Miriam Corrêa: Os abutres rondam a
catástrofe
Livros e palestras de
autoajuda empresarial propagam a ideia de que onde há crise, os espertos veem
oportunidades. Essa é a lógica do capitalismo, ou seja, é possível lucrar
inclusive com as tragédias. Países apoiam guerras em outros pontos do planeta
para que sua indústria bélica venda armamentos
– muitas vezes para ambos os lados – e, depois de terminado o conflito,
suas empresas reconstruam os países destruídos. Da mesma forma, alguns
governantes atuam para que determinadas empresas públicas sejam sucateadas
para, depois de perderem a credibilidade, serem privatizadas.
Assim foi feito com a
CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica) e com a Corsan (Companhia
Riograndense de Saneamento), no Rio Grande do Sul. Com a Carris (Companhia
Carris Porto-Alegrense) e o DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), e poderia
ter sido privatizado o DMAE (Departamento Municipal de Águas e Esgotos), em
Porto Alegre.
Foi tentado com a
Petrobras, com os Correios, com o Banco do Brasil, com a Caixa Econômica
Federal, porém – felizmente! – não foi levado a cabo porque o Lula venceu a
eleição de 2022. Conclusão: o capitalismo visa o lucro, não obedece à ética,
nem se pauta pelas necessidades do povo.
Muitos dos leitores
não eram nascidos durante o tempo em que vivemos a inflação, quando o valor
pago por um produto no supermercado chegou na casa dos milhões. Sim, milhões! À
época, final da ditadura civil-militar (de 1964 a 1985), vivemos uma recessão imposta
pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) que, em troca de renegociação de
dívidas do Estado Brasileiro, impunha aos governantes a implementação de
arrochos à população brasileira. Desemprego em alta, salário de fome, milhões
de brasileiros abaixo da linha da miséria. Obviamente eram governantes do
espectro político da direita.
Volta e meia o
capitalismo vive suas crises, crises que, aliás, ele mesmo gera. O
neoliberalismo é uma tentativa de sobrevida do sistema capitalista. No Brasil,
vem se manifestando a ideia – por meio de retóricas como “o mercado se
autorregula”, de que o Estado gasta demais com políticas sociais – de que se
deve vender (privatizar) empresas estatais, enfim, da defesa da ideia de um
Estado mínimo. Interessante salientar que esses setores empresariais defensores
do Estado mínimo, quando ocorre uma crise, são os primeiros a gritar pelo
socorro do Estado, como os bancos privados, agronegócio e grandes empresas, ao
mesmo tempo em que se opõem que o Estado proteja a população que se encontra em
maior vulnerabilidade diante do capital.
Neste exato momento,
estamos assistindo ao revigoramento dessa retórica de que o Estado atrapalha.
Talvez muitos dos leitores estejam até se convencendo e repetindo
inadvertidamente.
É nos períodos de
crises que se costuma “passar a boiada”, infelizmente.
Diz a Psicologia que
para superar o trauma precisamos viver o luto, e após o luto, sobrevém a raiva.
A energia da raiva, nesse momento, é o que nos impulsiona para agir, nos
impedindo de cairmos na apatia e na depressão. A tragédia ocorrida no Rio
Grande do Sul nos impacta tão dolorosamente que somos passíveis de cair na
desesperança. Daí que discursos sobre realocar populações de bairros e de
cidades inteiras podem parecer tentadores. Mas, atenção: não são! Significa ser
indiferente às vidas, à história, à cultura e às memórias, com o pertencimento
de comunidades inteiras construído através do tempo naqueles locais,
transferindo-as como se não possuíssem autonomia, igualdade e dignidade. E para
quê? Para destinar esses mesmos locais a empreiteiras que lucrarão com a
especulação imobiliária, sonhando reproduzir torres como as de Dubai exclusivas
para os VIPs.
Há políticos que
deveriam estar trabalhando na iniciativa privada, pois, quando governantes,
usam a estrutura do Estado, trabalhando para destruí-lo, apenas para
privilegiar os interesses mercadológicos em detrimento das necessidades do
povo.
As repúblicas e os
Estados Nacionais surgiram e foram organizados para frear o poder virulento de
monarquias absolutistas. Neste momento, precisamos do Estado para frear a sanha
do mercado que é, como se diz, um capitalismo selvagem. Ao contrário do capitalismo
neoliberal, o Estado deve obedecer à ética.
Assim, em
solidariedade às gerações passadas, as presentes e às futuras, em vez nos
prostarmos impotentes e acatarmos as imposições das vontades de lucros e,
sabendo que muitas das perdas e danos foram ocasionados por negligência,
aqueles que contribuíram para a tragédia devem SIM ser responsabilizados.
• Enfrentamento à tragédia climática no RS
em tempos de capitalismo de catástrofe. Por Marcelo Soares
Um dos principais
debates após a tragédia climática que atingiu o Rio Grande do Sul nas últimas
semanas foi sobre o papel do Estado na prevenção e no enfrentamento às
inundações. Segundo dados da Defesa Civil Estadual, atualizados em 27 de maio,
as enchentes afetaram 469 municípios e 2.345.400 pessoas, desalojando mais de
580 mil e causando 169 mortes, tendo ainda 56 pessoas desaparecidas e mais de
55 mil abrigadas.
Logo após a inundação
de Porto Alegre, Canoas e outros municípios da região metropolitana, as redes
sociais foram tomadas por vídeos de ações de resgates realizadas por cidadãos
que cobravam a omissão dos governos, principalmente do governo federal e das
Forças Armadas no socorro às pessoas que tiveram suas casas alagadas. Como se
viu posteriormente, grande parte desses depoimentos tiveram origem de
influencers e centros de irradiação da extrema-direita, preocupados não apenas
em desgastar o governo Lula, mas em
difundir a ideia da falência das instituições estatais no atendimento às
necessidades da população, enaltecendo o “nós por nós” como estratégia de
enfrentamento a tragédias que teriam sido ocasionadas pela própria omissão e
falta de planejamento dos governos. Até governantes de direita, como Eduardo
Leite e Sebastião Melo, foram massacrados pela extrema-direita nas redes
sociais.
Por sua parte, a
esquerda, além de se dedicar à iniciativas solidárias, como as cozinhas
solidárias e distribuição de água e alimentos, focou na culpabilização de
Eduardo Leite e Sebastião Melo como os grandes responsáveis por esta tragédia,
pelo negacionismo climático e pela não destinação de recursos da Defesa Civil,
no caso de Leite; e pela falta de manutenção das comportas e bombas que
poderiam ter evitado a inundação do centro e vários bairros de Porto Alegre, no
caso de Melo.
Longe de mim querer
isentar Leite e Melo de suas responsabilidades, mas entendo que o foco
exagerado nessa pessoalização impede uma avaliação mais profunda de um evento
climático extremo, como o que tivemos agora e os dois eventos ocorridos no ano
passado no Rio Grande do Sul. Também dificulta atentar para os limites do
Estado no momento atual de uma acumulação capitalista predatória, a qual ameaça
inviabilizar a própria vida humana em um planeta cada vez mais aquecido pela
emissão de gases de efeito estufa.
Partindo da concepção
do Estado capitalista como um locus de condensação de poder entre as diferentes
frações de classe dominantes, entendo como equivocadas tanto a crítica da
extrema direita, como a crença na ação estatal como única saída para o enfrentamento
de crises e tragédias produzidas pelo sistema capitalista, ainda mais no
estágio nomeado, muito apropriadamente, por Naomi Klein como “capitalismo de
catástrofe”, ou seja, da utilização de tragédias como oportunidades de
negócios, para acumulação de capital, assim como sempre foram e ainda são as
guerras.
Naomi Klein
exemplifica essa sua tese com a neoliberalização do controle dos recursos
públicos destinados à reconstrução de New Orleans após o furacão Katrina, onde
a população negra foi removida dos bairros centrais da cidade e privatizou-se a
educação pública; ou no tsunami na Ásia em 2004, quando numerosas praias
deixaram de ser públicas, e comunidades de pescadores foram removidas para
permitir o acesso de grandes cadeias de hotéis.
O entendimento do
papel do estado capitalista neste momento de avanço do neoliberalismo e do
“capitalismo de catástrofe” é fundamental para entendermos a reação dos
diferentes governos à tragédia climática no Rio Grande do Sul. O governador
Eduardo Leite se apressou em clamar por um Plano Marshall de reconstrução do
estado; o presidente Lula anunciou a destinação de volumosos recursos para esse
fim, mas criou uma Secretaria Extraordinária com status de ministério para
tratar da reconstrução; e o empresariado gaúcho apresentou uma lista de
reivindicações que nem disfarça a intenção de obter vantagens com uma tragédia
que atingiu principalmente as populações de baixa renda, que representam a
grande maioria abrigada hoje.
O fato de a
consultoria contratada para elaborar e gerenciar a reconstrução no Rio Grande
do Sul ser a mesma que trabalhou na reconstrução de New Orleans aumenta ainda
mais a possibilidade de utilização desta tragédia para avançar nas políticas
neoliberais implantadas por Eduardo Leite e Sebastião Melo, como já foi
aventada a possibilidade de construção de cidades de lona em pontos afastados
dos bairros centrais de Porto Alegre e outros municípios da região
metropolitana, o que representa claramente uma proposta higienista.
A partir do
entendimento do contexto em que se situa a atual tragédia climática no Rio
Grande do Sul, cabe às esquerdas não apostar todas as fichas no papel dos
governos na reconstrução, mas avançar na auto-organização popular que está
dando grande resposta no atendimento às populações desabrigadas, principalmente
com a experiência das cozinhas solidárias. Nossa luta deve ser pela cobrança de
participação nas decisões e transparência na execução das obras e iniciativas
de reconstrução.
Ao contrário do
"nós por nós" individualista da extrema direita, vamos seguir a
máxima de Brecht, dos homens ajudando a si mesmos, mas os homens entendidos
como a classe trabalhadora, construindo um outro mundo ainda possível e cada
vez mais necessário, em comunhão com a natureza e livre da barbárie
capitalista.
• Desmonte sem precedentes dos serviços
públicos levou Porto Alegre ao colapso. Por Everton Gimenis
As empresas públicas e
os serviços públicos da nossa cidade, que já foram referência para o país todo,
sofreram, nos últimos 20 anos de governos de direita, com a visão neoliberal de
defesa do Estado mínimo. Um desmonte sem precedentes. A política de terceirização
e privatização atingiu praticamente todos os setores da administração pública.
Empresas como a
Carris, que nas administrações populares era eleita como a melhor empresa de
transporte coletivo do país, foram sucateadas até serem entregues à empresa
Viamão. O serviço de coleta de lixo, feito pelo Departamento Municipal de
Limpeza Urbana (DMLU), que também era referência, inclusive, pela coleta
seletiva, foi terceirizado e o serviço ficou péssimo. A assistência social, por
meio da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), que fazia um
trabalho de acolhimento das pessoas em estado de vulnerabilidade social, também
foi terceirizada.
O resultado mais
visível dessa política de terceirizar o cuidado com a vida das pessoas foi,
infelizmente, a tragédia da Pousada Garoa, onde morreram dez pessoas. Nesse
triste episódio, ficou evidenciado o total descaso da atual gestão da
prefeitura com o nosso povo, pois ficou claro que, além de terceirizar o
serviço, o governo não fiscalizou o contrato, apesar de inúmeras denúncias de
irregularidades e descumprimento do contrato por parte do contratante. A
prefeitura fez vistas grossas até o pior acontecer.
Agora, no colapso do
sistema anticheias de Porto Alegre e no sistema de drenagem da cidade, a
receita neoliberal se repetiu. A gestão anterior do prefeito Marchezan Júnior
(PSDB), que era apoiada na Câmara Municipal pelo mesmo bloco político de
direita que apoia a gestão Sebastião Melo (MDB), extinguiu o DEP (Departamento
de Esgotos Pluviais), responsável pela manutenção do sistema anticheias da
cidade e do sistema de drenagem.
As funções do DEP
passaram para o Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) sem nenhuma
estrutura para absorver esse aumento de funções, ou foram terceirizadas, como a
manutenção do sistema anticheias, que foi repassada para a empresa Bombas
Sinos. Vale um parêntese: essa empresa foi contratada pela gestão Marchezan
após a extinção do DEP, sendo a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos
(SMSUrb) dirigida na época pelo atual vereador do Partido Novo, Ramiro Rosário.
O que demonstra o
descaso das duas últimas gestões com a coisa pública foi o fato de o secretário
da época, Ramiro Rosário, ter indicado o engenheiro Thierri Moraes para ser o
responsável pela fiscalização do contrato com a Bombas Sinos. Em 2020, esse mesmo
cidadão mudou de lado e virou diretor comercial da empresa de bombas, aquela
que, até 2020, ele deveria fiscalizar. Ou seja, Thierri era contratante, fiscal
do serviço e representante da empresa. Sobre isso, o vereador Ramiro Rosário
nada fala, já para espalhar fake news é pródigo.
Agora, na maior crise
climática da história do Rio Grande do Sul que estamos vivendo, o Sistema
Anticheias de Porto Alegre - que segundo vários técnicos e especialistas é
eficiente e robusto e deveria proteger Porto Alegre de inundações mesmo que o
nível do Guaíba chegasse a 6 metros - falhou, e nossa cidade foi inundada,
deixando bairros alagados, destruindo vias, casas, empresas e deixando milhares
de pessoas desabrigadas.
E aí vem o parecer dos
especialistas: o sistema falhou por falta de manutenção. Esses mesmos técnicos
apontaram vários pontos em que houve essa falta de manutenção, além da falta de
investimentos e modernização do sistema. Também veio à tona um relatório de
engenheiros do DMAE que, desde a gestão anterior, denunciava a falta de
manutenção e propunham mudanças, dizendo que, se essas medidas não fossem
feitas, poderia acontecer o que vimos nesta tragédia. Tanto a gestão Marchezan
quanto a gestão Melo desconsideraram essas recomendações.
O próprio prefeito
atual falava, em um vídeo da campanha de 2020, que pontos de Porto Alegre
alagavam quando chovia forte por falta de manutenção do sistema e falta de
geradores nas casas de bombas. Ele sugeriu que a população trocasse de prefeito
para que isso fosse corrigido. A população atendeu seu pedido e trocou, mas,
depois de eleito, ele repetiu os mesmos erros e descaso do prefeito anterior.
Inclusive, em um balanço feito por um órgão de imprensa, a atual gestão não
destinou nem um real para a manutenção do sistema no orçamento público de 2023
e de 2024.
Na última chuva forte
que atingiu a nossa cidade, depois de muitas pessoas já terem voltado e limpado
suas casas, a cidade inundou novamente e, dessa vez, bairros e regiões que não
tinham sido atingidos ainda foram alagados, pois colapsou também o sistema de
drenagem da cidade e a água voltava pelos bueiros.
Esses acontecimentos
acabam com a tese do Estado mínimo e da entrega das funções da prefeitura para
a iniciativa privada. Ficou provado que Porto Alegre precisa fortalecer suas
empresas públicas, como o DMAE, e criar ou recriar órgãos e empresas como o DEP
e a Carris. Nossa cidade não pode ficar à mercê de empresas que só querem
lucrar; precisamos reconstruir nossa cidade com políticas públicas e serviços
públicos de qualidade.
Fonte: Brasil de Fato
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