As crianças indígenas vão adiar o fim do
mundo, diz educadora
A inclusão da educação
indígena nas políticas públicas do país é um dos maiores desafios nas demandas
dos povos originários. Apesar de iniciativas e projetos implementados no
passado, muitas reivindicações ainda precisam ser atendidas. Nesta luta por um ensino
escolar indígena está a professora Rita Potiguara, de 54 anos, cujo povo
originário vive no sertão do Ceará. Rita nasceu na aldeia São José, em Cratéus.
A cidade, como ela define, tem uma face multiétnica, povoada por ciganos,
quilombolas e povos indígenas de diferentes etnias, como Guarani, Tabajara,
Tupinambá, além dos próprios Potiguara.
Em final de 2023, Rita
Potiguara participou do 10º Simpósio Internacional de Desenvolvimento da
Primeira Infância, um evento promovido pelo Núcleo Ciência pela
Infância, uma organização composta por várias instituições. Durante o evento, do qual a Amazônia Real também esteve
presente, Rita falou sobre sua área de atuação, que é a educação escolar
indígena. Ela também concedeu uma entrevista à agência durante o simpósio. Em
janeiro de 2024, Rita voltou a conversar com a reportagem. As duas partes da
entrevista estão reunidas nesta reportagem.
Na conversa, ela falou
sobre como começou sua atuação na educação indígena, o pioneirismo em várias
áreas e as dificuldades e desafios que enfrenta e da necessidade de continuar
lutando para derrubar barreiras. Rita também destacou sobre a crise humanitária
que impacta o povo Yanomami causada pela atividade de garimpo. “Eu acompanho a
situação dos Yanomami há muito tempo. Desde que sou gestora das políticas de
educação escolar indígena”, explicou.
Rita Potiguara se
descreve como “mulher indígena, mãe, tia, tia-avó, professora, gestora de
políticas públicas e pesquisadora”. Ela lembra que foi na educação que
encontrou a vocação de sua vida. O caminho foi longo.
Do começo como
monitora de creche até chegar ao Ministério da Educação (MEC), onde foi
conselheira entre os anos de 2010 a 2016; além de ter atuado como gestora na
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
(Secadi MEC), como coordenadora de educação escolar indígena e diretora de
políticas de educação indígena e de educação com relações etno-raciais, o que
fez dela uma liderança do povo Potiguara.
Atualmente, Rita é
diretora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), em
Brasília. Na Flacso, ela é coordenadora do programa de estudos e pesquisas
sobre povos indígenas, que estuda infâncias indígenas.
Apesar dos problemas
que a educação indígena enfrenta, Rita não desanima. “É um sonho, é um desejo.
É um ‘esperançar’ que eu tenho. Que nós todos cuidemos das crianças, de todas
as crianças, e no meu caso, especialmente, cuidemos das crianças indígenas”,
diz Rita. Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Amazônia Real.
·
Como a senhora tem
acompanhado a situação dos Yanomami, que é um assunto frequente nas suas
discussões?
Rita
Potiguara – Nós ficamos bastante otimistas com
a intervenção do governo federal. O governo federal, na pessoa do presidente
Lula e toda a sua equipe, está empreendendo esforços para, de fato, ajudar a
resolver esse problema que é histórico. Esse problema não é só dos últimos
anos, ele vem se arrastando há muito tempo. Nós ficamos [contentes] também com
a criação do Ministério dos Povos Indígenas e de uma atuação de uma indígena na
Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Sônia Guajajara e Joenia Wapichana,
respectivamente. É importante que tenha a atuação desses órgãos que tocam a
política indigenista, mas esses órgãos sozinhos não vão poder fazer muita
coisa.
Eles vão ter que estar
extremamente articulados com os outros órgãos, por exemplo, na questão
específica da educação, com o Ministério da Educação, com as secretarias
estaduais e municipais de Educação, porque nós, povos indígenas, elegemos a
educação como estratégia importante para a nossa própria sobrevivência. É
através da educação que a gente, de fato, pode exercer o protagonismo no
sentido de que a gente, quando passa pela escola, adquire as habilidades
necessárias para estar em pé de igualdade com as pessoas não indígenas,
sobretudo quando se ocupa lugares de poder que são estratégicos, que são
necessários.
Sobre as infâncias
indígenas, especialmente as infâncias do povo Yanomami, todos nós ficamos
extremamente comovidos, doloridos e revoltados com a situação de descaso e de
abandono em que as crianças ianomâmis estiveram durante esse tempo inteiro. É
necessário ter de fato um envolvimento no caso, não só do governo, mas de toda
a sociedade.
·
Como é sua relação com
os Yanomami?
Rita – Acompanho a situação dos Yanomami há muito tempo. Desde
que eu sou gestora das políticas de educação escolar indígena, então eu conheço
a realidade Yanomami. Fui em reunião com eles, fui em reunião
representando o Ministério da Educação, fui em reunião representando
universidades, na condição de pesquisadora. Então, essa é a minha trajetória de
gestora pública e de pesquisadora e também de liderança no campo da educação,
por parte do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena, que eu sou uma das coordenadoras.
Conheço a realidade Yanomami. O que me deixou mais [chocada] é a não
assistência, na verdade. A gente tem escola criada que não funciona, que não
tem estrutura. A gente tem várias comunidades que não têm escola. Eles
[Yanomami] solicitam que as escolas sejam criadas, ou que as escolas criadas,
que já tem, funcionem de fato.
·
Como é possível apoiar
as crianças Yanomami?
Rita
Potiguara – Os Yanomami estão numa situação de
crise e no momento de crise somente a coparticipação, a colaboração de todos os
setores da sociedade, de todas as pessoas individualmente também, porque cada
um de nós temos um poder, um micro poder, como diz Michel Foucault (1926-1984),
pensador francês, a gente também pode ajudar a resolver essa situação que é de
fato muito gritante, muito violenta e que leva de fato com que a
comunidade Yanomami venha a sofrer e a ter esse cenário que nós pudemos acompanhar
de forma bastante crítica, de forma bastante. Que notícias temos tido nos
últimos anos de como estamos cuidando das crianças? Por exemplo, que 70
crianças indígenas Yanomami morreram nos últimos quatro anos. Morrem quase 13
vezes mais, por causas evitáveis, do que a média nacional. A mortalidade
infantil entre os Yanomami se compara às maiores taxas do mundo, por exemplo,
como a da África subsaariana.
Outra notícia também
que fica difícil a gente alcançar esse esperançar que eu tenho, esse desejo,
quando a gente diz que a maioria das escolas Yanomami não tem prédio, que a
educação está precaríssima. De acordo com relatório do MEC, publicado na Folha de S. Paulo, a maior parte das escolas dos Yanomami está fechadas. As
escolas são criadas, têm professores, inclusive contratados, mas não funcionam
por algum motivo, e o motivo é a precariedade.
·
Como a senhora analisa
hoje a situação os modelos e a implementação da educação indígena em todo o
território brasileiro?
Rita
Potiguara – Lamentavelmente a gente tem acompanhado
através do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena… Eu sou uma das
coordenadoras nacionais do fórum e, em que pese a política de educação escolar
indígena que o país inteiro vem construindo ao longo dos últimos mais de 30
anos, a gente ainda não tem os resultados satisfatórios como a gente
merece.
Quais são esses
resultados? Eu não estou falando de testes padrões, de Ideb (Índice de
Desenvolvimento de Educação Básica), eu estou falando de qualidade de vida.
Porque nós achamos que as escolas indígenas são lugares importantes dentro de
uma comunidade no seguinte sentido: é através da educação que a gente pode
lutar por outros direitos. É na educação, é na escola, que a gente aprende que
temos direitos específicos, direitos como todos os demais brasileiros e que a
gente desenvolve também estratégias para lutar por esses direitos. Então, a
escola é fundamental, a educação é fundamental. Mas a gente tem, infelizmente,
ouvido relatos e acompanhado dados de que a qualidade da educação não é
suficientemente boa, e que nem em quantidade e nem em qualidade. A gente tem
ainda comunidades em que existe apenas o ensino fundamental, não existem
escolas de ensino médio em todas as aldeias, em todas as comunidades. Muitos
jovens indígenas, para cursar o ensino médio, têm que se deslocar da sua
comunidade e ir para centros urbanos e para cidades próximas. Ou seja, esvazia
o território. Sendo que o nosso desejo é que quem gostaria e deve permanecer na
comunidade que permaneça para que faça com que esse território seja vivo, seja
pulsante. Entretanto, a escola ainda é um dos fatores que deixa esse território
enfraquecido, esse território desassistido porque muitas famílias migram para
outras cidades fora da sua aldeia para poder cursar a educação básica. Então, a
gente ainda tem muito que caminhar na nossa política educacional no país.
·
Como a senhora
descreve a educação indígena dentro de um contexto diferente das realidades não
indígenas?
Rita
Potiguara – Quando se fala de educação escolar
indígena, quando a gente fala de crianças indígenas, a gente tem que considerar
as crianças indígenas em diferentes contextos. A gente tem crianças indígenas
vivendo em terras indígenas, tem crianças indígenas vivendo em comunidades que
são urbanas, mas estão em comunidades. Temos crianças indígenas que estão ali
apenas com suas famílias frequentando escolas não indígenas.
Então o primeiro ponto
é esse: a gente tem que pensar nessas situações, em que essas crianças se
encontram, e que tipo de escola, que tipo de educação, que tipo de educação
infantil, que tipo de cuidado nós devemos ter com essas crianças.
A primeira delas é a
que a gente diz que a educação infantil e a alfabetização devem ser assentadas
no paradigma da interculturalidade, porque a interculturalidade é o projeto que
nós escolhemos para nos relacionar bem com o outro, conosco, porque nós somos
muitas etnias, aqui é um país multiétnico. O último Censo deu conta de 305
etnias, falantes de 274 línguas, mas a gente escolheu o paradigma do viver bem
para todo mundo, que é a interculturalidade.
A gente quer se
relacionar, quer trocar, quer aprender com o outro. Então, o tratamento
adequado, o cuidado, a educação com carinho, com cuidado, que todas as crianças
indígenas merecem, é uma educação intercultural. Esses aspectos da
interculturalidade são aspectos amplamente garantidos na lei, desde a
Constituição Federal de 1988, a LDB, as diretrizes do Conselho Nacional de
Educação. Toda a legislação brasileira vai falar desse direito a essa educação
intercultural, embora essa interculturalidade não seja garantida na prática.
·
Durante sua palestra
no simpósio, a senhora citou o líder indígena Ailton Krenak sobre como “adiar o
fim do mundo”, que é título de um dos livros dele. Qual é o papel das crianças
indígenas nesta tentativa de adiar o fim do mundo que o Ailton alerta?
Rita
Potiguara – As crianças indígenas desempenham
dentro de uma comunidade e, sobretudo, dentro de uma comunidade indígena, um
papel. As crianças indígenas são importantes não só do que elas vão se tornar,
mas do que elas já são de fato. As crianças indígenas, assim como os maiores
sábios da comunidade, como são os pajés, como são os xamãs, elas são portadoras
de conhecimentos. E esses conhecimentos são necessários para o equilíbrio de
toda a comunidade, o equilíbrio inclusive ambiental. A gente sabe que as
crianças Yanomami, por exemplo, são as maiores conhecedoras da diversidade, da
fauna e da flora daquela comunidade. E elas têm essa ligação muito grande com o
cosmo de modo geral e que são importantíssimas para o equilíbrio dessas
comunidades e para o mundo inteiro.
·
A senhora também citou
outras obras, além do livro do Ailton Krenak: “A Queda do Céu”, do líder Davi
Yanomami, em parceria com o antropólogo Bruce Albert, e “Crianças indígenas:
ensaios antropológicos”, organizado por Aracy Lopes [antropóloga e pioneira em
educação indígena], para ajudar a entender a importância de cuidar melhor da
infância indígena. Como essas leituras ajudaram na sua formação, na sua
percepção da importância das crianças e no apoio para transmitir conhecimento?
Rita – O que trago dessas leituras e também da vivência como
gestora de políticas públicas, e pesquisadora que eu sou, três afirmativas: A
primeira delas é que as crianças indígenas, assim como os xamãs, evitam a
‘queda do céu’. A queda do céu é inevitável, principalmente, por conta do
modelo de desenvolvimento que nós escolhemos. Precisamos pensar em um outro
modelo de desenvolvimento socioambiental que considere todos os seres na sua
plenitude. As crianças indígenas vão ajudar a “adiar o fim do mundo”. E o
terceiro, não menos importante, é que cuidar das crianças indígenas é garantir
o nosso bem viver. Vocês sabem que a gente está aqui na terra para viver bem e
viver bem é o objetivo de todos nós, e todos nós temos uma grande
responsabilidade na construção desse bem viver e as crianças indígenas têm um
papel fundamental na construção desse bem viver e na presença cotidiana que é
esse bem viver para todo o mundo, para todos nós”, pontua.
Na obra da Aracy tem
estudos do pessoal da antropologia que pesquisam sobre a temática das infâncias
indígenas, das crianças indígenas, têm experiências de realidades de como é que
vivem determinadas crianças em determinados contextos. São estudos teóricos e
também da situação contextual de determinado povo com relação às suas
crianças.
·
Como iniciou sua
jornada na educação?
Rita
Potiguara – Comecei como monitora de creche,
daí fui cursando a única faculdade que nós tínhamos na cidade, que era uma
faculdade de pedagogia. Me formei como professora, passei no concurso público e
passei a ingressar nos quadros do magistério do estado do Ceará, como
professora concursada. E daí fui para a Secretaria de Educação Básica do Ceará,
onde assumi, junto com um grupo de profissionais, a equipe de educação escolar
indígena e ainda na década de 1990 a gente organizou a política por lá. E depois
disso fiz mestrado, doutorado com a temática indígena, pesquisei formação de
professores, prática pedagógica de professores. Assumi como representante
indígena, o Conselho Nacional de Educação, fui conselheira, representando os
professores indígenas. Tivemos no meu conselho a definição de diretrizes
importantes para a política de educação escolar indígena. Fiquei de 2012 até
2019, data da existência da Secadi [Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão]. Em 2019 a Secadi foi extinta, como
diretoria de políticas públicas, e uma dessas políticas era a educação escolar
indígena. Então tem uma trajetória no campo da educação escolar indígena muito
grande.
·
Como a senhora analisa
o cabo de guerra que se tornou a questão do Marco Temporal das terras
indígenas?
Rita
Potiguara – Nós entendemos que é cenário de disputa.
Quando o Partido dos Trabalhadores saiu do poder e entrou a extrema direita,
gestando o País, as discussões ficaram mais polarizadas. Os lugares de debate,
os lugares de diálogo e de trocas foram extintos. Com esse cenário atual
estamos tendo muitas dificuldades porque, de fato, a gente está recompondo
lugares, inclusive lugares de negociação, que para nós, povos indígenas, são
muito importantes, e que foram nos tirados.
De modo geral, o
resultado do marco temporal, é o resultado ainda do cenário brasileiro político
que a gente está vivendo. Ainda tem muita luta e nós, povos indígenas, estamos
firmes e fortes e resistentes para continuar no diálogo e na luta, que é uma luta
cotidiana, é uma luta de resistência.
As nossas organizações
indígenas, o que chamamos de movimento indígena, tem que continuar a apresentar
as suas demandas e, portanto, vão tentar questionar essa lei.. O movimento não
pode parar em uma situação desfavorável aos povos indígenas. A Apib (Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil) está cumprindo o seu papel político e
institucional de recorrer, de criticar, de tentar construir alianças que possam
reverter essa situação.
Fonte: Amazônia Real
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