a gestão Sebastião Melo (MDB), extinguiu o DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), responsável pela manutenção do sistema anticheias da cidade e do sistema de drenagem.

As funções do DEP passaram para o Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) sem nenhuma estrutura para absorver esse aumento de funções, ou foram terceirizadas, como a manutenção do sistema anticheias, que foi repassada para a empresa Bombas Sinos. Vale um parêntese: essa empresa foi contratada pela gestão Marchezan após a extinção do DEP, sendo a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb) dirigida na época pelo atual vereador do Partido Novo, Ramiro Rosário.

O que demonstra o descaso das duas últimas gestões com a coisa pública foi o fato de o secretário da época, Ramiro Rosário, ter indicado o engenheiro Thierri Moraes para ser o responsável pela fiscalização do contrato com a Bombas Sinos. Em 2020, esse mesmo cidadão mudou de lado e virou diretor comercial da empresa de bombas, aquela que, até 2020, ele deveria fiscalizar. Ou seja, Thierri era contratante, fiscal do serviço e representante da empresa. Sobre isso, o vereador Ramiro Rosário nada fala, já para espalhar fake news é pródigo.

Agora, na maior crise climática da história do Rio Grande do Sul que estamos vivendo, o Sistema Anticheias de Porto Alegre - que segundo vários técnicos e especialistas é eficiente e robusto e deveria proteger Porto Alegre de inundações mesmo que o nível do Guaíba chegasse a 6 metros - falhou, e nossa cidade foi inundada, deixando bairros alagados, destruindo vias, casas, empresas e deixando milhares de pessoas desabrigadas.

E aí vem o parecer dos especialistas: o sistema falhou por falta de manutenção. Esses mesmos técnicos apontaram vários pontos em que houve essa falta de manutenção, além da falta de investimentos e modernização do sistema. Também veio à tona um relatório de engenheiros do DMAE que, desde a gestão anterior, denunciava a falta de manutenção e propunham mudanças, dizendo que, se essas medidas não fossem feitas, poderia acontecer o que vimos nesta tragédia. Tanto a gestão Marchezan quanto a gestão Melo desconsideraram essas recomendações.

O próprio prefeito atual falava, em um vídeo da campanha de 2020, que pontos de Porto Alegre alagavam quando chovia forte por falta de manutenção do sistema e falta de geradores nas casas de bombas. Ele sugeriu que a população trocasse de prefeito para que isso fosse corrigido. A população atendeu seu pedido e trocou, mas, depois de eleito, ele repetiu os mesmos erros e descaso do prefeito anterior. Inclusive, em um balanço feito por um órgão de imprensa, a atual gestão não destinou nem um real para a manutenção do sistema no orçamento público de 2023 e de 2024.

Na última chuva forte que atingiu a nossa cidade, depois de muitas pessoas já terem voltado e limpado suas casas, a cidade inundou novamente e, dessa vez, bairros e regiões que não tinham sido atingidos ainda foram alagados, pois colapsou também o sistema de drenagem da cidade e a água voltava pelos bueiros.

Esses acontecimentos acabam com a tese do Estado mínimo e da entrega das funções da prefeitura para a iniciativa privada. Ficou provado que Porto Alegre precisa fortalecer suas empresas públicas, como o DMAE, e criar ou recriar órgãos e empresas como o DEP e a Carris. Nossa cidade não pode ficar à mercê de empresas que só querem lucrar; precisamos reconstruir nossa cidade com políticas públicas e serviços públicos de qualidade.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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