sábado, 27 de janeiro de 2024

Tupinambás buscam se reconectar com a ancestralidade através de seus mantos sagrados

São chamados de Encantados as entidades ancestrais que fazem a ponte entre o mundo terreno e o mundo espiritual entre vários povos indígenas. Alguns dos contatos se dão a partir de sonhos, liturgias e danças, mas, para isso acontecer, é preciso existir uma conexão genuína, uma predestinação. Por exemplo: na mudança de estações, geralmente um pajé ou cacique entra em contato com esses seres místicos para receber provisões, informações sobre como será o ano para cada aldeia, como vão estar as estrelas.

Essa troca com o sagrado funciona para questões cotidianas de cada povo, como nortear as lideranças em decisões importantes e receber informações sobre como será o ano para cada aldeia, por exemplo. Mas não só.

Há alguns anos, a artista e ativista indígena Glicéria Tupinambá recebeu, em sonho, um chamado dos Encantados para resgatar um manto de seu povo com mais de 400 anos de idade. A peça estava na reserva técnica de um importante museu francês, portanto não seria possível trazê-la de volta ao país. Mas havia um outro caminho a ser tomado.

“Em 2018, com a visita à reserva do Museu do Quai Branly, em Paris, eu tive acesso ao manto, e o manto falou comigo”, conta Glicéria em entrevista à Mongabay, sobre o acontecimento que a guiou até a vontade dos Encantados.

“Então Ele [o manto] mostrou essa dimensão da feitura do manto por mãos de mulheres. As mulheres sendo portadoras do próprio manto. A partir daí, eu começo a confeccionar um manto em 2020, para o cacique Babau. Um manto autorizado pelos Encantados”.

Este primeiro manto, feito sob medida para Babau Tupinambá, seu irmão e cacique da aldeia Serra do Padeiro, no sul da Bahia, representa não só a renovação ancestral da cosmologia indígena e da tradição da indumentária sagrada como também um novo olhar acerca do pertencimento, da identidade e da luta do povo pela preservação de sua cultura.

Cerca de 11 mantos sagrados tupinambás, usados antigamente em rituais, sobreviveram ao longo dos séculos — todos curiosamente conservados em museus europeus. A maioria é datada do século 16, embora não haja hoje um consenso acerca de uma data cravada da fabricação destas peças.

O mais famoso deles é um exemplar vistoso, feito com penas vermelhas de guará, que mede cerca de 1,80 metro e está no Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague. Segundo constam os registros, desde 1689.

Em julho de 2023, em uma ação inédita protagonizada por ativistas indígenas, entre eles Glicéria Tupinambá, e intermediada pelo Consulado Brasileiro em Copenhague, a direção da instituição dinamarquesa anunciou a devolução do manto rubro para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro – aquele que teve seu prédio histórico destruído por um incêndio em 2018.

Enquanto a peça histórica não chega, Glicéria Tupinambá recebeu um outro chamado dos Encantados. “Em 2021, a gente conseguiu confeccionar um outro manto, com uma outra roupagem, que é um manto feminino. Ele traz mais forte a presença das mulheres que foram portadoras desse manto [no passado]”, conta a ativista.

No ano seguinte, por meio de um projeto aprovado pela Funarte, a peça seguiu um caminho itinerante no país, passou por cidades como Brasília e Porto Seguro e depois retornou para a aldeia de Glicéria e Babau, na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, município de Buerarema.

·        A itinerância do manto

Esse segundo manto confeccionado por Glicéria circulou por São Paulo no segundo semestre de 2023. Na cidade mais populosa do país, a indumentária passou por instituições importantes, como os museus Casa do Povo e Instituto Moreira Salles, universidades como a PUC e chegou até a permanecer por alguns dias na reserva Guarani que há na região do Jaraguá, no extremo norte da cidade.

No Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o Masp, o manto de Glicéria fez parte da exposição coletiva Histórias Indígenas, a maior empreitada do museu paulistano com obras de representantes de povos originários do mundo todo.

Para Edson Kayapó, curador-adjunto de arte indígena do Masp, o manto de Glicéria representa um marco por transcender a seara artística e dialogar diretamente com a ancestralidade.

“O manto tupinambá é um elemento muito importante da cultura, por se tratar de uma produção dos antepassados. No caso do manto de Glicéria, acontece um diálogo com o tempo”, diz o curador. Para ele, a artista “pressupõe que o manto renova a tradição indígena”.

“É uma obra produzida por técnicas artísticas que são do nosso tempo, mas que dialogam diretamente com a ancestralidade e com a própria produção dessa arte naquele tempo em que foi produzida, provavelmente no século 16 ou 17”, observa.

Glicéria concorda: “Para algumas pessoas, [o manto] é visto como arte, mas para a gente é um ancestral e ele tem uma questão a falar, a mostrar sua presença. O Tupinambá que fez o manto original tem mais de 400 anos, então a primeira pessoa a fazer, a conceber esse manto, ele está [se manifesta] pelas minhas mãos. O manto vem desse lugar coletivo, dessa cosmo-técnica”, completa a artista.

Feito com uma variedade de penas de aves terrestres e domésticas, como frangos, perus, galinhas, galos, patos e gansos, o novo manto de Glicéria Tupinambá também ganhou penas de araquãs, canários da mata, sabiás-bico-de-ferro, sabiás-laranjeira, gaviões preto e araras.

“Não é uma relação de uma pessoa, tem toda uma complexidade relacionada ao território”, explica Glicéria. “Está relacionado à natureza, ao espaço, à doação das penas, às crianças, às mulheres, aos jovens, ao todo da comunidade. É um pensamento para além da arte, então a gente tem uma concepção de discussão, de botar para as pessoas pensarem que lugar é esse da memória dos povos Tupinambá.”

Foram quase duas décadas de processo, entre o primeiro chamado dos Encantados, em 2006, e a concepção do manto do cacique Babau e o manto feminino. Nesse meio tempo, discussões sobre o território do povo Tupinambá avançaram e Glicéria se tornou uma das vozes mais ativas na luta pelos direitos dos povos indígenas.

O novo manto tupinambá circulou até começo de dezembro de 2023 e volta à aldeia para se preparar para uma nova viagem. Em abril, Glicéria conta que a peça vai à Bienal de Veneza, na Itália, maior evento de arte europeu, que homenageia o Brasil em sua 60ª edição. No vaivém entre continentes e travessias atlânticas, é firmado um diálogo com o passado e a reconstrução do presente e do futuro ancestral.

 

Ø  A violência contra os Guarani em Guaíra e Terra Roxa cessará apenas quando a terra estiver totalmente demarcada e sem invasores

 

A decisão do vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Ministro Edson Fachin, no dia 15 de janeiro, de deferir “a suspensão de todas as ações possessórias e anulatórias do processo administrativo de demarcação do território da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá ou que incidam sobre aldeias nela existentes, (…) revogação de quaisquer decisões que impeçam à FUNAI de dar andamento ao processo administrativo de demarcação da TI Tekoha Guasu Guavira…”, foi uma decisão sumamente importante para a continuidade do processo administrativo para demarcação daquela Terra Indígena e somente sua concretização poderá levar um fim à violência sistemática e continuada contra os Avá Guarani daquele Tekoha Guasu.

A decisão do Ministro Fachin anulou a decisão do juiz Gustavo Chies Cignachi, de 17 de fevereiro de 2020, que suspendeu “qualquer ato de demarcação de terras indígenas nos municípios de Guaíra e Terra Roxa e a anulação do relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá”. A ação havia sido ingressada na justiça pelo município de Guaíra, ainda em 2018, assim que a Funai publicou o resumo do relatório circunstanciado de identificação e delimitação da TI Guasu Guavirá.

Um mês após o despacho do Juiz Cignachi o presidente da Funai Marcelo Xavier, numa ação intempestiva e totalmente ilegal, editou a Portaria nº. 418 e anulou os estudos de identificação e delimitação da TI e se absteve de fazer a defesa dos Guarani no processo judicial. Somente em 2023 a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, anulou a Portaria 418. No entanto, por força da ação judicial, o processo seguia paralisado.

Com a decisão do Ministro Fachin, cabe à Funai dar prosseguimento ao processo administrativo de demarcação e delimitação da referida Terra Indígena. Seguindo todos os trâmites determinados pelo Decreto 1775/1996, em menos de um ano os Guarani já poderão usufruir de sua terra. O Ministro Fachin determinou também que os ocupantes não indígenas sejam indenizados conforme determina a legislação.

A Terra Indígena Guasu Guavirá é composta por 17 Tekoha Kuéra (aldeias) localizados nos municípios de Guaíra, Terra Roxa e Altônia, com 23.768 hectares, composta por terras públicas, terras particulares, sítios arqueológicos e ao menos 6 mil hectares do Parque Nacional da Ilha Grande.

O Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Sul, assim como o Observatório da Temática Indígena na América Latina (OBIAL/UNILA) acompanham atentamente a finalização desse processo e a justa devolução da terra aos Guarani. São mais de 3 mil indígenas Guarani que vivem em casas improvisadas com lona preta e pau a pique, sem a infraestrutura básica e sem espaço para plantio.

Cabe agora à Funai e ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, de forma ágil e célere, dar andamento ao procedimento administrativo até a devolução da terra aos Guarani e a indenização dos não indígenas que de boa-fé compraram a terra indevidamente. Deputados e senadores do estado do Paraná também podem contribuir com a solução deste conflito, elaborando proposta de emenda ao orçamento para a indenização dos não indígenas. O que não poderá ocorrer é a costumeira morosidade, que levará a mais violência e a intolerância, com agressões físicas e verbais aos Avá Guarani.

Algumas mídias sociais da região inflamam a população contra os Guarani, incorrendo em crimes graves e fomentando a violência. Precisam ser contidos e aplicados a lei e ordem sobre os seus protagonistas. As emboscadas feitas pelos invasores da terra indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), em dezembro de 2023, contra a Polícia Federal, é um exemplo suficiente de que não se pode tolerar as ameaças.

A violência contra os Guarani é sistêmica e permanente. São inúmeros os assassinatos, as tentativas de assassinatos, agressões, ameaças e outras formas de violência. O último caso grave ocorreu no dia 10 de janeiro de 2024, quando em uma emboscada, quatro pessoas foram alvejadas com armas de fogo, justamente no momento em que se preparavam para seu ritual sagrado. De todos os crimes cometidos nas últimas décadas, não há agressor punido.

A pressão sobre parlamentares e pessoas públicas será grande. Há que se manter firme e coeso pela justiça.

 

Ø  Águas do Xingu: fonte de vida em risco de morte

 

Ainda antes do nascer do sol, ao longo das praias dos rios e lagos do Xingu, surge no horizonte uma sequência de fogueiras para aquecer os corpos nus recém saídos da água. À medida que a luz clareia o dia, levanta-se uma bruma que dilui o movimento de vultos num vai e vem que irá durar o dia inteiro.

No Parque Indígena do Xingu, rios e lagos são o jardim de infância das crianças. Grupos de mulheres carregam as crianças menores para várias sessões de banhos, iniciando-as desde pequenas nas artes de ser peixe. Treinos de futebol acontecem na praia. Jovens e velhos banham-se ao longo do dia e é sempre um momento propício para encontros e troca de ideias.  Ao cair da tarde, barcos de pescadores saem em busca do alimento.

Os rios que cortam o parque, como o próprio Xingu e seus afluentes, são verdadeiras artérias naturais que sustentam a vida de inúmeras espécies animais, incluindo a espécie humana. As lagoas também desempenham um papel crucial: servem como pontos de encontro e oferecem oportunidades para alimentação, descanso e interação social. Além disso, as lagoas são essenciais para o fornecimento de água em épocas de seca, agindo como refúgios para a fauna silvestre e os indígenas durante os períodos mais áridos do ano.

Essa riqueza, porém, está em risco. Segundo o cacique Tapi Yawalapiti, uma das principais lideranças do território do Xingu, há um desmatamento criminoso e desenfreado ocorrendo no entorno do parque, bem onde se encontram as nascentes dos rios. Os três últimos anos têm sido particularmente graves: muitas vezes, a fumaça das queimadas fazia os dias virarem noite nas aldeias, causado mal-estar nos indígenas.

As mesmas lavouras que causam o desmatamento também fazem uso indiscriminado de agrotóxicos, terminando por envenenar rios e animais. Além disso, segundo Tapi, as mudanças climáticas têm causado a diminuição do volume de água em diversos rios, fazendo com que alguns deixem de existir no período de estiagem, entre maio e setembro. A falta de água vem ameaçando inclusive mais importante ritual do Xingu, o Quarup.

A preservação das águas desse território é essencial não apenas para o bem-estar das espécies locais, mas também para o equilíbrio do clima e a manutenção do ciclo hidrológico. O Parque Indígena do Xingu desempenha um papel crítico na retenção da água, atuando como uma esponja natural que armazena e libera lentamente o recurso natural para as regiões circundantes, evitando enchentes e secas extremas.

 

Fonte: Mongabay/Cimi

 

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