sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Ainda dá tempo de salvar a humanidade?

A Convenção das Nações Unidas sobre Direitos Humanos foi criada em um momento em que a maioria da humanidade estava saindo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um conflito sangrento que retroagiu a economia, as instituições e a infraestrutura de muitos países. Nessas circunstâncias, era um apelo, uma soft law, sem impor muitas obrigações de investimento para desenvolver políticas públicas de proteção de direitos. No entanto, havia tanta necessidade institucional de resgate de valores e restauração de liberdade e condições dignas de vida que o texto foi virando um instrumento forte e referencial para muitos conflitos jurídicos envolvendo direitos humanos de todas as dimensões.

A forma de degradação da cultura, das instituições e da base natural da vida é também uma forma avassaladora de guerra. Se não houver um cessar-fogo, uma espécie de corredor civilizatório para assegurar a manutenção da vida e das próprias condições em que ela nos foi dada, como asseverou Hannah Arendt, estaremos na expectativa de que, de fato, haverá outro pós-guerra maior do que o pós-Segunda Guerra Mundial e em uma escala de impacto muito maior.

A naturalização de um processo paulatino de degradação e a falta de levar em conta o que nos aponta o monitoramento dos vetores dessa degradação, trazidos a cada dia pela ciência, tornam o processo todo praticamente invisível. Não toca as consciências e nem produz demandas de urgência para a atuação do poder público local. Quando a crise se torna visível já está em situação perturbadoramente perto do dano irreversível, ou já tendo chegado a ele. Isso acontece, por exemplo, com nossos biomas, com a instauração de processos de desertificação em lugares onde havia vegetação, com a morte pela poluição ou desaparecimento de rios e com a perda de milhões de hectares de florestas, de espécies da biodiversidade terrestre e marinha.

A pergunta no título deste artigo é sinal da imensa situação de perplexidade a que chegamos em nossos tempos. Mesmo sem informações ambientais acessíveis, é preciso estabelecer um repertório de abordagens e um amplo entendimento da situação sobre eventos extremos. As perdas patrimoniais e humanas e as dores, como ocorreu em Porto Alegre recentemente, representam uma pedagogia do luto e trazem, de uma vez só, às consciências a dramaticidade da situação a que estamos submetidos.

Se percebe a escala de destruição, a violência contra os direitos humanos e a injustiça da exposição aos danos em dimensões muito maiores para as populações que não contribuíram para sua ocorrência. Isso é o que chamamos de injustiça ambiental e tem como elemento estruturante o racismo ambiental. Ou seja, são as pessoas de mais baixa renda que estarão expostas em áreas alagadas, e, dentre estas, o maior índice e as mais afetadas são segmentos da população negra. Assim, nessa interseccionalidade de perdas e danos, essas pessoas vulnerabilizadas estarão mais desprotegidas contra temperaturas extremas. Também terão maior risco de perder seu patrimônio em eventos climáticos extremos e, quando faltar água ou comida, serão os primeiros a perder o acesso a esses elementos básicos da sobrevivência humana.

·        Como chegamos até aqui?

A ciência diz que a atual crise climática é resultado do impacto das atividades humanas na superfície do planeta. No caso do clima, esse impacto está se concentrando no processo natural do sistema climático do planeta de reter o calor do sol para dar conforto climático à vida em geral. Para evitar que, durante a noite, o calor se retire totalmente da atmosfera terrestre, existe uma espécie de estufa feita com uma camada de gases na fronteira da atmosfera da Terra com o espaço sideral para reter o calor necessário e permitir a dissipação do que é excedente. Esse mecanismo mantém a temperatura média da Terra em ponto favorável aos processos fisiológicos da espécie humana e demais animais e plantas.

Ocorre que as atividades industriais, o desmatamento e as queimadas, o uso de combustível fóssil como o carvão, petróleo e gás, a produção de metano por resíduos sólidos e a produção em grande escala de gado bovino são fontes emissoras desses gases em enormes quantidades. Com isso, a camada de efeito estufa se adensou e se desregulou, retendo cada vez mais calor do sol, de forma que o planeta está ficando com suas temperaturas e processos de clima desorganizados. O planeta está entrando em colapso ecológico, ora frio demais, ora quente demais. Trata-se do que os especialistas denominam de causas antropogênicas da emergência climática.

Além disso, outras formas de impacto na natureza têm ampliado a degradação ambiental. O uso de agrotóxicos na produção agrícola é altamente contaminante, tanto no meio ambiente como nos organismos dos animais e dos humanos. A produção de plástico, que não é biodegradável e dura em média 450 anos na natureza, polui os mares a ponto de afetar gravemente a vida aquática, acidificar as águas e interferir na produção do oxigênio pelos mares. Assim, estamos emitindo mais carbono e afetando nossas maiores fontes de produção de oxigênio, uma ação nada inteligente da humanidade.

Estamos passando por um corredor estreito. De um lado, estão interesses econômicos imensos: a indústria fóssil recebe de US$ 4 trilhões a US$ 6 trilhões de investimento anual. De outro, sequer foram viabilizados pelos países do Norte Global os US$ 100 bilhões que deveriam ser destinados anualmente para países do Sul fazerem suas transições para modelos mais sustentáveis, como ficou definido no âmbito do acordo de Paris.

Além de todas as ameaças físicas ao meio ambiente e à saúde humana, temos desafios de ordem política e ideológica a enfrentar. O negacionismo climático e a ganância apontam tendências que, nas atuais circunstâncias, poderíamos considerar suicidas ou ligadas a processos psicossociais conectados à pulsão de morte em prejuízo da pulsão de vida.

Há muitos processos em sinergia para destruir, desregular, desmontar, degradar. Mas a relação entre eles nem sempre é perceptível para a maioria das pessoas, embora tenhamos instrumentos de mensuração, dados estatísticos e descobertas analíticas da ciência. Já temos conhecimentos científicos suficientes sobre os processos ambientais do planeta e suas fronteiras ecológicas. Se essas fronteiras forem ultrapassadas, podem nos levar a situações ainda mais graves: a intensificação de eventos climáticos extremos, a submersão de países inteiros e áreas de litoral de outros tantos com a elevação do nível do mar pelo derretimento de geleiras, incêndios naturais, temperaturas insuportáveis, escassez de água potável, desertificação, entre outros riscos.

A boa notícia é que, ao mesmo tempo em que o conhecimento científico nos mostra os problemas, nos permite também buscar as soluções. Uma parte considerável da humanidade tem feito de sua vida uma constante busca dessas soluções para todos. Há os que atuam na tecnologia, os que empreendem, os que mobilizam, os que constroem acordos diplomáticos e os que desenvolvem políticas públicas, dirigindo recursos para esforços de proteção dos mais vulneráveis. Há também os que atuam na esfera da transformação das percepções e consciências.

No Brasil, com a instituição da diretriz de que a política ambiental do governo deve ser exercida de forma transversal, comprometida com o desenvolvimento sustentável e socioambiental, os temas ambientais têm se espalhado. A agenda ambiental está presente em 50 dos 88 programas votados pela população na elaboração do Plano Plurianual Participativo (PPA) para o período 2024-2027. Esses programas se distribuem também por dezenove pastas ministeriais, além do Ministério do Meio Ambiente, que é responsável por boa parte da política pública ambiental.

Dado que a crise ambiental tem proporções globais, todas as nossas ações são parte de um contexto maior e precisam estar presentes nas dimensões nacional e internacional. Isso significa desenvolver políticas públicas que envolvam todos os segmentos da sociedade brasileira. Simultaneamente, é preciso realizar articulações de cunho multilateral com países que também são megadiversos em biodiversidade e demais recursos naturais.

Estrategicamente, nosso grande desafio é mudar paradigmas de produção agrícola, de construção de infraestrutura, de criação de animais, de distribuição de terras, de demarcação de áreas indígenas, quilombolas e de práticas de exploração das riquezas minerais. Mas, além de mudar o paradigma, há o esforço a ser feito por todas as agências públicas e privadas que trabalham junto à população, com processos que geram aprendizagem para promover a absorção do novo paradigma e transformá-lo em valor cultural, em convicção do que é ético e justo fazer. São dois imensos desafios.

No enfrentamento desses dois desafios, o Brasil tem feito grandes investimentos em Bioeconomia, que é a produção econômica que conserva e protege a natureza. Essa política inclui comunidades tradicionais, respeita e remunera seus conhecimentos associados à biodiversidade, constrói espaços de circulação e venda para os produtos dessas comunidades e compartilha os resultados financeiros do uso industrial de seus saberes em larga escala. Outra medida é fomentar o desenvolvimento de tecnologias para investidores que cumpram o papel de conservar e proteger a natureza. A proteção a que nos referimos diz respeito igualmente ao uso de agrotóxicos. Vandana Shiva, uma das principais vozes nos debates mundiais sobre produção de alimentos e combate à desigualdade, afirma que “a semente é um símbolo de liberdade numa era de manipulação e monopólio”. Nessa frase há todo um conceito de produção rural ao lado da resistência ao que Shiva chama de “bioimperialismo” promovido por interesses das corporações internacionais.

Outro aspecto de nosso enfrentamento no plano nacional se refere à nossa matriz energética. O Brasil tem produção de energia oriunda de fontes renováveis hídricas, solar, eólica e de biomassa. Há também grande potencial de produção de hidrogênio verde predominando sobre as fontes fósseis do carvão, gás e petróleo. Mas esse é um espaço de grandes disputas, pois as fontes fósseis têm um financiamento gigantesco, apesar de emitirem grandes quantidades de carbono. Todo o seu uso amplifica o efeito estufa pela retenção do calor solar. Isso significa uma energia que não é dissipada no espaço e vai transformando nosso planeta em um grande forno no qual estamos todos sujeitos a perecer.

No espaço urbano, têm se firmado políticas para abordar vários problemas ambientais, urbanísticos e sociais, sob a ideia de cidades resilientes. Essas políticas incluem fomento à agricultura urbana e à organização social e econômica dos coletores de resíduos, fortalecimento e ampliação de áreas verdes, remoção de pessoas em áreas de risco de desabamento e alagamentos, entre outras medidas. Esse conjunto de ações deve vir acompanhado de outras políticas que enfrentem a fome e a desigualdade social e que ofereçam proteção contra os efeitos de eventos climáticos extremos.

Por fim, é importante ressaltar nossas escolhas de consumo, na governabilidade de cada um. Esse consumo, muitas vezes, financia indústrias que não se preocupam com o meio ambiente, que geram resíduos de embalagem quando os recipientes não são recicláveis. O volume dos produtos adquiridos, muitas vezes sem necessidade, é resultado da propaganda dos produtores em todas as mídias com as quais interagimos.

Todos os dias oferecemos ao planeta coisas que ele não pediu, não precisa e ainda sofre muito com elas. São bilhões de sacolas plásticas, caixinhas, latinhas, tampinhas, escovas de dente, lacres de embalagens, tecidos, papéis, entre muitas outras coisas. Descartar uma sacola, um copinho plástico, um lacrezinho é tão natural, tão ínfimo, tão irrelevante que nos esquecemos de multiplicar nosso gesto individual por bilhões sobre o planeta. Os governos dos países, no entanto, têm que fazer essa conta e lidar com esses números inimagináveis para nossa visão de leigos.

Na ONU reverberam essas microtragédias acumuladas na escala dos bilhões. Em 1992, o estudo “Nosso futuro comum” levantava uma série de alertas sobre o impacto das ações humanas sobre a natureza. O estudo foi liderado pela ex-primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland, a pedido das Nações Unidas. Após a circulação desse estudo, realizou-se, no Rio de Janeiro, a Eco 92, também chamada de Cúpula da Terra, uma Conferência de Meio Ambiente. Foi um marco na história das conferências, pois, além de oficializar o conceito de desenvolvimento sustentável, criado pelo Relatório Brundtland, decidiu-se pela criação das Conferências de Clima, de Biodiversidade e de Desertificação, e foi aprovada uma Declaração sobre Florestas.

Agora estamos às vésperas da trigésima reunião da Conferência do Clima, a COP 30, que se realizará em Belém, no Pará, em novembro de 2025. Este é um lugar emblemático e um bioma emblemático. Será uma das reuniões mais importantes do sistema ONU, com a participação de 196 países signatários da conferência e milhares de organizações da sociedade. A COP 30 se constitui em um momento limite para fazermos, como humanidade, alguma coisa sensata e generosa conosco, com as demais formas de vida e com o meio ambiente. Teremos um encontro com temas fundamentais para nosso futuro, principalmente para garantir que ele exista para o sistema de vida, pois o planeta continuará existindo sem nós, caso não cheguemos a um acordo mundial sobre os limites ecológicos que devemos respeitar.

Na pauta da COP 30 do Clima estão a mitigação, adaptação e transformação. Isso significa que os países se debruçarão sobre negociações de medidas para promover a redução da emissão de gases que causam o efeito estufa. Isso inclui enfrentar os diferentes graus de consequência sobre o aumento da temperatura global em todos os países e, por fim, discutir como financiar a transição energética.

Nesse debate, discutir-se-ão ações concretas rumo ao objetivo de não permitir que o aumento da temperatura média da Terra ultrapasse 1,5 graus. Para isso, será preciso triplicar as energias renováveis, duplicar a eficiência energética e, o que é mais importante, fazer a transição para o fim do uso de combustíveis fósseis. Também será definido o estabelecimento de Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) suficientemente robustas para evitar o início do fim da vida no planeta. Desse encontro, surgirão respostas, inclusive sobre se ainda é possível salvar a humanidade e todas as demais formas de vida. E esse é o maior desafio dos direitos humanos: continuar plenos de esperança de que temos preservadas as condições em que a vida nos foi dada no planeta.

 

Fonte: Por Marina Silva, no Le Monde

 

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