Megaestrutura da soja descaracteriza
rio Tapajós e ameaça pesca artesanal
No feriado de 15 de novembro, a praia Beira
Rio, na área urbana de Itaituba (PA), estava cheia. Uma
família se reunia ao redor de uma churrasqueira, jovens ouviam música e
crianças brincavam na areia. Sentados em cadeiras de praia, quatro salva-vidas
vigiavam os banhistas que aproveitavam a tarde de folga para se refrescar
nas águas do Tapajós, a poucos metros
de uma barcaça verde parada na parte profunda do rio.
A embarcação integra a megaestrutura instalada
no município, destinada à movimentação de grãos, fertilizantes e combustíveis.
É a dinâmica da soja, em busca de lucro, que toma conta da região, ameaçando o
rio e suas dinâmicas de vida aquática, de lazer e de trabalho para a
comunidadade.
Outras barcaças trafegam por ali e, à
noite, as luzes brancas das Estações de Transbordo de Cargas (ETCs) – pontos de
transferência dos produtos, dos caminhões para as embarcações – se destacam na
margem direita do rio, onde está o distrito de Miritituba, na direção oposta de
Itaituba.
A travessia de um lado a outro é feita por
balsa, num trajeto que dura cerca de meia hora. Em pequenos barcos motorizados
– as rabetas – a viagem leva a metade do tempo. Ali, na margem direita do
Tapajós, ao lado do ponto de saída da balsa, o pescador Ednaldo Ares dos Santos
atracou seu barco, na manhã de 16 de novembro. Aquele era o último dia para
vender os pescados antes do início do período do defeso, quando a pesca e a
venda de algumas espécies ficam proibidas, para favorecer a reprodução dos
peixes.
Desde a chegada das embarcações e dos
portos, no entanto, a medida de proteção parece não ser suficiente para
preservar a fauna aquática. O piau, peixe bastante presente no Tapajós, tem
desaparecido, segundo o relato dos moradores da região. "Diminui devido ao
fluxo das embarcação, né? (sic). Esse peixe subia de lá para cá, agora não tá
mais subindo”, afirma o pescador.
Santos nasceu em uma família de pescadores
e se dedica à atividade desde a infância. Orgulha-se de ter conseguido, com a
pesca, garantir o estudo dos três filhos, todos já adultos. Agora, com a
chegada dos portos e das barcaças, o trabalho nas águas está cada vez mais
difícil.
·
O
mundo dos negócios contra a pesca artesanal
A primeira estação, da joint venture Unitapajós, composta pelas gigantes
do agronegócio Bunge e Amaggi, foi instalada em 2013, de acordo com o relatório
técnico A
soja no corredor logístico norte, publicado em abril de 2024 pelo Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc). Depois, vieram mais três, todas pertencentes a
empresas do agronegócio: a Companhia Norte de Navegação e Portos (Cianport); a
Cargill e a Hidrovias do Brasil S.A. Além disso, há uma ETC flutuante do grupo
Transportes Bertolini Ltda. Dessas estações, a carga é distribuída
para portos privados, de onde partem para países compradores da mercadoria.
“Dali pra baixo é tudo das empresas. Onde
nós pegávamos nossos peixes, agora não pode mais”, conta o pescador, indicando
a área dominada pelos portos, próxima da zona urbana de Miritituba, ao longo da
margem do rio.
Para instalar as estações e portos, as
empresas derrubaram trechos de mata e limitaram os pontos de acesso à água. De
acordo com Lany Cruz, secretária da Colônia de Pescadores Z 56, que atende
cerca de 400 pescadores de Itaituba e outros municípios da região, a área
controlada pelos portos na margem do Tapajós soma quase um quilômetro.
“Antes o peixe passava na beira do rio, hoje
não passa mais”, afirma Cruz. Quem antes pescava por ali, perto do distrito,
agora precisa viajar por horas para encontrar o pescado.
“A gente passava com a nossa rabetinha
beirando, hoje em dia não pode fazer isso”, conta o pescador aposentado Lázaro
Joaquim da Silva, morador de Miritituba e, assim, como Santos, praticante da
atividade desde a infância. “Tem gente daqui que pesca no município de Aveiro”,
diz. A viagem até lá, segundo Lázaro, é de cerca de três horas, em viagem de
rabeta.
A combinação entre desmatamento na margem
do rio, trânsito de grandes embarcações e restrição do acesso às margens
resultou em prejuízo para os pescadores. Antes da chegada dos portos, Santos
conseguia garantir até 200 quilos de pescado em três dias de trabalho. Agora,
no mesmo período, ele volta para casa com 40 quilos de peixe.
"Na época que eu cheguei aqui, passava
muito peixe. Eles moravam naquele buritizal, lá as malhadeiras embolavam de
pescado. Hoje em dia não pega mais lá na beira do rio. Foi drástica a
diminuição", diz Cruz.
De acordo com a Confederação da Agricultura
e Pecuária do Brasil (CNA), diariamente cerca de 1,8 mil caminhões,
transportando um total aproximado de 84 mil toneladas de grãos, saem de Sinop
(MT) em direção ao Eixo Tapajós, tendo como destino o porto de Santarém (PA),
onde são descarregados e embarcados para o exterior.
Em Miritituba, as cargas que chegam do Mato
Grosso mudam de modal e são embarcadas em barcaças que seguem pela hidrovia do
Tapajós até encontrar a hidrovia do Amazonas, também combinada com a do rio
Madeira.
"Os portos se instalaram na rota do
peixe. E aí, depois, foi passando o tempo, os peixes saíram da rota. Com isso,
eles pegam menos peixe”, afirma Cruz, que acompanha a reclamação dos pescadores.
Com as dificuldades, os pescadores, assim
como os peixes, também foram desaparecendo. “Uns 5 anos atrás a gente ia
para aí, a gente topava cinco, seis, sete canoas pescando. Agora você vai, não
topa mais ninguém”, conta Santos.
·
Empresas
ignoraram consulta prévia, denuncia Ministério Público
Em 2016, o Ministério Público do Pará
(MPPA) moveu uma ação civil pública em face da Secretaria Estadual do Meio
Ambiente e Sustentabilidade do Pará, da Secretaria de Portos da Presidência da
República, da Agência Nacional de Transporte Aquaviário (Antaq) e das empresas
Rio Turia Serviços Logísticos, Hidrovias do Brasil e Cianport.
O documento aponta falhas no processo de
elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto
Ambiental (RIMA) e denuncia a ausência de consulta prévia, livre e informada
junto às comunidades impactadas pelas obras.
Além dos pescadores
e ribeirinhos, que sofrem com a limitação do acesso ao rio e a redução da
quantidade de peixes, os empreendimentos causam impacto nas aldeias
aldeias indígenas da Praia do Índio, Praia do Mangue e Sawré-Muybu, do povo Munduruku. A ação ressalta que, além de prejuízos na
flora e fauna, os empreendimentos podem ocasionar o aumento populacional e dos
limites urbanos, ameaçando as aldeias que ficam perto da cidade. Além disso,
essas comunidades podem sofrer com o ruído das embarcações.
“Os EIA/RIMA já
elaborados desconsideraram a existência de aldeias indígenas e comunidades
tradicionais atingidas pelo projeto das Estações de Transbordo de Cargas
– até o presente momento, tanto empresa quanto órgãos públicos não
anunciaram qualquer intenção na realização da consulta prévia”, informa o
documento.
A consulta prévia,
livre e informada é um mecanismo de proteção de comunidades tradicionais,
estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada em 1989
e ratificada pelo Brasil em 2002. Na prática, isso significa que essas
populações têm o direito de acompanhar e tomar parte em decisões sobre
empreendimentos que impactem os seus territórios.
Maria Zuleide, pescadora e esposa de
Ednaldo, lembra de uma reunião, realizada no momento da chegada da Cargill no
território. “Só que como a gente não entendia muito dos empreendimentos, a
gente só ouviu”, diz.
Em outro trecho, o texto da ação indica a
falha dos órgãos públicos em realizar essa etapa do processo. “Ocorre que o
Estado do Pará e a Antaq aprovaram esse empreendimento, tendo algumas empresas
envolvidas dado início ao processo de licenciamento, sem consultar os indígenas
e as populações tradicionais sobre os impactos em suas vidas”, informa o
documento do Ministério Público. O caso está em trâmite na justiça. Enquando
isso, as ECTs seguem em operação.
·
Em
Santarém, porto da Cargill transformou praia em espaço abandonado
O destino das embarcações que partem de
Miritituba são os portos de Santana, no Amapá, e os municípios paraeneses de
Barcarena e Santarém, onde, em 2003, a empresa Cargill instalou uma grande
estrutura sobre a praia de Vera Paz, em área cedida pela prefeitura.
Antes da chegada da empresa, Vera Paz era
um ponto de lazer para os moradores da região e território sagrado para
indígenas e ribeirinhos. O porto funciona há 20 anos sem licenciamento
ambiental, de acordo com estudos produzidos pela organização Terra de Direitos.
A megaestrutura de escoamento de grãos fica
no canto esquerdo da orla. O caminho até lá é feito por uma passarela de
concreto que conduz a quiosques e uma quadra de basquete. Hoje, tudo está
abandonado. O mato cresce pelas rachaduras do muro da quadra, os quiosques
estão fechados e o lixo se acumula no mato ao redor. “Aquela área era uma
praia. Depois da Cargill, ela se transformou naquilo”, conta o comunicador
popular Allan Hios.
No Facebook, o perfil
Nostalgia Santarém publica fotos da praia onde é possível ver, sobre a areia
clara, árvores e quiosques. Nos comentários da rede social, pessoas lamentam a
mudança. "Nem dá pra acreditar que era a Vera Paz", escreve uma
usuária do Facebook, numa foto em que três pessoas bricam na água esverdeada.
"Mas o que observo hoje é um acúmulo
de mato na área, mesmo com a construção ainda resta areia por baixo, mas não
limpam a área e fica aquela imagem de abandono", comenta outro
usuário.
A ribeirinha Maria Ivete Bastos dos Santos,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras
Familiares do Município de Santarém, mora na comunidade rural de Dourado, na
margem oposta do rio. Quando a praia ainda existia, ela costumava atracar ali
sua canoa, nas visitas à cidade de Santarém. “O porto da Cargill veio
devastando a nossa vida, a vida do povo de Santarém”, lamenta Bastos. Ela diz
que o movimento das barcaças tirou a tranquilidade de quem trafega pelo rio. “O
impacto é violento”.
Ela lembra de quando a praia era um ponto
de encontro dos moradores e de comércio para os pequenos produtores da
região. “Aqueles barraqueiros que estavam aí ao lado instalado aí na do
lado da praia Vera Paz, que tiveram que sair dessas barracas nunca foram
indenizados por ninguém, aqueles que vendiam seus picolés pela praia, suas
castanhas”, relata.
Além da Cargill, outras três empresas do
agronegócio estão em processo de construção de portos no município, de acordo
com um estudo a Terra de Direitos. Uma das obras é de responsabilidade da
Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps), cujo relatório de impacto
ambiental foi publicado em outubro do ano de 2015. A construção de outros
portos visa favorecer as atividades do Grupo Cevital, da Argélia, que tem
plantações na região centro-oeste do Brasil.
Na tarde do domingo, dia 17 de novembro,
Bastos vendia produtos na Feira da Produção Familiar do Baixo Amazonas
(Fepam), em uma praça em Santarém, ao lado de outros produtores da agricultura
familiar. Com orgulho, mostrava as frutas colhidas na sua comunidade: banana,
mamão, limão e sapotilha.
Para chegar até ali, veio de canoa, agora
atracada em outro ponto, longe da praia de Vera Paz. “A gente achava que tudo
era nosso por direito, a gente acreditava porque nunca teve conflito para
quererem tomar a nossa terra. Nossa terra era demarcada por uma árvore. É uma
cuieira, ou é uma seringueira, uma laranjeira, alguma coisa. Até ali é o meu,
dali para frente é do vizinho. Essa foi a demarcação de respeito”, finaliza.
Fonte: Brasil de
Fato
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