Como o ecoturismo pode tornar a Mata
Atlântica referência em sustentabilidade
Cenário da colonização
do Brasil desde o primeiro contato, a Mata Atlântica hoje concentra 72% da
população e responde por 80% do Produto Interno Bruto do país. Não por acaso, é
o mais devastado dos biomas brasileiros. Restam 24% da sua cobertura vegetal
original, mas somente a metade disso é de áreas remanescentes bem conservadas e
capazes de manter a viabilidade da sua biodiversidade no longo prazo.
A maior parte desses
remanescentes está numa extensa área contínua que abrange o litoral de três
estados: São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Foi ali que, em 2018, um grupo de
entusiastas de várias esferas – pública, privada, comunitária e não governamental
– se uniu para impulsionar ações de desenvolvimento local focadas no turismo de
natureza.
Criou-se, então,
a Grande Reserva Mata Atlântica,
um mosaico de 110 Unidades de Conservação que se estende por 50 municípios e 3
milhões de hectares – 665 mil deles em proteção. O elo que a conecta é a Rede de Portais, uma
plataforma colaborativa que busca formas de estimular a área como destino
turístico, o que inclui ações de empreendedorismo e inovação, qualificação
profissional e parcerias institucionais, além da divulgação de roteiros através
do site oficial. Já são 700 pessoas envolvidas.
O movimento se
inspirou no conceito de “produção de natureza”, da Fundação
Rewilding Argentina. Essa organização ambientalista se tornou
referência internacional gerando novo modelo de desenvolvimento local com base
na preservação dos ecossistemas e no empoderamento das comunidades.
Ricardo Borges,
coordenador de Comunicação e Relações Estratégicas da Grande Reserva Mata
Atlântica, explica que o conceito está sendo usado para dialogar com a
sociedade sobre a importância da natureza para o bem-estar humano. “Esse é um
dos poucos lugares do Brasil onde ainda se consegue entrar em contato com a
Mata Atlântica em toda a sua exuberância”, observa.
Com paisagens naturais
únicas e uma das maiores densidades de áreas protegidas do país, Ricardo afirma
que esse recorte de floresta representa uma grande oportunidade de coexistência
entre natureza e identidades culturais, como a das comunidades caiçaras. A
região tem também a maior concentração de quilombos em Paraná e São Paulo –
alguns, inclusive, desenvolveram projetos de turismo de base comunitária.
·
Empreendedorismo sustentável
O turismo é
reconhecido como carro-chefe da Grande Reserva e, segundo Ricardo pode ser
fortalecido a partir do estímulo ao empreendedorismo sustentável. Atividades
como canoagem, passeios de barco, esportes aquáticos e observação de aves são
cada vez mais demandadas. Revoadas de guarás (Eudocimus ruber) e dos
raros papagaios-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis) são algumas das
possibilidades de contemplação da biodiversidade existente por lá.
Como exemplos de experiências
que podem ser vividas na região, o coordenador cita o Pico Paraná, o maior da Região
Sul, com 1.877 metros de altura, e o circuito de ciclismo em meio à paisagem
da Estrada-Parque da Serra da Macaca, inserida no Parque Estadual Carlos Botelho, no sul do estado
de São Paulo.
“Aqui não inventamos
nada novo, mas costuramos soluções possíveis, acreditando que a Grande Reserva
pode ser destino de natureza internacional”, afirma. “Mas não é qualquer tipo
de turismo e de empreendimento que queremos. Não queremos turismo a qualquer
custo”, adverte.
Após a pandemia da
covid-19, ele observa que tem crescido um movimento de pessoas em busca de
ecoturismo, o que tende a favorecer a região. “As comunidades contribuem para
manter tudo isso em benefício de toda a sociedade e tudo isso é produto de alto
valor agregado”, opina.
Para Ricardo, o Brasil
ainda é um país com baixa autoestima, apesar de suas riquezas naturais e
culturais reconhecidas mundialmente, fenômeno que também se reflete no caso da
Grande Reserva Mata Atlântica. Superar esse obstáculo depende do fortalecimento
de parcerias e engajamento de diferentes segmentos sociais, além do
impulsionamento de iniciativas socioeconômicas compatíveis com a proteção do
seu patrimônio natural e histórico-cultural.
Com esses propósitos,
além de utilizar ferramentas de gestão como a criação de áreas protegidas, ele
ressalta que é importante apostar na economia restaurativa. “Buscamos conversar
com a sociedade sobre a importância da proteção da floresta, do solo, dos
polinizadores e de outros elementos centrais à garantia de serviços ambientais
fundamentais à nossa qualidade de vida”, conclui.
·
Metodologia é inovadora, afirma
ambientalista
Clóvis Borges, diretor
da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), comenta
que a metodologia usada nessa iniciativa não tem paralelo no Brasil. A
organização atua com projetos de proteção da natureza desde a década de 1990 e
monitora espécies em extinção como o mico-leão-de-cara-preta (Leontopithecus
caissara) e o papagaio-de-cara-roxa.
“O conceito de
produção de natureza, inspirado na iniciativa argentina, tem sido colocado na
prática e os resultados têm sido surpreendentes”, afirma o ambientalista. Como
questão desafiadora, ele aponta o esforço de manter unido e coeso o grupo de
pessoas envolvido na rede de ações colaborativas.
E para que o turismo
de natureza possa avançar, gerando oportunidades de novos negócios e empregos,
o diretor da SPVS opina que outro grande desafio envolve avançar em termos de
infraestrutura nas Unidades de Conservação do Paraná e de Santa Catarina para
alcançar o padrão já observado em São Paulo. Ele reforça que é preciso
impulsionar a instalação de restaurantes e a preparação de guias de trilhas,
entre outras demandas.
Em contrapartida,
Clóvis questiona sobre como avançar nesses propósitos em cenários de
agravamento da crise climática e de perda acelerada de biodiversidade. “Tem que
haver consciência de ousar e estimular terceiros, além de envolver a sociedade
tendo a expectativa de ampliar a escala de todos os esforços”, analisa.
Ao mesmo tempo, opina
que não podemos “nos contentar com projetos que não mudem cenários”, destacando
que a proposta de proteção da Grande Reserva Mata Atlântica representa um
conjunto de valor “que é como ouro para a população que vive na região”. Segundo
conclui, “precisamos nos pautar pelas iniciativas bem-sucedidas de terceiros
[como a inspiração argentina]”, já que “as coisas estão acontecendo, muitas
vezes de forma silenciosa”.
·
Cidade do Paraná quer fazer da natureza sua
maior receita
Considerada referência
em natureza conservada, Antonina, no litoral do Paraná, quer transformar o
turismo ecológico em principal fonte de geração de receita para os cofres
municipais nos próximos anos, como adiantou à Mongabay o prefeito José Paulo
Vieira Azim. Atualmente, as atividades portuárias ocupam a primeira posição na
economia local. Integrante da Grande Reserva da Mata Atlântica, o município foi
um dos primeiros a assinarem a carta de adesão à Rede de Portais.
Para o prefeito, a
proteção da natureza deve ser reconhecida como uma causa fundamental dos
municípios brasileiros e precisa ser melhor compreendida pela sociedade. “Entre
tantos outros benefícios, enxergamos a biodiversidade como ativo capaz de
prover os direitos fundamentais dos cidadãos”, opina.
Com nove Unidades de
Conservação em seu território, o município arrecadou R$ 37,2 milhões de Imposto
sobre Mercadorias e Serviços Ecológico (ICMS Ecológico) entre 2005 e 2022.
Parte desse valor se deve à presença das duas maiores Reservas Particulares do
Patrimônio Natural (RPPN) da SPVS: a Reserva Natural Guaricica, com quase 9 mil
hectares, e a Reserva Natural das Águas, de cerca de 3 mil hectares.
Esse incentivo fiscal
previsto de forma pioneira na legislação do Paraná e em outros 17 estados
brasileiros compensa os municípios pela proteção da natureza a partir da gestão
de áreas protegidas, de acordo com critérios estabelecidos pelas leis estaduais.
Em Antonina, esses recursos representam 10% da arrecadação municipal anual.
Considerando a vocação
da cidade para a conservação da natureza, Azim está tentando engajar
proprietários rurais para a criação de novas RPPNs. Por essa adesão, eles podem
ser beneficiados pelo Programa de Pagamento por Serviços Ambientais (PSAM) já regulamentado no município em
2022. Para isso, são definidas metas de qualidade ambiental segundo
critérios do Instituto Água e Terra (IAT-PR), órgão ambiental estadual.
Ø
Donos de fazenda de “Terra e Paixão”
desviaram curso de rio e criaram peixes sem licenciamento
Em sua última semana
de exibição, a novela “Terra e Paixão”, da Rede Globo, conquistou o público da
teledramaturgia e garantiu o retorno dos bons índices de audiência à faixa das
nove, após a emissora amargar o pior resultado da história com sua antecessora,
“Travessia”. Ambientada no município fictício de Nova Primavera, no Mato Grosso
do Sul, a trama de Walcyr Carrasco narra a epopeia do clã La Selva, liderado
pelo impiedoso latifundiário Antônio (Tony Ramos), cujo filho Caio (Cauã
Raymond) se apaixona por sua rival, a professora Aline (Bárbara Reis).
A relação do casal de
protagonistas é construída logo nos primeiros episódios, quando Caio surpreende
a amada tomando um banho no rio que cruza sua propriedade, alvo da ambição de
Antônio La Selva. Algumas semanas depois, o herdeiro ajuda Aline a recuperar o
acesso à água, drenada a mando do personagem de Tony Ramos para impedir que a
rival irrigasse sua colheita.
Na vida real, os rios
de Deodápolis (MS) são ameaçados pelos donos do mesmo imóvel rural em que
“Terra e Paixão” foi gravada. A Fazenda Annalu, de 1.768 hectares, está em nome
de Aurélio Rolim Rocha — o Lelinho —, diretor do grupo Valor Commodities e responsável
por um dos maiores projetos de piscicultura do Mato Grosso do Sul. Ao todo, são
100 hectares de lâmina d’água, com capacidade instalada para produzir 4 mil
toneladas de peixes por ano, distribuídos no mercado interno e externo. O
carro-chefe são as tilápias, uma espécie exótica.
Na Fazenda Annalu,
pelo menos 37 tanques usados para a criação de peixes estão sobrepostos a um
afluente da margem direita do Rio Dourados, que margeia o imóvel a oeste,
dentro da Área de Preservação Permanente (APP). Além do impacto ambiental, a
atividade foi praticada sem licenciamento por pelo menos três anos.
De acordo com a
localização dos tanques, reproduzidos nos mapas que compõem os relatórios de
vistoria, é possível perceber que os criadouros foram escavados no leito do
rio, alterando a morfologia do corpo hídrico.
Em 2021, o Instituto
do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul) emitiu a Licença de Operação nº
76 para criação de 200 toneladas de peixes por ano na fazenda. O documento
confirma que o rio onde estão os tanques funciona como corpo receptor dos efluentes
da atividade de piscicultura. Os reflexos ambientais dos rejeitos gerados pela
criação de peixes alteram a composição química da água, além de gerar acúmulo
de matéria orgânica, entre outros poluentes, que, neste caso, acabam desaguando
no Rio Dourados.
Uma análise
cartográfica da propriedade, realizada pelo núcleo de pesquisas do De Olho nos
Ruralistas, confirmou que as coordenadas geográficas dos locais escavados para
a implantação dos tanques coincidem com o curso do rio que atravessa a
propriedade. Ao todo, a obra de instalação dos tanques abrangeu uma área
inundada de aproximadamente 46 hectares.
As informações são
oriundas do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) elaborado em março de 2022
pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) e firmado pelo empresário
Lelinho Rocha. No TAC, é listada uma série de irregularidades ambientais na área
da fazenda, reveladas por este observatório na reportagem: “Fazenda de “Terra e Paixão” tem desmatamento de reserva e
despejo ilegal de agrotóxicos“.
De Olho nos Ruralistas
questionou o grupo Valor Commodities e a Rede Globo sobre os passivos
ambientais da Fazenda Annalu. Até o fechamento da reportagem não houve retorno.
TANQUES
OPERAVAM SEM LICENCIAMENTO AMBIENTAL
Em junho de 2019,
quando foi realizado o primeiro laudo de vistoria técnica do Ministério
Público, o licenciamento para a atividade de piscicultura estava vencido havia
nove anos, desde janeiro de 2010. Durante esse período, o imóvel passou por
várias mãos.
Adquirida em 2003 por
Nilton Rocha Filho, avô dos atuais proprietários, a Fazenda Annalu foi vendida
dois anos depois para a comercializadora de grãos Granol, pelo valor de R$ 2,95
milhões de reais. Em 2016, os netos do antigo proprietário, Aurélio Rolim Rocha
— conhecido como Nelinho — e Nilton Fernando Rocha Filho, readquiriram a
propriedade por R$ 10 milhões. Apenas em 2021, após três anos operando sem
licenciamento, Nelinho regularizou os tanques para a criação de peixes.
Apesar da alteração do
curso do rio que passa pela propriedade, os danos causados pelos 37 tanques
escavados na margem direita do Rio Dourados não são citados em nenhum dos
relatórios de vistoria juntados às investigações dos possíveis danos ambientais
na Fazenda Annalu.
O TAC destaca ainda a
existência de 54 drenos, com extensões que variam entre 10 e 3.761 metros.
Todos eles sem licenciamento. Essas estruturas são utilizadas tanto para a
drenagem de terrenos alagados quanto para a captação de recursos hídricos
destinados à irrigação, pecuária e piscicultura.
De acordo com um
morador da região, que preferiu não se identificar, a construção dos drenos —
que ele chama de diques — “fez um estrago danado” nas margens do rio. “Eu sei
que fizeram um dique pra levar água pra irrigar os pivôs, um dique de uns de
quatros metros de largura por cinco de profundidade”, conta.
JUSTIFICATIVA
PARA ABERTURA DE DRENOS É DESMENTIDA PELA PRÓPRIA EMPRESA
Parte dos drenos
identificados pelo laudo técnico do MPMS invade a Área de Preservação
Permanente (APP) do Rio Dourados. Segundo o relatório anexado ao TAC, a
instalação de drenos é comum na região, sendo uma medida necessária para a
agricultura em áreas frequentemente inundáveis e com presença de lençol
freático superficial — o que, segundo o laudo de vistoria, é o caso da Fazenda
Annalu.
Apesar da
justificativa, a disposição das estruturas na propriedade demonstra que os
drenos possuem utilidade diversa, uma vez que se estendem muito além da área
inundável do solo.
Outra contradição
relacionada à drenagem na propriedade vem de um documento formulado pelos
proprietários da Annalu. Um laudo produzido em 2018 por uma empresa contratada
pelos fazendeiros para tentar comprovar a existência de Reserva Legal na
fazenda, a LG Consultoria Ambiental, foi taxativo em afirmar que “não há
excesso de água em qualquer época do ano, em função da boa permeabilidade,
porosidade e lençol freático muito profundo”.
Por meio de imagens de
satélite de 2009, o MPMS pôde constatar que a instalação dos drenos na
propriedade é anterior a julho de 2008. Segundo o laudo de vistoria, a abertura
de drenos no local altera as condições naturais de saturação e encharcamento do
solo.
Para quem mora na
região, o impacto é visível. “Tinha uns varjão lá que diz que nem sucuri
passava, mas abriram tudo”, lamenta um morador. Uma realidade ignorada pelas
imagens idílicas de monocultura e maquinários agrícolas disseminada na novela
“Terra e Paixão”.
Fonte: Mongabay/De
Olho nos Ruralistas
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