Serviços
secretos sírios aprenderam com nazistas e a Stasi
As imagens que circulam nas
redes, da libertação do
presídio de Sednayah, na Síria, são pavorosas. Em seus cinco andares subterrâneos, veem-se indivíduos
esqueléticos, outros em celas superlotadas, muitos tendo que ser carregados
para fora.
Os libertadores filmaram uma
sala em que homens acocorados na penumbra gritam, aparentemente vítimas de
distúrbios psíquicos graves em consequência das torturas sofridas. Há os
cadáveres de numerosas vítimas de tortura. Em outra sala encontram-se montes de
sapatos.
Segundo a mídia, em Sednayah
havia milhares de presos no dia da libertação. Um relatório da ONG Anistia Internacional conclui
que, entre setembro de 2011 e dezembro de 2015, lá houve até 15 mil
execuções não oficiais.
Alguns internautas traçam
uma conexão direta com o regime
nacional-socialista da Alemanha (1933-1945), em especial com o
capitão da SS Alois Brunner, que escapou para a Síria em 1945. Ele é
considerado um dos principais subalternos de Adolf Eichmann, responsável pela
perseguição, expulsão e deportação de 6 milhões de judeus.
No entanto, Brunner não era
o único membro da organização paramilitar SS ou da Wehrmacht (Forças Armadas da
Alemanha nazista), ressalva a pesquisadora Noura Chalati, da Universidade de
Erfurt: "Muitos foram integrados diretamente no Estado-maior sírio, com um
contrato de um ano, como consultores do Exército e do serviço secreto
militar."
A documentação indica que o
Estado-maior se interessou por eles sobretudo por serem agora apátridas e
oriundos de um país supostamente sem histórico colonialista, e, claro, por
trazerem experiência ativa de guerra, inclusive métodos de extermínio em massa.
<><> Inventor de
métodos criativos de tortura
Condenado à morte in
absentia na França em 1953, Alois Brunner chegou no ano seguinte na Síria, sob
identidade falsa. Como relata o historiador israelense Danny Orbach em seu
livro Fugitives, sobre
nazistas foragidos, ele se envolveu no contrabando de armas ocidentais para
países árabes.
Em 1959, quando o diretor de
um dos serviços secretos mandou prendê-lo por suspeita de espionagem,
ameaçando-o com prisão perpétua, o alemão revelou sua verdadeira identidade e
colocou-se a serviço da inteligência síria. Nos anos seguintes, treinou agentes
em antiespionagem e técnicas de interrogatório.
Entre seus discípulos
estiveram futuros figurões, como o general Ali Haidar, durante 26 anos chefe
das forças especiais sírias; Ali Dubsa, diretor do serviço secreto militar, ou
Mustafa Tlass, o ministro da Defesa do regime Assad responsável pela supressão
do levante da Irmandade Muçulmana em 1982, em Hama, com um saldo de 30 mil
mortos.
Um instrumento de tortura
empregado até recentemente era a assim chamada "cadeira alemã", em
que a espinha dorsal das vítimas era dobrada para trás, até se fraturar. Alguns
atribuíam a invenção a Brunner. Embora não haja provas, isso é possível,
escreve Orbach. Certo está que "ele ajudou a criar instrumentos de tortura
engenhosos".
O ex-capitão da SS prestou
serviços valiosos ao ditador Hafez al Assad, pai de Bashar,
no poder de 1970 até a morte, em 2000: "Ele sabia perfeitamente como obter
e utilizar informações, como manipular seres humanos – o que é a meta das
atividades dos serviços secretos." Segundo seu biógrafo Didier Epelbaum,
em Alois Brunner. La haine irréductible (O
ódio implacável): "Ele sabe mais do que qualquer oficial sírio. Por isso
acompanha a reestruturação do serviço secreto."
Graças a seus conhecimentos,
Brunner conseguiu se manter nos círculos mas altos do establishment político,
comentava em 2017 o jornalista Hedi Aouidj à emissora France Inter: "O
acerto era: proteção em troca know-how nazista. Brunner treinou o serviço
secreto nazista, o primeiro círculo em torno de Hafez", relata o repórter
investigativo, que em 2017 lançou luz sobre os últimos anos de Brunner como
preso do regime Assad, até sua morte, presumivelmente em 2002.
<><> O pior de
ambos os mundos"
Contudo, a elite estatal
síria não recebia ajuda só de nazistas foragidos, mas se beneficiou igualmente
da Serviço de Segurança Estatal da comunista República Democrática Alemã (RDA), conhecido pela sigla Stasi. Isso se encaixava na lógica
da Guerra Fria, já que na
década de 1960 o país árabe não pertencia a nenhuma das facções, mas
aproximou-se cada vez mais do Bloco Leste.
Noura Chalati, especializada
nas relações entre Damasco e a Stasi, conta que os primeiros contatos nesse
sentido partiram de uma consulta do governo sírio, em 1966. Na época, este se
interessava por tudo, de técnica armamentista à criação e estruturação de serviços
secretos e instituições políticas.
"No entanto, o Serviço
de Segurança Estatal alemão mostrou-se bastante reticente", afirma. Obter
provas sobre o assunto não é fácil, porém, já que na época da queda da RDA, em
1989, seu serviço secreto destruiu os dossiês relacionados.
É, de fato, difícil provar
uma influência direta, tanto dos nazistas como da Stasi, "mas, tudo
somado, resulta um quadro que combina bastante bem com o que vemos no momento,
na Síria", prossegue Chalati.
Assim, os dossiês atualmente
encontrados por toda parte comprovam como os serviços de inteligência sírios
eram marcados por uma burocracia transbordante, "um fenômeno que
conhecemos da RDA e da Stasi", destaca a pesquisadora da Universidade de
Erfurt.
"Não posso afirmar que
tenha havido aí uma correlação causal direta, mas o fenômeno chama a atenção.
Possivelmente é uma característica dos serviços secretos, em geral – para
sabermos, é preciso ainda mais pesquisa. Certo é que o serviço secreto sírio
era um instrumento de repressão e tortura do regime, e cometeu crimes da pior
espécie contra os direitos humanos."
Esse modo de proceder evoca
menos os métodos do Stasi do que os do nacional-socialismo e sua Gestapo.
"No fundo, temos um regime e um complexo de inteligência que combina o
pior de ambos os mundos", conclui Noura Chalati.
¨ A queda do
governo de Assad na Síria. Por Vijay Prashad
Quando as
forças rebeldes lideradas por Hayat Tahrir al-Sham (Comitê de Libertação da
Síria) tomaram Damasco, a capital da Síria, em 7 de dezembro de 2024, o
presidente sírio Bashar al-Assad embarcou em um voo para Moscou, na Rússia.
Assim terminou o governo da família Assad, iniciado quando Hafez al-Assad
(1930-2000) assumiu a presidência em 1971 e continuado por seu filho Bashar
desde 2000 — um período de 53 anos.
Hayat Tahrir
al-Sham (HTS), que tomou Damasco, foi formado em 2017 a partir dos
remanescentes dos afiliados da al-Qaeda na Síria, Jabhat al-Nusra (Frente para
a Conquista da Síria), e é liderado por seu emir Abu Jaber Shaykh e pelo
comandante militar Abu Mohammed al-Jolani.
Nos últimos
sete anos, o HTS esteve restrito à cidade de Idlib, no norte da Síria. Em 2014,
um grupo de veteranos da al-Qaeda criou a rede Khorasan (liderada por Sami
al-Uraydi, o líder religioso), com o objetivo de controlar a cidade e os
movimentos islamistas. No ano seguinte, o al-Nusra tentou formar alianças com
outras forças islamistas, como o Ahrar al-Sham, particularmente para governar a
cidade.
A intervenção
militar russa em 2015 prejudicou a capacidade desses grupos de avançar além de
Idlib, o que levou à ruptura formal de muitos islamistas com a al-Qaeda em 2016
e à criação do HTS em janeiro de 2017. Aqueles que permaneceram ligados à
al-Qaeda formaram o Hurras al-Din (ou Guardiões da Organização Religiosa). No
final daquele ano, o HTS assumiu a iniciativa e se tornou a principal força em
Idlib, tomando os conselhos locais pela cidade e declarando que era o lar do
Governo de Salvação Sírio.
Quando o
Exército Árabe Sírio, força militar do governo, avançou em direção a Idlib no
início de 2020, a Turquia invadiu o norte da Síria para defender os islamistas.
Essa invasão resultou no cessar-fogo russo-turco em março de 2020, que permitiu
que o HTS e outros permanecessem em Idlib sem sofrerem grandes danos. O HTS
reconstruiu as suas fileiras por meio de alianças com forças armadas apoiadas
pela Turquia e combatentes de toda a Ásia Central (incluindo muitos uigures do
Partido Islâmico do Turquistão).
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Operação Dissuação da Agressão
Lançada pelo
HTS em novembro de 2024, com apoio turco e israelense, a operação desceu pela
rodovia M5 de Alepo a Damasco em cerca de quatorze dias. O Exército Árabe Sírio
se dissolveu diante deles, e os portões de Damasco foram abertos sem grande
derramamento de sangue.
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A Blitzkrieg [guerra-relâmpago] Jihadista
A
surpreendente vitória do HTS foi prevista em novembro por autoridades
iranianas, que informaram a Assad sobre a fraqueza das defesas do estado devido
aos ataques israelenses sustentados contra posições do exército sírio, à
invasão israelense do Líbano e à guerra na Ucrânia.
Quando o
ministro das Relações Exteriores do Irã, Abbas Araghchi, se encontrou com Assad
em Damasco após a queda de Alepo para os rebeldes, Assad afirmou que aquilo não
era uma derrota, mas sim uma “retirada tática.” Essa avaliação revelou-se
ilusória.
Araghchi,
ciente disso, disse a Assad que o Irã simplesmente não tinha capacidade de
enviar novas tropas para defender Damasco. Também ficou claro para o governo
Assad que os russos não tinham capacidade excedente para defender o governo,
nem mesmo a base naval russa em Tartus. Durante o avanço do HTS contra o
exército sírio, o enviado presidencial russo para a Síria, Alexander
Lavrentyev, afirmou estar em contato com o governo Trump que assumiria para
discutir um acordo entre “todas as partes” no conflito sírio.
Nem a Rússia
nem o Irã acreditavam que o governo Assad seria capaz de derrotar
unilateralmente os diversos rebeldes e remover os Estados Unidos da sua
ocupação dos campos de petróleo do leste. Um acordo era a única saída, o que
significava que nem o Irã nem a Rússia estavam dispostos a comprometer mais
tropas para defender o governo Assad.
Desde 2011, a
força aérea de Israel atacou várias bases militares sírias, incluindo aquelas
que hospedavam tropas iranianas. Esses ataques degradaram a capacidade militar
síria ao destruir armamentos e suprimentos. Desde outubro de 2023, Israel
intensificou os seus ataques dentro da Síria, incluindo alvos como forças
iranianas, defesas aéreas sírias e instalações de produção de armas.
Em 4 de
dezembro, os chefes militares do Irã (General Major Mohammad Bagheri), Iraque
(General Major Yahya Rasool), Rússia (Ministro da Defesa Andrey Belousov) e
Síria (General Abdul Karim Mahmoud Ibrahim) se reuniram para avaliar a situação
na Síria.
Discutiram o
avanço do HTS vindo de Alepo e concordaram que, com o frágil cessar-fogo no
Líbano e as forças enfraquecidas do governo sírio, isso era um “cenário
perigoso.” Embora tenham afirmado apoiar o governo em Damasco, nenhuma medida
concreta foi tomada.
Enquanto isso,
os ataques israelenses dentro da Síria aumentaram a desmoralização no exército
sírio, que não foi devidamente reorganizado após o impasse com os rebeldes em
Idlib desde 2017.
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A Vantagem de Israel
De maneira
coordenada, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu foi às Colinas de
Golã ocupadas, que Israel tomou da Síria em 1973, e anunciou: “Este é um dia
histórico na história do Oriente Médio.”
Ele afirmou
que o seu governo ordenou ao exército israelense que invadisse a zona de buffer
da ONU entre a ocupação israelense de Golã e os postos do exército sírio
estabelecidos após o armistício de 1974.
Ele então
afirmou que o seu governo havia ordenado ao exército israelense que invadisse a
zona de buffer da ONU entre a ocupação israelense de Golã e os postos do
exército sírio estabelecidos após o armistício de 1974. Tanques israelenses
avançaram na região rural da governadoria de Quneitra e tomaram a cidade
principal.
A fronteira
entre Israel e a Síria foi redesenhada por essa invasão, já que Israel avançou
vários quilômetros para dentro do território sírio, ocupando quase toda a
extensão da fronteira.
Nos dias
finais do avanço do HTS sobre Damasco, a força aérea israelense forneceu apoio
aéreo aos rebeldes. Eles bombardearam bases militares e a sede da inteligência
síria no centro de Damasco. Alegando que queriam destruir depósitos de armas
antes que os rebeldes os tomassem, os israelenses atingiram bases que abrigavam
tropas sírias e estoques de armas que poderiam ter sido usadas para defender
Damasco, incluindo a Base Aérea de Mezzah.
Autoridades
israelenses declararam que continuarão esses ataques aéreos, mas não indicaram
quem pretendem atingir.
O assalto de
Israel à Síria se intensificou durante o movimento de protesto em 2011. Com os
combates entre rebeldes e o governo sírio se espalhando pelo sul da Síria,
próximo à fronteira israelense, Israel começou a disparar contra forças sírias
do outro lado da fronteira. Em março de 2013, por exemplo, os israelenses
dispararam mísseis contra postos militares sírios, enfraquecendo-os e
fortalecendo os rebeldes.
No final de
2013, Israel criou a Divisão 210, um comando militar especial, para iniciar
engajamentos ao longo da linha de armistício entre Israel e a Síria. É
importante ressaltar que, quando o antecessor do HTS, o afiliado da al-Qaeda
Jabhat al-Nusra, começou a fazer avanços ao longo da linha de controle
israelense, Israel não os atacou. Em vez disso, Israel atacou o governo sírio,
derrubando aviões da força aérea síria e assassinando aliados sírios
importantes, como o General Mohammad Ali Allahdadi, um general iraniano, em
janeiro de 2015, e Samir Kuntar, líder do Fatah, no final de 2015.
Um
ex-porta-voz em Damasco disse que os israelenses efetivamente forneceram apoio
aéreo ao ataque do HTS contra a capital.
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O Futuro da Síria
Assad deixou a
Síria sem fazer anúncio algum. Segundo ex-funcionários do governo em Damasco,
alguns líderes seniores partiram com ele ou fugiram para a fronteira com o
Iraque antes da queda de Damasco.
O silêncio de
Assad deixou muitos sírios perplexos, especialmente aqueles que acreditavam
fundamentalmente que o Estado os protegeria do ataque de grupos como o HTS.
O colapso do
governo Assad tornou-se evidente quando a sua Guarda Republicana não tentou
defender a cidade e quando ele partiu sem palavras de encorajamento para o seu
povo.
O país está
polarizado em relação ao novo governo. Setores da população, cuja qualidade de
vida foi degradada pela guerra e pelas sanções, celebram a abertura e estão nas
ruas comemorando a nova situação. O contexto mais amplo do Oriente Médio não é
sua preocupação imediata, embora, dependendo das ações de Israel, isso possa
mudar.
Uma parte
considerável está preocupada com o comportamento dos islamistas, que usam
termos depreciativos contra muçulmanos não sunitas, como nusayriyya (para
os alauítas, comunidade da família al-Assad) e rawafid (como a
grande população xiita na Síria).Chamar muçulmanos não sunitas de ahl
al-batil ou “os perdidos” e usar uma linguagem salafista forte sobre
apostasia e sua punição desencadeia medo entre aqueles que podem ser alvos de
ataques.
Se o novo
governo será capaz de controlar as suas forças, motivadas por essa ideologia
sectária, ainda está por ser visto.
Esse
sectarismo é apenas o início das contradições que surgirão quase imediatamente.
Como o novo
governo lidará com as incursões israelenses, turcas e dos EUA no território
sírio? Tentará recuperar essas terras?
Qual será a
relação entre o governo sírio e os seus vizinhos, particularmente o Líbano?
Os milhões de
refugiados sírios retornarão ao seu país agora que a base para sua migração foi
removida? Se retornarem, o que os aguardará dentro da Síria?
E,
centralmente, o que tudo isso significará para o genocídio contínuo dos
palestinos por parte dos israelenses?
Fonte: DW Brasil/Brasil
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