O jovem Willian
Tavares tinha
apenas 15 anos quando começou a acompanhar o Movimento Brasil Livre, o MBL, na
época das manifestações contra o governo da então presidente Dilma Rousseff, do
PT, em 2015. Encantado com a retórica dos vídeos de Kim Kataguiri, tornou-se um
seguidor fiel do movimento.
Anos mais tarde, em 2022, ingressou nos grupos de
WhatsApp promovidos pelo deputado federal do União Brasil e, em poucos
meses, subiu na hierarquia. Chegou a ocupar a função de secretário de
moderação dos grupos de Kataguiri, mas sua trajetória mudou por algo que ele
diz nunca ter imaginado encontrar por ali: tolerância ao nazismo.
Com membros em todo o país, em sua maioria jovens, o
MBL organiza seus apoiadores em grupos de WhatsApp e Telegram. Em 2022, o
Intercept revelou que, entre as mensagens que
circulavam nos
grupos do MBL, havia um “machismo sem freios”, expresso em declarações
misóginas, mulheres silenciadas e tentativas de inibir a participação feminina.
Agora, em uma entrevista exclusiva concedida
ao Intercept Brasil, o ex-moderador de grupos do MBL Willian Tavares
explica como cresceu internamente, migrando dos grupos de WhatsApp para fóruns
de moderação de todo o MBL, e denuncia a relação de membros do movimento com
ideias racistas e eugenistas – o que deteriorou a relação até sua saída, em
setembro de 2024.
Tavares ainda afirma que, semanas antes de deixar o
movimento, um amigo judeu ortodoxo, que pediu para não ser identificado temendo
represálias, mas também atuava na moderação de grupos, deixou a função por não
ver no MBL um “ambiente seguro”.
As alegações foram corroboradas por vídeos, documentos
e centenas de prints apresentados por Tavares ao Intercept. “Eu não ganho nada
com isso, só vou ganhar mais ataques. Estou aqui expondo a minha cara, expondo
quem eu sou, porque preciso falar a verdade”, disse Tavares.
O caso não é o primeiro que indica algum grau de
tolerância do MBL com pautas nazistas. Em fevereiro de 2022, Kataguiri disse,
em um episódio do Flow Podcast, que não era contrário à
existência do partido nazista no Brasil, e que a Alemanha errou ao
criminalizá-lo – depois, pediu desculpas e
voltou atrás nas declarações.
Em outubro deste ano, em sessão do Conselho de Ética da
Câmara, o deputado federal Glauber Braga, do PSOL do Rio de Janeiro, alvo de um
processo de cassação no colegiado por ter expulso da Casa a empurrões e chutes
o influenciador Gabriel Costenaro, membro do MBL, questionou Kataguiri
por uma suposta ligação do grupo com figuras acusadas de associação com o
supremacismo branco e o neonazismo.
Na ocasião, o deputado ligado ao MBL disse desconhecer
qualquer relação de membros do grupo com neonazistas. O caso mencionado por
Glauber Braga, que também envolveria a leniência do movimento com interações de
teor nazista de seus membros, havia sido revelado dias antes em um vídeo do influenciador Júnior Freitas.
Mas, agora, os prints e vídeos obtidos pelo Intercept
mostram que o movimento, representado na figura de uma assessora parlamentar do
deputado Kim Kataguiri, tinha conhecimento de denúncias. Apesar de uma
advertência verbal, a decisão foi por não remover um dos secretários de
moderação da função, mesmo que ele tenha admitido manter relações com membros
expulsos por nazismo – o que fez Tavares pedir para sair.
Procurado pelo Intercept, o MBL não respondeu aos
questionamentos enviados sobre denúncias de tolerância a ideologias
extremistas, incluindo neonazismo, em grupos de WhatsApp ligados à
organização. A reportagem também solicitou um posicionamento do deputado
federal Kim Kataguiri, mas não obteve retorno.
Perseguição por combater
nazistas
Tavares começou a trabalhar como moderador no início de
2023, quando o MBL enviou uma mensagem para vários grupos do próprio movimento
perguntando quem teria interesse em ser administrador de comunidades no
WhatsApp.
“Era um questionário no Google Forms, que eu preenchi e
depois fiquei esperando uma resposta. Pouco tempo depois, recebi o retorno de
Danilo Geber, que é chefe de gabinete do Kim Kataguiri. Ele se apresentou,
perguntou se eu tinha alguma dúvida sobre a aplicação para moderador, e eu
disse que estava pronto para o cargo”, contou Tavares.
O moderador ficou incumbido da administração dos grupos
de apoiadores de Kim Kataguiri no aplicativo de mensagens. Ele, então, foi
incluído em um outro grupo chamado ‘Ministério da Moderação’. Ali, os casos
eram debatidos coletivamente, mas as decisões mais delicadas eram tomadas por
moderadores mais experientes, denominados secretários.
O trabalho consistia em monitorar os ambientes, mediar
os conflitos e trazer ao conhecimento dos outros moderadores casos que
envolvessem temas graves, como assédio e racismo.
Depois do encanto inicial com a participação no MBL, a
chave começou a virar para Tavares em março de 2023, quando ele sugeriu a fusão
de três grupos de debate no WhatsApp ligados a Kataguiri e ao MBL em um único
canal de comunicação. A integração, planejada para facilitar as discussões,
resultou em uma falha de segurança: o link vazou, e neonazistas invadiram o
grupo, postando pornografia, mensagens racistas, imagens de Adolf Hitler e
referências à escravização de negros.
“Eles usavam emojis da bandeira LGBT para
ridicularizar, publicavam atrocidades sobre racismo”, relatou. Logo após
enfrentá-los com palavras de baixo calão, Tavares afirma que foi alvo
de doxing pelos invasores. Seus dados pessoais, incluindo o endereço
e o nome completo de sua mãe, foram vazados. Os infiltrados enviaram, segundo
ele, mensagens com ameaças como “nos vemos em breve”.
Preocupado, o moderador afirma que levou o caso ao
‘Ministério da Moderação’ do MBL, mas a resposta que recebeu foi uma
reviravolta. Segundo Tavares, o movimento instaurou uma espécie de investigação
contra ele, suspeitando que o vazamento tivesse sido sua culpa. “Eu era a
vítima, mas fui tratado como culpado”, afirmou.
“Foi um desgaste extremo. Para minha surpresa, quando
eu fui falar com o Danilo Gerber [assessor de Kim Kataguiri na Câmara dos
Deputados], eles fizeram uma espécie de CPI para me investigar. O Danilo me
ligou falando que suspeitava de mim, sendo que eu mostrei para ele que eu
estava sendo ameaçado”, relatou.
Tavares afirma que a investigação culminou em uma tentativa
de expulsão, que não se concretizou. Embora ele tenha permanecido no grupo, o
incidente marcou o início de sua desilusão com o MBL.
“Eles sequer tentaram rastrear os invasores ou reforçar
a segurança. Preferiram me atacar e eu nem entendi o porquê”, lamentou. A única
medida adotada, de acordo com Tavares, foi criar um novo grupo, já que a
suspeita era de que o link do grupo vazou e, por isso, novos ataques poderiam
ocorrer naquele fórum.
·
Debates do Kim: eugenia e racismo liberados
Mas a conivência do MBL com ideologias extremistas foi
se revelando em novos episódios, relatou Tavares. “Depois do doxing que fui
alvo em março de 2023, eu senti que a ameaça estava começando a surgir ali
dentro, de gente que estava protegendo as pessoas que participavam das
invasões”, alega.
Um dos incômodos de Tavares passou a ser com o papel de
Lucas Tartaglione, um outro moderador que, segundo ele, chegou a atuar como
secretário de moderação nos grupos de WhatsApp mesmo após ter feito declarações
de cunho eugenista.
“Antes de eu me tornar secretário, Lucas Tartaglione
era moderador há dois anos. Ele foi promovido a secretário porque estava há
mais tempo no grupo do Kim Kataguiri e participava ativamente”, disse
Tavares.
Prints de conversas em grupos de WhatsApp do MBL aos
quais o Intercept teve acesso mostram que Tartaglione afirmava que pessoas
muito pobres deveriam ser obrigadas a ter no máximo dois filhos e que a
violência contra moradores de rua era justificável. “Todo mundo sabia quem ele
era. Mesmo assim, foi promovido”, contou Tavares.
Tartaglione era um militante orgulhoso do MBL, que
ostentava fotos com os líderes Amanda Vetorazzo, Kim Kataguiri e Renato
Batista. A última foi postada em fevereiro de 2024, com Renan Santos. No mês
seguinte, no entanto, por causa de postagens como essas, ele foi expulso do
movimento.
“Ele só foi retirado depois que um membro dos grupos
ameaçou chamar um jornalista para falar do comportamento dele. Quando viram que
ele estava sendo printado e isso poderia prejudicar o Kim Kataguiri, ele
finalmente foi expulso”, relatou.
O Intercept entrou em contato com Tartaglione. Ele
confirmou que foi banido dos grupos de WhatsApp, mas disse não considerar que
tenha defendido ideias extremistas: “Eu sou a favor de aborto, eutanásia e pena
de morte, defendo que a população seja diminuída para diminuir a pobreza,
aparentemente eles não sabiam diferenciar eutanásia de pena de morte e eugenia
nazista”, escreveu, por e-mail.
Outro fator de descontentamento para Tavares foi a
resistência de líderes em coibir a presença de símbolos supostamente nazistas
nos grupos oficiais do MBL. Membros que usavam nomes de usuário com dois emojis
de raio, uma possível referência à SS, a unidade de elite do exército nazista
alemão, teriam sido relativizados por Felipe Maion, um secretário próximo de
Kataguiri.
O estudo “Decodificando o ódio”, publicado em
2021 nos Estados Unidos, considera a prática um código para expressar posições
nazistas: “Extremistas, às vezes, usam emojis de raios (⚡⚡) para evitar a detecção por sistemas de
moderação em plataformas de mídia social. Essa tática é comum nos códigos
extremistas”, cita o relatório.
Em mensagens no grupo ‘Ministério da Moderação’, que
reunia os administradores de vários grupos ligados ao MBL, Maion alegava que o
símbolo de dois raios “não era exatamente nazista” e que estava sendo mal
interpretado. “Eles protegiam essas pessoas como se fosse algo normal”, afirmou
Tavares. O Intercept não conseguiu contato com Maion. O espaço segue aberto.
·
Membro judeu saiu do MBL por não ver ‘ambiente
seguro’
O incômodo atingiu um ponto crítico quando um membro
judeu ortodoxo chamado Pedro assumiu a função de moderar os grupos
após a saída de outro moderador. “Com essa nova equipe, voltaram a acontecer
invasões nazistas”, relatou Tavares.
Ele contou que, diante dos novos ataques, uma
força-tarefa foi organizada por ele e por Pedro para identificar e remover
membros ligados a ideologias nazistas. A investigação independente dos dois
revelou a participação de alguns membros do MBL em grupos paralelos, ou seja,
que não fazem parte da estrutura propagada oficialmente pelo movimento,
incluindo um em que circulavam ideias de apoio ao nazismo.
Segundo Tavares, um dos “grupos paralelos” mais
problemáticos, do qual o Intercept teve acesso a mensagens trocadas durante
mais de um mês, alterna entre dois nomes: Resistência Supra MBL e Cabaré de
Fascistas. As regras do grupo mencionam que é permitido “ter opinião sobre
ideias de terceira posição” – movimentos que reivindicam essa
qualificação são
classificados como neofascistas.
Entre as mensagens disparadas pelos membros, havia
frases como: “Incinerar judeus”, “quem gosta de preto é a África” e “uma
delícia ver árabe se fudendo”. Prints obtidos pelo Intercept demonstram que o
grupo era formado por 12 pessoas.
Um dos membros do MBL na lista de participantes do
grupo era Bento Junior, jornalista de Rio Verde, em Goiás, que em seu perfil no
X se identifica como “militante do MBL-GO”.
Em entrevista ao Intercept concedida na manhã desta
quinta-feira, 12, Bento Júnior informou que foi expulso do programa Academia
MBL horas depois da reportagem ter enviado questionamentos sobre o caso ao
movimento e ao gabinete de Kataguiri. “Vocês me fizeram ser expulso da Academia
MBL”, lamentou.
“Esse grupo tinha um teor inteiramente de zoeira. Quem
fazia piadas gordofóbicas era uma pessoa gorda e eu, que também sou gordo. A
pessoa que mais fazia piadas racistas era um negro, e ele fazia a maior parte
das piadas consigo mesmo. E as piadas relacionadas ao nazismo – e não era
apologia, era só piada – eram feitas por um judeu”, alegou.
O Intercept conseguiu confirmar a identidade de outros
três integrantes do grupo. Um deles é o estudante de relações internacionais da
PUC de Minas Gerais, Linky Pires. Em contato com o Intercept, ele afirmou que
“só tinha pessoas falando um monte de besteira”.
“O grupo não tem teor nazista. Poderia, sim, ter
algumas falas e anotações que obviamente eu discordo. Eu entro na defesa desse
grupo. Os nomes [dos grupos] são só nomes. Dentro do grupo, as mensagens são
tendenciosas porque o contexto era simplesmente cômico, era uma brincadeira
entre as pessoas. Não havia publicidade para o nazismo”, afirmou.
As outras duas pessoas identificadas alegam ser menores
de idade e terão seus nomes preservados. A reportagem conseguiu fazer contato
com uma delas, que afirmou que o grupo “era para brincar” e negou ligações com
neonazismo. Ela disse ainda que “a maioria das pessoas participava do grupo
bêbada” – mas admite que isso não é uma desculpa.
Não foi possível confirmar as identidades dos demais
participantes do grupo, ainda que Tavares afirme que todos eles eram ligados de
alguma forma ao MBL.
Mensagens obtidas pelo Intercept mostram que, em
setembro de 2024, Pedro relatou à equipe de Kim Kataguiri, mais especificamente
à sua assessora Jéssica Oliveira, preocupação com a segurança de sua família
por membros do movimento estarem no grupo.
Ele chega a mencionar para Jéssica, como motivação, “a
bagunça lá com o Lucas” (em referência à Lucas Tartaglione, expulso do MBL por
relação com o nazismo) e “Bento em grupo nazista” (em referência à participação
de Bento Júnior no grupo Cabaré de Fascistas/Resistência Supra MBL).
“Tenho medo pela minha vida e pela minha família”, escreveu.
A resposta da assessora foi sugerir esperar “mais
alguns dias” para averiguações, sem ações concretas. Uma semana depois, Pedro
optou por deixar o MBL, despedindo-se de forma amistosa, mas com uma mensagem
contundente sobre o descaso da liderança.
“Meu amigo judeu falou que não estava mais se sentindo
confortável nos grupos, por isso decidiu sair. Ele disse que não se sentia
seguro”, conta Tavares.
·
Acareação e nenhuma providência
Foi nesse período – entre junho e setembro – que as
tensões internas começaram a se intensificar de maneira irreversível, relata
Tavares. “Nesse intervalo, descobri que um membro do MBL chamado Igor Cardoso
continuava mantendo contato com pessoas expulsas por envolvimento em grupos
nazistas”, afirmou.
Um vídeo ao qual o Intercept teve acesso mostra uma
acareação interna do MBL sobre o caso. A gravação, que ocorreu durante
uma reunião convocada para lidar com denúncias graves, expõe Jéssica Oliveira,
assessora de Kataguiri na Câmara dos Deputados, decidindo que não expulsaria
Igor Cardoso, coordenador do MBL em Goiás e secretário de militância, após
relatos de que ele mantinha contato com indivíduos expulsos de grupos do MBL
por apologia ao nazismo.
Na reunião, Igor admite abertamente que só parou de
seguir membros expulsos por apologia ao nazismo porque “a Jéssica pediu” –
caso contrário, afirma, ele continuaria seguindo.
Jéssica, por sua vez, aparece confrontando Igor de
maneira incisiva por suas interações nas redes sociais. Em um dos trechos, ela
afirma: “A pessoa é banida por nazismo e eu vou lá e estou seguindo ela e ainda
digo que ela é minha amiga, Igor, isso não é normal, isso não é normal.”
Jéssica, no entanto, deixa claro que não iria removê-lo
do cargo naquele momento. “Eu não vou te remover hoje, mas entenda isso.
Entenda, entenda, entenda, escute isso como advertência, se eu souber que você
segue pessoas banidas por motivos graves…”. O Intercept não conseguiu
estabelecer contato com Igor, mas o espaço segue aberto para manifestações.
Além dela, Danilo Gerber, outro assessor de Kataguiri,
também aparece na gravação em um momento em que Igor e Tavares discutem
acaloradamente – ele tenta acalmar os ânimos, mas desiste e devolve o comando
da acareação para Jéssica. Na ligação, ele é informado que Tavares e Pedro
estão deixando o MBL por causa do problema.
Fonte: Por Paulo
Motoryn e Giovanni Pannunzio, para The Intercept
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