Moisés Mendes: Esqueça a guerra híbrida, companheiro. É a guerra arcaica
que mais nos massacra
O Brasil deixou explicações pelo caminho, no século
20, porque parte da esquerda precisava ir sempre à Grécia Antiga para discorrer
sobre coisas não resolvidas em Barbacena, Sorocaba ou Quaraí.
As tentativas de compreender nossos problemas
ficavam mais sofisticadas. É um cacoete persistente, mantido pelo escapismo dos
que atribuem quase tudo às batidas das asas das borboletas em Nova York.
Podemos tentar mudar. O Brasil talvez seja melhor
explicado se em 2024 parte das esquerdas finalmente deixar de ver digitais
estrangeiras em todos os nossos dilemas, atrasos e sofrimentos.
O mantra hoje poderia ser esse: o nosso fascismo
não é uma invenção da guerra híbrida, companheiro. É uma criação do Brasil
arcaico, meu amigo.
Dilma foi derrubada pelo Brasil arcaico. Lula foi
preso pelo law fare produzido aqui. É o Brasil arcaico que destrói a Amazônia e
mata yanomamis.
Esse Brasil arcaico junta grileiros, fazendeiros,
banqueiros, Fiesp, militares, milicianos, chefes religiosos. E quase não
precisa dos guerreiros invisíveis de guerras híbridas.
Dilma foi golpeada pelo Brasil machista que tem
coronéis, milicos e Deus acima de tudo. São os que tentam inviabilizar Lula de
novo com a ajuda dos donos arcaicos das corporações de mídia.
O Estadão é parte da explicação do Brasil arcaico,
e não da guerra híbrida. Atribuir quase tudo a fatores sobre os quais não
teríamos qualquer controle nos deixa preguiçosos.
E nos acovarda diante da guerra suja interna. Que
foi misógina contra Dilma. Que é rasamente preconceituosa, antes até de ser
ideológica, contra Lula.
O racismo que alguns dizem não ser estrutural não
depende de guerra híbrida. Nem a homofobia de agressores com mandato e foro
privilegiado.
O absolutismo religioso é produto brasileiro, com
selo de autenticidade. O diabo sabe. O dízimo que sustenta estruturas do
fascismo não depende do PIX das guerras híbridas.
Sergio Moro pode ter tido colaboração americana,
mas é ingênuo pensar que trabalhava em Curitiba a serviço da CIA ou do FBI para
destruir nossas empreiteiras. É uma desculpa atenuante das nossas
responsabilidades.
Moro, os golpistas de 2016, o centrão, a bancada do
PL, os militares que saltaram fora do golpe de 8 de janeiro, todos são
personagens do Brasil arcaico.
Bolsonaro não foi uma invenção da guerra híbrida e
de maquinações internacionais. Foi apenas uma aberração verde-amarela, e
eleita, potencializada pela capacidade da extrema direita de lidar melhor do
que as esquerdas com todas as novas formas de comunicação de massa.
Javier Milei, que não existia nem como expressão
política de quinta categoria há três anos, não é uma invenção da guerra
híbrida.
É uma construção das urgências e dos desatinos da
Argentina, e para que se repetisse lá, contra o kirchnerismo, o que fizeram
aqui contra o lulismo.
A guerra permanente contra Lula é feita com armas
nacionais. Nenhum guru de guerras híbridas orientou a direita brasileira a
apoderar-se do orçamento e a dizer que o Congresso pode governar tanto quanto
Lula.
Não foi a guerra híbrida que fragilizou os
sindicatos e quase amordaçou as forças políticas nas universidades. Não há
guerra híbrida que explique as bancadas de militares, delegados, pastores e
correlatos no Congresso.
Que 2024 nos acorde dessa sesta, desse consolo
dormente de buscar explicações conspiratórias longe de nós para as anomalias
que nós criamos.
Que assumamos que Lula depende de base social e de
ativismo político local, paroquial, municipal, para poder governar, ou não
haverá valentia capaz de gerir o assédio do centrão.
Que aceitemos que Alexandre de Moraes não pode
fazer tudo sozinho. Que abandonemos o lugar confortável que coloca as culpas em
conspirações vindas de um exterior às vezes imaginário.
As esquerdas não podem reproduzir, em versões só
aparentemente espertas e complexas, visões semelhantes às da extrema direita
antissistema.
Os conspiradores externos não podem tudo, nem com
centenas de Steves Bannons com seus Carluxos e suas milícias digitais.
O Brasil analógico, atrasado, agrário,
supremacista, articulado nos subterrâneos e nas superfícies com a Globo, não
precisa tanto dos serviços de Steve Bannon.
Os interesses estrangeiros e a guerra híbrida não
matam 10 mulheres brasileiras por dia. Não provocam centenas de agressões
diárias a negros e gays. Não assassinam negros em favelas. Não continuam
massacrando indígenas na Amazônia.
O Brasil preguiçoso, muitas vezes sem coragem
(também dentro das instituições) para enfrentar o poder arcaico, busca
consolar-se com as conspirações dos poderes externos.
É cômodo, é enganosamente mais elaborado, é até
mais charmoso. A direita brasileira, engolida pela extrema direita, agradece e
se diverte.
Porque saber que a CIA não mandou matar Marielle.
Que Lula não foi preso pelo FBI. Que o 8 de janeiro não foi acionado por
controle remoto de Washington.
Não tirem protagonismo das nossas elites bandidas e
das nossas bandidagens arcaicas. Não caiam na armadilha de atribuir crimes a
inimigos que nunca conseguiremos punir.
Ø Denise
Assis: Ônibus rumaram para Brasília visando a “Tomada pelo Povo” em 8 de
janeiro de 2023
Tendo como objetivo a “tomada” do poder, lideranças
do Movimento Brasileiro Verde e Amarelo (MBVA), ruma para Brasília, após o
resultado da eleição de 2022. Inconformados com a derrota para o
candidato progressista, Luiz Inácio Lula da Silva, se articularam por redes
sociais. São pessoas que detêm capital econômico e influência política em seus
locais de atuação. Como ferramenta de mobilização, além das redes, contaram com
o programa “Sucesso no Campo”, transmitido em TV aberta e em mídia social. O
programa divulga líderes, pautas e convocações do grupo para manifestações.
Formado sobretudo por sojicultores do Centro-Oeste,
naturais do Rio Grande do Sul, contam com as principais lideranças e fundadores
do MBVA: Antônio Galvan (sojicultor em Sinop/MT, presidente da Aprosoja
Brasil); Jeferson da Rocha (advogado em Florianópolis e porta-voz do grupo);
Vitor Geraldo Gaiardo (sojicultor e presidente do Sindicato Rural de Jataí/GO);
Humberto Falcão (sojicultor em Primavera do Leste/MT e proprietário de empresa
de sementes); Luciano Jayme Guimarães (sojicultor em Rio Verde/GO e presidente
do Sindicato Rural de Rio Verde) e José Alípio Fernandes da Silveira
(sojicultor em Barreiras/BA e presidente da Andaterra). Todos os empresários
bem-sucedidos e de muitos recursos, ligados ao agronegócio, embora ocupem,
ainda assim, posições secundárias num setor decisivo para a balança comercial
do Brasil.
O MBVA tem capital próprio e rede de contato com
elevada capacidade de arrecadação de recursos. Desse modo, as lideranças do
MBVA articularam diversos atos públicos de apoio ao ex-presidente Bolsonaro e
em defesa de pautas antidemocráticas, como a intervenção militar. Para se ter
noção do seu poder de mobilização, o movimento organizou atos em Brasília que
contaram com deslocamento de máquinas agrícolas, caminhões e caravanas desde as
suas áreas de influência. A partir da articulação da sua rede de contatos nas
Aprosojas e nos sindicatos rurais, o grupo demandou e coordenou doações em suas
bases.
O ato denominado por eles de “Tomada pelo Povo”,
convocado para 8 de janeiro de 2023, em Brasília, foi tentativa de reavivar o
movimento de contestação do resultado eleitoral em curso desde o término da
eleição presidencial em 30 de outubro de 2022. Para os dias 7, 8 e 9 de janeiro
de 2023, foram organizados bloqueios de acessos a refinarias e bases de
distribuição de combustíveis em todo o país, assim como caravanas com destino a
Brasília, tendo como objetivo reverter tendência de esvaziamento do acampamento
em frente ao Quartel-General do Exército.
De acordo com a documentação das investigações
desses episódios, por autoridades, “a partir do acampamento, os manifestantes
planejaram dirigir-se à Esplanada dos Ministérios e declararam intenção de
invadir o Congresso Nacional. Foram identificados os contratantes de 103 ônibus
fretados que chegaram à capital entre 4 e 8 de janeiro de 2023, transportando
3.875 pessoas. Os indivíduos e organizações que contrataram mais de um veículo
foram: Pedro Luiz Kurunczi (4); Marcelo Panho (2); Marcos Oliveira Queiroz (2)
e Sindicato Rural de Castro (2)”.
(Observem que o mapa em que aparece a localização
dos contratantes foi confeccionado já no dia 10 de janeiro de 2023, pela Abin.
O que demonstra agilidade nos trabalhos de investigação e apresentação de
resultados).
Os investigadores chamam a atenção para “a grande
pulverização dos contratantes de fretados. “Foram observadas, nos últimos dias,
diversas iniciativas de financiamento coletivo para as caravanas. No entanto,
existem também indícios de contratação de múltiplos fretamentos de uma só vez, havendo
disponibilização de transporte alegadamente gratuito a quem se dispusesse a
viajar. Considerando esses fatores, é provável que diversos contratantes tenham
sido utilizados como "laranjas" com objetivo de ocultar os verdadeiros
financiadores das caravanas e dos manifestantes”.
Nos documentos encontra-se para conferir a listagem
dos que contrataram ônibus para os atos golpistas por CNPJ. Da tabela constam
também: razão social, CPF do contratante e vínculo com a empresa ou
instituição. Foi apurado que 83 indivíduos contrataram 89 ônibus fretados por
CNPJ:
A investigação ainda arregimentou uma listagem de
99 páginas, demonstrando nome a nome, com CPFs e origem de emissão do
documento, quem foram essas pessoas que, vestidas com as cores verde e amarelo
gritaram pelo retorno do controle militar do país e por uma ditadura que a
maioria não viveu. Na verdade, o que buscavam era o fim da democracia, tendo à
frente o ditador Jair Messias. Esse era o desejo.
Nas 99 páginas – que não estarão aqui publicadas
dado o volume de imagens que seria necessário reproduzir para exibir o
documento completo -, com as listas de passageiros dos ônibus fretados, constam
centenas de pessoas comuns: médicos, veterinários, vereadores, dentistas,
professores, pequenos empresários...
Eles não só embarcaram naqueles ônibus para uma
viagem rumo a Brasília para a “Tomada pelo Povo”, mas também rumo ao submundo
de uma tentativa de golpe e, dali, com as ações frustradas -, para o bem da
democracia e do país -, para as prisões oficiais, de onde 30 já saíram
condenados e centenas ainda aguardam julgamento. Um ano depois, o Brasil
ainda se recorda atordoado das imagens de terror vistas ao vivo, após o almoço
de domingo. Escapamos por um triz. O Brasil segue sua história.
Fonte: Brasil 247
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