sexta-feira, 13 de dezembro de 2024


Serviços secretos sírios aprenderam com nazistas e a Stasi

As imagens que circulam nas redes, da libertação do presídio de Sednayah, na Síria, são pavorosas. Em seus cinco andares subterrâneos, veem-se indivíduos esqueléticos, outros em celas superlotadas, muitos tendo que ser carregados para fora.

Os libertadores filmaram uma sala em que homens acocorados na penumbra gritam, aparentemente vítimas de distúrbios psíquicos graves em consequência das torturas sofridas. Há os cadáveres de numerosas vítimas de tortura. Em outra sala encontram-se montes de sapatos.

Segundo a mídia, em Sednayah havia milhares de presos no dia da libertação. Um relatório da ONG Anistia Internacional conclui que, entre setembro de 2011 e dezembro de 2015, lá houve até 15 mil execuções não oficiais.

Alguns internautas traçam uma conexão direta com o regime nacional-socialista da Alemanha (1933-1945), em especial com o capitão da SS Alois Brunner, que escapou para a Síria em 1945. Ele é considerado um dos principais subalternos de Adolf Eichmann, responsável pela perseguição, expulsão e deportação de 6 milhões de judeus.

No entanto, Brunner não era o único membro da organização paramilitar SS ou da Wehrmacht (Forças Armadas da Alemanha nazista), ressalva a pesquisadora Noura Chalati, da Universidade de Erfurt: "Muitos foram integrados diretamente no Estado-maior sírio, com um contrato de um ano, como consultores do Exército e do serviço secreto militar."

A documentação indica que o Estado-maior se interessou por eles sobretudo por serem agora apátridas e oriundos de um país supostamente sem histórico colonialista, e, claro, por trazerem experiência ativa de guerra, inclusive métodos de extermínio em massa.

<><> Inventor de métodos criativos de tortura

Condenado à morte in absentia na França em 1953, Alois Brunner chegou no ano seguinte na Síria, sob identidade falsa. Como relata o historiador israelense Danny Orbach em seu livro Fugitives, sobre nazistas foragidos, ele se envolveu no contrabando de armas ocidentais para países árabes.

Em 1959, quando o diretor de um dos serviços secretos mandou prendê-lo por suspeita de espionagem, ameaçando-o com prisão perpétua, o alemão revelou sua verdadeira identidade e colocou-se a serviço da inteligência síria. Nos anos seguintes, treinou agentes em antiespionagem e técnicas de interrogatório.

Entre seus discípulos estiveram futuros figurões, como o general Ali Haidar, durante 26 anos chefe das forças especiais sírias; Ali Dubsa, diretor do serviço secreto militar, ou Mustafa Tlass, o ministro da Defesa do regime Assad responsável pela supressão do levante da Irmandade Muçulmana em 1982, em Hama, com um saldo de 30 mil mortos.

Um instrumento de tortura empregado até recentemente era a assim chamada "cadeira alemã", em que a espinha dorsal das vítimas era dobrada para trás, até se fraturar. Alguns atribuíam a invenção a Brunner. Embora não haja provas, isso é possível, escreve Orbach. Certo está que "ele ajudou a criar instrumentos de tortura engenhosos".

O ex-capitão da SS prestou serviços valiosos ao ditador Hafez al Assad, pai de Bashar, no poder de 1970 até a morte, em 2000: "Ele sabia perfeitamente como obter e utilizar informações, como manipular seres humanos – o que é a meta das atividades dos serviços secretos." Segundo seu biógrafo Didier Epelbaum, em Alois Brunner. La haine irréductible (O ódio implacável): "Ele sabe mais do que qualquer oficial sírio. Por isso acompanha a reestruturação do serviço secreto."

Graças a seus conhecimentos, Brunner conseguiu se manter nos círculos mas altos do establishment político, comentava em 2017 o jornalista Hedi Aouidj à emissora France Inter: "O acerto era: proteção em troca know-how nazista. Brunner treinou o serviço secreto nazista, o primeiro círculo em torno de Hafez", relata o repórter investigativo, que em 2017 lançou luz sobre os últimos anos de Brunner como preso do regime Assad, até sua morte, presumivelmente em 2002.

<><> O pior de ambos os mundos"

Contudo, a elite estatal síria não recebia ajuda só de nazistas foragidos, mas se beneficiou igualmente da Serviço de Segurança Estatal da comunista República Democrática Alemã (RDA), conhecido pela sigla Stasi. Isso se encaixava na lógica da Guerra Fria, já que na década de 1960 o país árabe não pertencia a nenhuma das facções, mas aproximou-se cada vez mais do Bloco Leste.

Noura Chalati, especializada nas relações entre Damasco e a Stasi, conta que os primeiros contatos nesse sentido partiram de uma consulta do governo sírio, em 1966. Na época, este se interessava por tudo, de técnica armamentista à criação e estruturação de serviços secretos e instituições políticas.

"No entanto, o Serviço de Segurança Estatal alemão mostrou-se bastante reticente", afirma. Obter provas sobre o assunto não é fácil, porém, já que na época da queda da RDA, em 1989, seu serviço secreto destruiu os dossiês relacionados.

É, de fato, difícil provar uma influência direta, tanto dos nazistas como da Stasi, "mas, tudo somado, resulta um quadro que combina bastante bem com o que vemos no momento, na Síria", prossegue Chalati.

Assim, os dossiês atualmente encontrados por toda parte comprovam como os serviços de inteligência sírios eram marcados por uma burocracia transbordante, "um fenômeno que conhecemos da RDA e da Stasi", destaca a pesquisadora da Universidade de Erfurt.

"Não posso afirmar que tenha havido aí uma correlação causal direta, mas o fenômeno chama a atenção. Possivelmente é uma característica dos serviços secretos, em geral – para sabermos, é preciso ainda mais pesquisa. Certo é que o serviço secreto sírio era um instrumento de repressão e tortura do regime, e cometeu crimes da pior espécie contra os direitos humanos."

Esse modo de proceder evoca menos os métodos do Stasi do que os do nacional-socialismo e sua Gestapo. "No fundo, temos um regime e um complexo de inteligência que combina o pior de ambos os mundos", conclui Noura Chalati.

 

¨      A queda do governo de Assad na Síria. Por Vijay Prashad

Quando as forças rebeldes lideradas por Hayat Tahrir al-Sham (Comitê de Libertação da Síria) tomaram Damasco, a capital da Síria, em 7 de dezembro de 2024, o presidente sírio Bashar al-Assad embarcou em um voo para Moscou, na Rússia. Assim terminou o governo da família Assad, iniciado quando Hafez al-Assad (1930-2000) assumiu a presidência em 1971 e continuado por seu filho Bashar desde 2000 — um período de 53 anos.

Hayat Tahrir al-Sham (HTS), que tomou Damasco, foi formado em 2017 a partir dos remanescentes dos afiliados da al-Qaeda na Síria, Jabhat al-Nusra (Frente para a Conquista da Síria), e é liderado por seu emir Abu Jaber Shaykh e pelo comandante militar Abu Mohammed al-Jolani.

Nos últimos sete anos, o HTS esteve restrito à cidade de Idlib, no norte da Síria. Em 2014, um grupo de veteranos da al-Qaeda criou a rede Khorasan (liderada por Sami al-Uraydi, o líder religioso), com o objetivo de controlar a cidade e os movimentos islamistas. No ano seguinte, o al-Nusra tentou formar alianças com outras forças islamistas, como o Ahrar al-Sham, particularmente para governar a cidade.

A intervenção militar russa em 2015 prejudicou a capacidade desses grupos de avançar além de Idlib, o que levou à ruptura formal de muitos islamistas com a al-Qaeda em 2016 e à criação do HTS em janeiro de 2017. Aqueles que permaneceram ligados à al-Qaeda formaram o Hurras al-Din (ou Guardiões da Organização Religiosa). No final daquele ano, o HTS assumiu a iniciativa e se tornou a principal força em Idlib, tomando os conselhos locais pela cidade e declarando que era o lar do Governo de Salvação Sírio.

Quando o Exército Árabe Sírio, força militar do governo, avançou em direção a Idlib no início de 2020, a Turquia invadiu o norte da Síria para defender os islamistas. Essa invasão resultou no cessar-fogo russo-turco em março de 2020, que permitiu que o HTS e outros permanecessem em Idlib sem sofrerem grandes danos. O HTS reconstruiu as suas fileiras por meio de alianças com forças armadas apoiadas pela Turquia e combatentes de toda a Ásia Central (incluindo muitos uigures do Partido Islâmico do Turquistão).

<><> Operação Dissuação da Agressão

Lançada pelo HTS em novembro de 2024, com apoio turco e israelense, a operação desceu pela rodovia M5 de Alepo a Damasco em cerca de quatorze dias. O Exército Árabe Sírio se dissolveu diante deles, e os portões de Damasco foram abertos sem grande derramamento de sangue.

<><> A Blitzkrieg [guerra-relâmpago] Jihadista

A surpreendente vitória do HTS foi prevista em novembro por autoridades iranianas, que informaram a Assad sobre a fraqueza das defesas do estado devido aos ataques israelenses sustentados contra posições do exército sírio, à invasão israelense do Líbano e à guerra na Ucrânia.

Quando o ministro das Relações Exteriores do Irã, Abbas Araghchi, se encontrou com Assad em Damasco após a queda de Alepo para os rebeldes, Assad afirmou que aquilo não era uma derrota, mas sim uma “retirada tática.” Essa avaliação revelou-se ilusória.

Araghchi, ciente disso, disse a Assad que o Irã simplesmente não tinha capacidade de enviar novas tropas para defender Damasco. Também ficou claro para o governo Assad que os russos não tinham capacidade excedente para defender o governo, nem mesmo a base naval russa em Tartus. Durante o avanço do HTS contra o exército sírio, o enviado presidencial russo para a Síria, Alexander Lavrentyev, afirmou estar em contato com o governo Trump que assumiria para discutir um acordo entre “todas as partes” no conflito sírio.

Nem a Rússia nem o Irã acreditavam que o governo Assad seria capaz de derrotar unilateralmente os diversos rebeldes e remover os Estados Unidos da sua ocupação dos campos de petróleo do leste. Um acordo era a única saída, o que significava que nem o Irã nem a Rússia estavam dispostos a comprometer mais tropas para defender o governo Assad.

Desde 2011, a força aérea de Israel atacou várias bases militares sírias, incluindo aquelas que hospedavam tropas iranianas. Esses ataques degradaram a capacidade militar síria ao destruir armamentos e suprimentos. Desde outubro de 2023, Israel intensificou os seus ataques dentro da Síria, incluindo alvos como forças iranianas, defesas aéreas sírias e instalações de produção de armas.

Em 4 de dezembro, os chefes militares do Irã (General Major Mohammad Bagheri), Iraque (General Major Yahya Rasool), Rússia (Ministro da Defesa Andrey Belousov) e Síria (General Abdul Karim Mahmoud Ibrahim) se reuniram para avaliar a situação na Síria.

Discutiram o avanço do HTS vindo de Alepo e concordaram que, com o frágil cessar-fogo no Líbano e as forças enfraquecidas do governo sírio, isso era um “cenário perigoso.” Embora tenham afirmado apoiar o governo em Damasco, nenhuma medida concreta foi tomada.

Enquanto isso, os ataques israelenses dentro da Síria aumentaram a desmoralização no exército sírio, que não foi devidamente reorganizado após o impasse com os rebeldes em Idlib desde 2017.

<><> A Vantagem de Israel

De maneira coordenada, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu foi às Colinas de Golã ocupadas, que Israel tomou da Síria em 1973, e anunciou: “Este é um dia histórico na história do Oriente Médio.”

Ele afirmou que o seu governo ordenou ao exército israelense que invadisse a zona de buffer da ONU entre a ocupação israelense de Golã e os postos do exército sírio estabelecidos após o armistício de 1974.

Ele então afirmou que o seu governo havia ordenado ao exército israelense que invadisse a zona de buffer da ONU entre a ocupação israelense de Golã e os postos do exército sírio estabelecidos após o armistício de 1974. Tanques israelenses avançaram na região rural da governadoria de Quneitra e tomaram a cidade principal.

A fronteira entre Israel e a Síria foi redesenhada por essa invasão, já que Israel avançou vários quilômetros para dentro do território sírio, ocupando quase toda a extensão da fronteira.

Nos dias finais do avanço do HTS sobre Damasco, a força aérea israelense forneceu apoio aéreo aos rebeldes. Eles bombardearam bases militares e a sede da inteligência síria no centro de Damasco. Alegando que queriam destruir depósitos de armas antes que os rebeldes os tomassem, os israelenses atingiram bases que abrigavam tropas sírias e estoques de armas que poderiam ter sido usadas para defender Damasco, incluindo a Base Aérea de Mezzah.

Autoridades israelenses declararam que continuarão esses ataques aéreos, mas não indicaram quem pretendem atingir.

O assalto de Israel à Síria se intensificou durante o movimento de protesto em 2011. Com os combates entre rebeldes e o governo sírio se espalhando pelo sul da Síria, próximo à fronteira israelense, Israel começou a disparar contra forças sírias do outro lado da fronteira. Em março de 2013, por exemplo, os israelenses dispararam mísseis contra postos militares sírios, enfraquecendo-os e fortalecendo os rebeldes.

No final de 2013, Israel criou a Divisão 210, um comando militar especial, para iniciar engajamentos ao longo da linha de armistício entre Israel e a Síria. É importante ressaltar que, quando o antecessor do HTS, o afiliado da al-Qaeda Jabhat al-Nusra, começou a fazer avanços ao longo da linha de controle israelense, Israel não os atacou. Em vez disso, Israel atacou o governo sírio, derrubando aviões da força aérea síria e assassinando aliados sírios importantes, como o General Mohammad Ali Allahdadi, um general iraniano, em janeiro de 2015, e Samir Kuntar, líder do Fatah, no final de 2015.

Um ex-porta-voz em Damasco disse que os israelenses efetivamente forneceram apoio aéreo ao ataque do HTS contra a capital.

<><> O Futuro da Síria

Assad deixou a Síria sem fazer anúncio algum. Segundo ex-funcionários do governo em Damasco, alguns líderes seniores partiram com ele ou fugiram para a fronteira com o Iraque antes da queda de Damasco.

O silêncio de Assad deixou muitos sírios perplexos, especialmente aqueles que acreditavam fundamentalmente que o Estado os protegeria do ataque de grupos como o HTS.

O colapso do governo Assad tornou-se evidente quando a sua Guarda Republicana não tentou defender a cidade e quando ele partiu sem palavras de encorajamento para o seu povo.

O país está polarizado em relação ao novo governo. Setores da população, cuja qualidade de vida foi degradada pela guerra e pelas sanções, celebram a abertura e estão nas ruas comemorando a nova situação. O contexto mais amplo do Oriente Médio não é sua preocupação imediata, embora, dependendo das ações de Israel, isso possa mudar.

Uma parte considerável está preocupada com o comportamento dos islamistas, que usam termos depreciativos contra muçulmanos não sunitas, como nusayriyya (para os alauítas, comunidade da família al-Assad) e rawafid (como a grande população xiita na Síria).Chamar muçulmanos não sunitas de ahl al-batil ou “os perdidos” e usar uma linguagem salafista forte sobre apostasia e sua punição desencadeia medo entre aqueles que podem ser alvos de ataques.

Se o novo governo será capaz de controlar as suas forças, motivadas por essa ideologia sectária, ainda está por ser visto.

Esse sectarismo é apenas o início das contradições que surgirão quase imediatamente.

Como o novo governo lidará com as incursões israelenses, turcas e dos EUA no território sírio? Tentará recuperar essas terras?

Qual será a relação entre o governo sírio e os seus vizinhos, particularmente o Líbano?

Os milhões de refugiados sírios retornarão ao seu país agora que a base para sua migração foi removida? Se retornarem, o que os aguardará dentro da Síria?

E, centralmente, o que tudo isso significará para o genocídio contínuo dos palestinos por parte dos israelenses?

 

Fonte: DW Brasil/Brasil 247

 

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