Telemedicina entra em nova fase para
superar barreiras e alcançar maturidade
Não há dúvidas que a
pandemia da covid-19 foi um acontecimento histórico que deixou lições valiosas
em diversos aspectos das nossas vidas. Na saúde, um dos “legados” desse período
difícil foi a ampliação do uso da telemedicina. Entre 2020 e 2021, por exemplo,
o Brasil registrou mais de 10,2 milhões de atendimentos via teleconsulta. E, em
2022, a média mensal de atendimentos à distância triplicou, atingindo 1,4
milhões de sessões, segundo dados da Saúde Digital Brasil (SDB). De lá para cá, a modalidade se consolidou, inclusive com mudanças
regulatórias e, hoje, vive um momento de amadurecimento – embora ainda tenha
desafios de capacitação, interoperabilidade e equidade no acesso.
“No boom da pandemia, a
pergunta mais frequente era se a telemedicina tinha vindo para ficar. Hoje, é
como se perguntássemos se o telefone celular veio para ficar”, analisa Caio
Soares, vice-presidente da SDB. “É algo que faz parte do nosso dia a dia, veio
para ampliar o acesso à saúde, para ampliar o cuidado e que já demonstrou ter
inúmeros benefícios.”
Até mesmo o perfil dos
atendimentos realizados tem se alterado. A princípio, eles se concentravam em
situações agudas não urgentes, como cefaleias, infecções urinárias e sintomas
gripais. Mas, a partir de 2022, houve uma transição para o uso da telemedicina
na atenção primária e secundária. É uma mudança que conversa com a tendência do
ecossistema de saúde de uma abordagem mais centrada na prevenção de doenças e
na manutenção do bem-estar.
E os avanços tecnológicos
devem contribuir ainda mais para essa evolução. Ferramentas de inteligência
artificial e dispositivos de monitoramento remoto, por exemplo, se apresentam
como aliados no suporte à prática da telemedicina. Ao ter à disposição
tecnologias que permitem acompanhar o paciente na sua jornada, desde a inserção
no sistema de saúde até as atividades de prevenção, a janela para intervir
antes que doenças crônicas se instalem ou ainda no início delas é maior.
“A grande diferença do
sistema habitual é que, normalmente, os profissionais de saúde se posicionam de
forma passiva, esperando o paciente agendar uma consulta”, avalia Carlos
Pedrotti, cardiologista e gerente do Centro Médico de Telemedicina do Hospital
Israelita Albert Einstein. “Nesse novo modelo, você tem um acompanhamento ativo
do paciente, consegue verificar se está realizando o acompanhamento
corretamente, acompanha o resultado de exames, pode identificar a necessidade
de uma consulta mais precoce e assim em diante. E isso também minimiza os
custos gerados por um tratamento inadequado.”
·
Telemonitoramento
é uma das tendências
Pedrotti lembra que as
iniciativas de telemonitoramento começam a chegar com maior robustez e devem se
intensificar nos próximos anos. Para ele, essas tecnologias podem ganhar espaço
principalmente em ações de enfermagem ou multiprofissionais de cuidado com
pacientes com doenças crônicas. “Isso tem uma vinculação muito grande com a
atenção primária e secundária, mas ainda carece de um arcabouço regulatório
mais efetivo.”
Segundo ele, em outros
países, o uso de dispositivos de monitoramento remoto já tem demonstrado um
“excelente resultado de custo-efetividade”, especialmente no que diz respeito
ao acompanhamento nas linhas de cuidado de doenças como diabetes, hipertensão e
obesidade.
Ao mesmo tempo, ferramentas
baseadas em IA estão otimizando a dinâmica do atendimento. É o caso de sistemas
de transcrição de teleconsultas em tempo real. Para Jefferson Gomes, diretor do
Programa de Educação da International Society for Telemedicine and eHealth, o
uso de IA e de outras ferramentas da Internet das Coisas Médicas (IoMT, na
sigla em inglês) pode possibilitar a visão de um filme da vida do paciente,
enquanto a teleconsulta ou a consulta é apenas uma foto.
“Hoje, temos os chatbots,
por exemplo, que já são utilizados para realizar triagens e direcionar a pessoa
para uma consulta presencial ou remota. Na IoMT, temos os dispositivos que
podem monitorar o paciente durante um período. Se temos dados do mundo real
dele, do dia a dia, isso pode trazer informações fundamentais não só para os
aspectos de adequação do tratamento, como também para entender algumas questões
do paciente”, explica Gomes.
·
Telessaúde
em regiões remotas e UTIs
Um dos principais motivos
para o investimento amplo em telessaúde é o potencial da tecnologia em alcançar
populações que vivem em um deserto de serviços assistenciais – seja pela
dificuldade de acesso ao território ou pela baixa densidade de profissionais de
saúde para suprir a demanda local. E não apenas no sentido do atendimento
direto entre médico e paciente, mas na relação entre profissionais de saúde de
diferentes localidades. Um médico generalista em uma área remota, por exemplo,
pode acessar um especialista de outra parte do país.
Essa é uma realidade que já
possui casos concretos, como o TeleAMES. Inaugurado em 2020, o projeto do
Einstein no âmbito do Proadi-SUS oferece consultas especializadas por
telemedicina e já atendeu mais de 300 mil pessoas nas regiões Norte e
Centro-Oeste do Brasil. Entre as especialidades oferecidas estão cardiologia,
endocrinologia, psiquiatria, pneumologia, reumatologia e neurologia pediátrica
e adulta.
A ideia é realizar as
primeiras consultas normalmente pela Unidades Básicas de Saúde (UBS) de
referência e, caso seja necessário, é agendada uma teleconsulta com um dos
especialistas do Einstein. Dessa forma, o projeto reduz filas, custos e a
necessidade de deslocamentos. Além disso, médicos locais se beneficiam com
atualizações constantes, que melhoram a qualidade do atendimento nas
UBSs.
Com o natural avanço da
cobertura de banda larga e desenvolvimento de sistema de saúde digital
integrado, a sociedade deve usufruir ainda mais dos benefícios da telessaúde.
Por outro lado, há necessidade de investimentos na atualização de equipamentos
e softwares. “Temos UBSs que ainda atuam com computadores que sequer têm memória
para rodar os sistemas necessários para esse tipo de atendimento. O
investimento tem que ser nesse sentido também”, afirma Jefferson Gomes.
Na área de cuidados
intensivos, a tecnologia também tem se mostrado uma aliada. A visita remota de
um médico intensivista melhora os resultados do tratamento de pacientes graves
em UTIs do SUS, onde a disponibilidade desse profissional é restrita. “É uma
estrutura simples, basicamente você tem um carrinho, um monitor e o sistema de
videoconferência. O médico visita cada paciente de forma bem objetiva,
discutindo os casos com o plantonista local e participando das decisões no
cuidado”, explica Pedrotti.
·
Próximos
passos da telemedicina: interoperabilidade e literacia digital
Embora os benefícios das
teleconsultas estejam consolidados – seja ao desafogar a demanda na porta de
entrada dos serviços de saúde, seja no atendimento em áreas com pouca oferta
desses serviços –, o amadurecimento da telessaúde no Brasil ainda exige um
olhar para a forma como o atendimento é realizado.
Para Gomes, quando o
paciente não está na presença do profissional, há a perda de alguns componentes
e, por isso, uma boa comunicação se torna ainda mais importante. Ele afirma
ainda que a plataforma utilizada para a consulta remota e outros aspectos
práticos da própria tecnologia devem ser levados em consideração. O ambiente,
por exemplo, não deve conter distrações ou contar com a presença de
terceiros.
“A teleconsulta não é uma
ferramenta, é um método. A ferramenta é o computador, a câmera, o software.
Então, essas questões precisam ser aprendidas já na graduação, mas também em
cursos livres que permitam que os profissionais aprofundem suas habilidades no
atendimento à distância”, defende.
Os especialistas ressaltam
ainda outros pontos importantes para uma evolução ainda maior da telessaúde em
solo nacional. O primeiro é o financiamento, já que a implementação de novas
tecnologias ainda é custosa e é preciso chegar a acordos sobre quem deve pagar
essa conta. O segundo é o investimento na interoperabilidade. “As informações
dos pacientes precisam estar disponíveis em diferentes locais para que essa
navegação seja facilitada. Se ele for atendido em uma UBS e depois em um
hospital privado, esses dados precisam estar disponíveis”, destaca Gomes.
Outra questão é a
regulamentação das tecnologias. No Brasil, se avançou nesse tema com a
aprovação pelo Senado, nesta terça-feira, 10, do Projeto de Lei 2338/2023, que dispõe sobre o uso de IA em diferentes frentes, inclusive na
saúde. O texto segue agora para a Câmara dos Deputados. Para o vice-presidente
da SDB, embora a criação de uma lei sobre as novas tecnologias envolva uma
complexidade maior do que a observada no caso da telemedicina, a experiência na
lei da telemedicina pode emprestar aprendizados a serem replicados: “Na lei da
telemedicina, sociedades médicas, operadoras de saúde, desenvolvedores das
tecnologias, prestadores de serviço e representantes dos pacientes participaram
do processo de formulação. Conseguimos uma lei que espelhasse os anseios da
sociedade com base em conhecimento sólido e uma redação que passasse nessa
matéria.”
Por último, um aspecto
relevante é o direcionamento de esforços para a construção de uma cultura de
letramento digital – o conhecimento da população no uso de recursos digitais na
saúde, tanto no que diz respeito aos aspectos tecnológicos quanto de senso
crítico. Pedrotti pontua que, para a adoção de qualquer ferramenta tecnológica,
o que determina se a pessoa vai adotar ou não é a percepção de utilidade. Por
isso, apesar do trabalho de comunicação ser importante, essas ferramentas
também devem ser construídas com o foco na usabilidade.
“O uso da ferramenta em si
vai se dar muito pelo marketing boca a boca, uma evolução orgânica em que as
pessoas vão percebendo a utilidade e a conveniência de utilizar uma ferramenta
de saúde digital. Isso leva tempo, é uma mudança cultural”, conclui o gerente
do Centro de Telemedicina do Einstein.
Fonte:
Futuro da Saúde
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