sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Judeu ortodoxo e moderador de grupos de Kim Kataguiri deixam MBL alegando tolerância ao nazismo

O jovem Willian Tavares tinha apenas 15 anos quando começou a acompanhar o Movimento Brasil Livre, o MBL, na época das manifestações contra o governo da então presidente Dilma Rousseff, do PT, em 2015. Encantado com a retórica dos vídeos de Kim Kataguiri, tornou-se um seguidor fiel do movimento.

Anos mais tarde, em 2022, ingressou nos grupos de WhatsApp promovidos pelo deputado federal do União Brasil e, em poucos meses,  subiu na hierarquia. Chegou a ocupar a função de secretário de moderação dos grupos de Kataguiri, mas sua trajetória mudou por algo que ele diz nunca ter imaginado encontrar por ali: tolerância ao nazismo.

Com membros em todo o país, em sua maioria jovens, o MBL organiza seus apoiadores em grupos de WhatsApp e Telegram. Em 2022, o Intercept revelou que, entre as mensagens que circulavam nos grupos do MBL, havia um “machismo sem freios”, expresso em declarações misóginas, mulheres silenciadas e tentativas de inibir a participação feminina.

Agora, em uma entrevista exclusiva concedida ao Intercept Brasil, o ex-moderador de grupos do MBL Willian Tavares explica como cresceu internamente, migrando dos grupos de WhatsApp para fóruns de moderação de todo o MBL, e denuncia a relação de membros do movimento com ideias racistas e eugenistas – o que deteriorou a relação até sua saída, em setembro de 2024.

Tavares ainda afirma que, semanas antes de deixar o movimento, um amigo judeu ortodoxo, que pediu para não ser identificado temendo represálias, mas também atuava na moderação de grupos, deixou a função por não ver no MBL um “ambiente seguro”. 

As alegações foram corroboradas por vídeos, documentos e centenas de prints apresentados por Tavares ao Intercept. “Eu não ganho nada com isso, só vou ganhar mais ataques. Estou aqui expondo a minha cara, expondo quem eu sou, porque preciso falar a verdade”, disse Tavares. 

O caso não é o primeiro que indica algum grau de tolerância do MBL com pautas nazistas. Em fevereiro de 2022, Kataguiri disse, em um episódio do Flow Podcast, que não era contrário à existência do partido nazista no Brasil, e que a Alemanha errou ao criminalizá-lo – depois, pediu desculpas e voltou atrás nas declarações.

Em outubro deste ano, em sessão do Conselho de Ética da Câmara, o deputado federal Glauber Braga, do PSOL do Rio de Janeiro, alvo de um processo de cassação no colegiado por ter expulso da Casa a empurrões e chutes o influenciador Gabriel Costenaro, membro do MBL, questionou Kataguiri por uma suposta ligação do grupo com figuras acusadas de associação com o supremacismo branco e o neonazismo.

Na ocasião, o deputado ligado ao MBL disse desconhecer qualquer relação de membros do grupo com neonazistas. O caso mencionado por Glauber Braga, que também envolveria a leniência do movimento com interações de teor nazista de seus membros, havia sido revelado dias antes em um vídeo do influenciador Júnior Freitas.

Mas, agora, os prints e vídeos obtidos pelo Intercept mostram que o movimento, representado na figura de uma assessora parlamentar do deputado Kim Kataguiri, tinha conhecimento de denúncias. Apesar de uma advertência verbal, a decisão foi por não remover um dos secretários de moderação da função, mesmo que ele tenha admitido manter relações com membros expulsos por nazismo – o que fez Tavares pedir para sair. 

Procurado pelo Intercept, o MBL não respondeu aos questionamentos enviados sobre denúncias de tolerância a ideologias extremistas, incluindo neonazismo, em grupos de WhatsApp ligados à organização.  A reportagem também solicitou um posicionamento do deputado federal Kim Kataguiri, mas não obteve retorno.

Perseguição por combater nazistas

Tavares começou a trabalhar como moderador no início de 2023, quando o MBL enviou uma mensagem para vários grupos do próprio movimento perguntando quem teria interesse em ser administrador de comunidades no WhatsApp. 

“Era um questionário no Google Forms, que eu preenchi e depois fiquei esperando uma resposta. Pouco tempo depois, recebi o retorno de Danilo Geber, que é chefe de gabinete do Kim Kataguiri. Ele se apresentou, perguntou se eu tinha alguma dúvida sobre a aplicação para moderador, e eu disse que estava pronto para o cargo”, contou Tavares.

O moderador ficou incumbido da administração dos grupos de apoiadores de Kim Kataguiri no aplicativo de mensagens. Ele, então, foi incluído em um outro grupo chamado ‘Ministério da Moderação’. Ali, os casos eram debatidos coletivamente, mas as decisões mais delicadas eram tomadas por moderadores mais experientes, denominados secretários. 

O trabalho consistia em monitorar os ambientes, mediar os conflitos e trazer ao conhecimento dos outros moderadores casos que envolvessem temas graves, como assédio e racismo.

Depois do encanto inicial com a participação no MBL, a chave começou a virar para Tavares em março de 2023, quando ele sugeriu a fusão de três grupos de debate no WhatsApp ligados a Kataguiri e ao MBL em um único canal de comunicação. A integração, planejada para facilitar as discussões, resultou em uma falha de segurança: o link vazou, e neonazistas invadiram o grupo, postando pornografia, mensagens racistas, imagens de Adolf Hitler e referências à escravização de negros.

“Eles usavam emojis da bandeira LGBT para ridicularizar, publicavam atrocidades sobre racismo”, relatou. Logo após enfrentá-los com palavras de baixo calão, Tavares afirma que foi alvo de doxing pelos invasores. Seus dados pessoais, incluindo o endereço e o nome completo de sua mãe, foram vazados. Os infiltrados enviaram, segundo ele, mensagens com ameaças como “nos vemos em breve”.

Preocupado, o moderador afirma que levou o caso ao ‘Ministério da Moderação’ do MBL, mas a resposta que recebeu foi uma reviravolta. Segundo Tavares, o movimento instaurou uma espécie de investigação contra ele, suspeitando que o vazamento tivesse sido sua culpa. “Eu era a vítima, mas fui tratado como culpado”, afirmou.

“Foi um desgaste extremo. Para minha surpresa, quando eu fui falar com o Danilo Gerber [assessor de Kim Kataguiri na Câmara dos Deputados], eles fizeram uma espécie de CPI para me investigar. O Danilo me ligou falando que suspeitava de mim, sendo que eu mostrei para ele que eu estava sendo ameaçado”, relatou.

Tavares afirma que a investigação culminou em uma tentativa de expulsão, que não se concretizou. Embora ele tenha permanecido no grupo, o incidente marcou o início de sua desilusão com o MBL. 

“Eles sequer tentaram rastrear os invasores ou reforçar a segurança. Preferiram me atacar e eu nem entendi o porquê”, lamentou. A única medida adotada, de acordo com Tavares, foi criar um novo grupo, já que a suspeita era de que o link do grupo vazou e, por isso, novos ataques poderiam ocorrer naquele fórum.

·        Debates do Kim: eugenia e racismo liberados

Mas a conivência do MBL com ideologias extremistas foi se revelando em novos episódios, relatou Tavares. “Depois do doxing que fui alvo em março de 2023, eu senti que a ameaça estava começando a surgir ali dentro, de gente que estava protegendo as pessoas que participavam das invasões”, alega.

Um dos incômodos de Tavares passou a ser com o papel de Lucas Tartaglione, um outro moderador que, segundo ele, chegou a atuar como secretário de moderação nos grupos de WhatsApp mesmo após ter feito declarações de cunho eugenista.

“Antes de eu me tornar secretário, Lucas Tartaglione era moderador há dois anos. Ele foi promovido a secretário porque estava há mais tempo no grupo do Kim Kataguiri e participava ativamente”, disse Tavares. 

Prints de conversas em grupos de WhatsApp do MBL aos quais o Intercept teve acesso mostram que Tartaglione afirmava que pessoas muito pobres deveriam ser obrigadas a ter no máximo dois filhos e que a violência contra moradores de rua era justificável. “Todo mundo sabia quem ele era. Mesmo assim, foi promovido”, contou Tavares.

Tartaglione era um militante orgulhoso do MBL, que ostentava fotos com os líderes Amanda Vetorazzo, Kim Kataguiri e Renato Batista. A última foi postada em fevereiro de 2024, com Renan Santos. No mês seguinte, no entanto, por causa de postagens como essas, ele foi expulso do movimento. 

“Ele só foi retirado depois que um membro dos grupos ameaçou chamar um jornalista para falar do comportamento dele. Quando viram que ele estava sendo printado e isso poderia prejudicar o Kim Kataguiri, ele finalmente foi expulso”, relatou.

O Intercept entrou em contato com Tartaglione. Ele confirmou que foi banido dos grupos de WhatsApp, mas disse não considerar que tenha defendido ideias extremistas: “Eu sou a favor de aborto, eutanásia e pena de morte, defendo que a população seja diminuída para diminuir a pobreza, aparentemente eles não sabiam diferenciar eutanásia de pena de morte e eugenia nazista”, escreveu, por e-mail.

Outro fator de descontentamento para Tavares foi a resistência de líderes em coibir a presença de símbolos supostamente nazistas nos grupos oficiais do MBL. Membros que usavam nomes de usuário com dois emojis de raio, uma possível referência à SS, a unidade de elite do exército nazista alemão, teriam sido relativizados por Felipe Maion, um secretário próximo de Kataguiri.

O estudo “Decodificando o ódio”, publicado em 2021 nos Estados Unidos, considera a prática um código para expressar posições nazistas: “Extremistas, às vezes, usam emojis de raios (⚡⚡) para evitar a detecção por sistemas de moderação em plataformas de mídia social. Essa tática é comum nos códigos extremistas”, cita o relatório.

Em mensagens no grupo ‘Ministério da Moderação’, que reunia os administradores de vários grupos ligados ao MBL, Maion alegava que o símbolo de dois raios “não era exatamente nazista” e que estava sendo mal interpretado. “Eles protegiam essas pessoas como se fosse algo normal”, afirmou Tavares. O Intercept não conseguiu contato com Maion. O espaço segue aberto.

·        Membro judeu saiu do MBL por não ver ‘ambiente seguro’

O incômodo atingiu um ponto crítico quando um membro judeu ortodoxo chamado Pedro assumiu a função de moderar os grupos após a saída de outro moderador. “Com essa nova equipe, voltaram a acontecer invasões nazistas”, relatou Tavares.

Ele contou que, diante dos novos ataques, uma força-tarefa foi organizada por ele e por Pedro para identificar e remover membros ligados a ideologias nazistas. A investigação independente dos dois revelou a participação de alguns membros do MBL em grupos paralelos, ou seja, que não fazem parte da estrutura propagada oficialmente pelo movimento, incluindo um em que circulavam ideias de apoio ao nazismo.

Segundo Tavares, um dos “grupos paralelos” mais problemáticos, do qual o Intercept teve acesso a mensagens trocadas durante mais de um mês, alterna entre dois nomes: Resistência Supra MBL e Cabaré de Fascistas. As regras do grupo mencionam que é permitido “ter opinião sobre ideias de terceira posição” – movimentos que reivindicam essa qualificação são classificados como neofascistas.

Entre as mensagens disparadas pelos membros, havia frases como: “Incinerar judeus”, “quem gosta de preto é a África” e “uma delícia ver árabe se fudendo”. Prints obtidos pelo Intercept demonstram que o grupo era formado por 12 pessoas. 

Um dos membros do MBL na lista de participantes do grupo era Bento Junior, jornalista de Rio Verde, em Goiás, que em seu perfil no X se identifica como “militante do MBL-GO”. 

Em entrevista ao Intercept concedida na manhã desta quinta-feira, 12, Bento Júnior informou que foi expulso do programa Academia MBL horas depois da reportagem ter enviado questionamentos sobre o caso ao movimento e ao gabinete de Kataguiri. “Vocês me fizeram ser expulso da Academia MBL”, lamentou.

“Esse grupo tinha um teor inteiramente de zoeira. Quem fazia piadas gordofóbicas era uma pessoa gorda e eu, que também sou gordo. A pessoa que mais fazia piadas racistas era um negro, e ele fazia a maior parte das piadas consigo mesmo. E as piadas relacionadas ao nazismo – e não era apologia, era só piada – eram feitas por um judeu”, alegou.

O Intercept conseguiu confirmar a identidade de outros três integrantes do grupo. Um deles é o estudante de relações internacionais da PUC de Minas Gerais, Linky Pires. Em contato com o Intercept, ele afirmou que “só tinha pessoas falando um monte de besteira”.

“O grupo não tem teor nazista. Poderia, sim, ter algumas falas e anotações que obviamente eu discordo. Eu entro na defesa desse grupo. Os nomes [dos grupos] são só nomes. Dentro do grupo, as mensagens são tendenciosas porque o contexto era simplesmente cômico, era uma brincadeira entre as pessoas. Não havia publicidade para o nazismo”, afirmou.

As outras duas pessoas identificadas alegam ser menores de idade e terão seus nomes preservados. A reportagem conseguiu fazer contato com uma delas, que afirmou que o grupo “era para brincar” e negou ligações com neonazismo. Ela disse ainda que “a maioria das pessoas participava do grupo bêbada” – mas admite que isso não é uma desculpa.

Não foi possível confirmar as identidades dos demais participantes do grupo, ainda que Tavares afirme que todos eles eram ligados de alguma forma ao MBL.

Mensagens obtidas pelo Intercept mostram que, em setembro de 2024, Pedro relatou à equipe de Kim Kataguiri, mais especificamente à sua assessora Jéssica Oliveira, preocupação com a segurança de sua família por membros do movimento estarem no grupo. 

Ele chega a mencionar para Jéssica, como motivação, “a bagunça lá com o Lucas” (em referência à Lucas Tartaglione, expulso do MBL por relação com o nazismo) e “Bento em grupo nazista” (em referência à participação de Bento Júnior no grupo Cabaré de Fascistas/Resistência Supra MBL).  “Tenho medo pela minha vida e pela minha família”, escreveu. 

A resposta da assessora foi sugerir esperar “mais alguns dias” para averiguações, sem ações concretas. Uma semana depois, Pedro optou por deixar o MBL, despedindo-se de forma amistosa, mas com uma mensagem contundente sobre o descaso da liderança.

“Meu amigo judeu falou que não estava mais se sentindo confortável nos grupos, por isso decidiu sair. Ele disse que não se sentia seguro”, conta Tavares.

·        Acareação e nenhuma providência

Foi nesse período – entre junho e setembro – que as tensões internas começaram a se intensificar de maneira irreversível, relata Tavares. “Nesse intervalo, descobri que um membro do MBL chamado Igor Cardoso continuava mantendo contato com pessoas expulsas por envolvimento em grupos nazistas”, afirmou.

Um vídeo ao qual o Intercept teve acesso mostra uma acareação interna do MBL sobre o caso.  A gravação, que ocorreu durante uma reunião convocada para lidar com denúncias graves, expõe Jéssica Oliveira, assessora de Kataguiri na Câmara dos Deputados, decidindo que não expulsaria Igor Cardoso, coordenador do MBL em Goiás e secretário de militância, após relatos de que ele mantinha contato com indivíduos expulsos de grupos do MBL por apologia ao nazismo.

Na reunião, Igor admite abertamente que só parou de seguir membros expulsos por apologia ao nazismo porque “a Jéssica pediu” – caso contrário, afirma, ele continuaria seguindo.

Jéssica, por sua vez, aparece confrontando Igor de maneira incisiva por suas interações nas redes sociais. Em um dos trechos, ela afirma: “A pessoa é banida por nazismo e eu vou lá e estou seguindo ela e ainda digo que ela é minha amiga, Igor, isso não é normal, isso não é normal.”

Jéssica, no entanto, deixa claro que não iria removê-lo do cargo naquele momento. “Eu não vou te remover hoje, mas entenda isso. Entenda, entenda, entenda, escute isso como advertência, se eu souber que você segue pessoas banidas por motivos graves…”. O Intercept não conseguiu estabelecer contato com Igor, mas o espaço segue aberto para manifestações.

Além dela, Danilo Gerber, outro assessor de Kataguiri, também aparece na gravação em um momento em que Igor e Tavares discutem acaloradamente – ele tenta acalmar os ânimos, mas desiste e devolve o comando da acareação para Jéssica. Na ligação, ele é informado que Tavares e Pedro estão deixando o MBL por causa do problema.

 

Fonte: Por Paulo Motoryn e Giovanni Pannunzio, para The Intercept

 

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