Ainda dá tempo de salvar a
humanidade?
A Convenção das Nações Unidas sobre
Direitos Humanos foi criada em um momento em que a maioria da humanidade estava
saindo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um conflito sangrento que
retroagiu a economia, as instituições e a infraestrutura de muitos países.
Nessas circunstâncias, era um apelo, uma soft law, sem
impor muitas obrigações de investimento para desenvolver políticas públicas de
proteção de direitos. No entanto, havia tanta necessidade institucional de
resgate de valores e restauração de liberdade e condições dignas de vida que o
texto foi virando um instrumento forte e referencial para muitos conflitos
jurídicos envolvendo direitos humanos de todas as dimensões.
A forma de degradação da cultura, das
instituições e da base natural da vida é também uma forma avassaladora de
guerra. Se não houver um cessar-fogo, uma espécie de corredor civilizatório
para assegurar a manutenção da vida e das próprias condições em que ela nos foi
dada, como asseverou Hannah Arendt, estaremos na expectativa de que, de fato,
haverá outro pós-guerra maior do que o pós-Segunda Guerra Mundial e em uma
escala de impacto muito maior.
A naturalização de um processo paulatino de
degradação e a falta de levar em conta o que nos aponta o monitoramento dos
vetores dessa degradação, trazidos a cada dia pela ciência, tornam o processo
todo praticamente invisível. Não toca as consciências e nem produz demandas de
urgência para a atuação do poder público local. Quando a crise se torna visível
já está em situação perturbadoramente perto do dano irreversível, ou já tendo
chegado a ele. Isso acontece, por exemplo, com nossos biomas, com a instauração
de processos de desertificação em lugares onde havia vegetação, com a morte
pela poluição ou desaparecimento de rios e com a perda de milhões de hectares
de florestas, de espécies da biodiversidade terrestre e marinha.
A pergunta no título deste artigo é sinal
da imensa situação de perplexidade a que chegamos em nossos tempos. Mesmo sem
informações ambientais acessíveis, é preciso estabelecer um repertório de
abordagens e um amplo entendimento da situação sobre eventos extremos. As
perdas patrimoniais e humanas e as dores, como ocorreu em Porto Alegre
recentemente, representam uma pedagogia do luto e trazem, de uma vez só, às
consciências a dramaticidade da situação a que estamos submetidos.
Se percebe a escala de destruição, a violência
contra os direitos humanos e a injustiça da exposição aos danos em dimensões
muito maiores para as populações que não contribuíram para sua ocorrência. Isso
é o que chamamos de injustiça ambiental e tem como elemento estruturante o
racismo ambiental. Ou seja, são as pessoas de mais baixa renda que estarão
expostas em áreas alagadas, e, dentre estas, o maior índice e as mais afetadas
são segmentos da população negra. Assim, nessa interseccionalidade de perdas e
danos, essas pessoas vulnerabilizadas estarão mais desprotegidas contra
temperaturas extremas. Também terão maior risco de perder seu patrimônio em
eventos climáticos extremos e, quando faltar água ou comida, serão os primeiros
a perder o acesso a esses elementos básicos da sobrevivência humana.
·
Como chegamos até aqui?
A ciência diz que a atual crise climática é
resultado do impacto das atividades humanas na superfície do planeta. No caso
do clima, esse impacto está se concentrando no processo natural do sistema
climático do planeta de reter o calor do sol para dar conforto climático à vida
em geral. Para evitar que, durante a noite, o calor se retire totalmente da
atmosfera terrestre, existe uma espécie de estufa feita com uma camada de gases
na fronteira da atmosfera da Terra com o espaço sideral para reter o calor
necessário e permitir a dissipação do que é excedente. Esse mecanismo mantém a
temperatura média da Terra em ponto favorável aos processos fisiológicos da
espécie humana e demais animais e plantas.
Ocorre que as atividades industriais, o
desmatamento e as queimadas, o uso de combustível fóssil como o carvão,
petróleo e gás, a produção de metano por resíduos sólidos e a produção em
grande escala de gado bovino são fontes emissoras desses gases em enormes
quantidades. Com isso, a camada de efeito estufa se adensou e se desregulou,
retendo cada vez mais calor do sol, de forma que o planeta está ficando com
suas temperaturas e processos de clima desorganizados. O planeta está entrando
em colapso ecológico, ora frio demais, ora quente demais. Trata-se do que os
especialistas denominam de causas antropogênicas da emergência climática.
Além disso, outras formas de impacto na
natureza têm ampliado a degradação ambiental. O uso de agrotóxicos na produção
agrícola é altamente contaminante, tanto no meio ambiente como nos organismos
dos animais e dos humanos. A produção de plástico, que não é biodegradável e
dura em média 450 anos na natureza, polui os mares a ponto de afetar gravemente
a vida aquática, acidificar as águas e interferir na produção do oxigênio pelos
mares. Assim, estamos emitindo mais carbono e afetando nossas maiores fontes de
produção de oxigênio, uma ação nada inteligente da humanidade.
Estamos passando por um corredor estreito.
De um lado, estão interesses econômicos imensos: a indústria fóssil recebe de
US$ 4 trilhões a US$ 6 trilhões de investimento anual. De outro, sequer foram
viabilizados pelos países do Norte Global os US$ 100 bilhões que deveriam ser
destinados anualmente para países do Sul fazerem suas transições para modelos
mais sustentáveis, como ficou definido no âmbito do acordo de Paris.
Além de todas as ameaças físicas ao meio
ambiente e à saúde humana, temos desafios de ordem política e ideológica a
enfrentar. O negacionismo climático e a ganância apontam tendências que, nas
atuais circunstâncias, poderíamos considerar suicidas ou ligadas a processos
psicossociais conectados à pulsão de morte em prejuízo da pulsão de vida.
Há muitos processos em sinergia para
destruir, desregular, desmontar, degradar. Mas a relação entre eles nem sempre
é perceptível para a maioria das pessoas, embora tenhamos instrumentos de mensuração,
dados estatísticos e descobertas analíticas da ciência. Já temos conhecimentos
científicos suficientes sobre os processos ambientais do planeta e suas
fronteiras ecológicas. Se essas fronteiras forem ultrapassadas, podem nos levar
a situações ainda mais graves: a intensificação de eventos climáticos extremos,
a submersão de países inteiros e áreas de litoral de outros tantos com a
elevação do nível do mar pelo derretimento de geleiras, incêndios naturais,
temperaturas insuportáveis, escassez de água potável, desertificação, entre
outros riscos.
A boa notícia é que, ao mesmo tempo em que
o conhecimento científico nos mostra os problemas, nos permite também buscar as
soluções. Uma parte considerável da humanidade tem feito de sua vida uma
constante busca dessas soluções para todos. Há os que atuam na tecnologia, os
que empreendem, os que mobilizam, os que constroem acordos diplomáticos e os
que desenvolvem políticas públicas, dirigindo recursos para esforços de
proteção dos mais vulneráveis. Há também os que atuam na esfera da
transformação das percepções e consciências.
No Brasil, com a instituição da diretriz de
que a política ambiental do governo deve ser exercida de forma transversal,
comprometida com o desenvolvimento sustentável e socioambiental, os temas
ambientais têm se espalhado. A agenda ambiental está presente em 50 dos 88
programas votados pela população na elaboração do Plano Plurianual
Participativo (PPA) para o período 2024-2027. Esses programas se distribuem
também por dezenove pastas ministeriais, além do Ministério do Meio Ambiente,
que é responsável por boa parte da política pública ambiental.
Dado que a crise ambiental tem proporções
globais, todas as nossas ações são parte de um contexto maior e precisam estar
presentes nas dimensões nacional e internacional. Isso significa desenvolver
políticas públicas que envolvam todos os segmentos da sociedade brasileira.
Simultaneamente, é preciso realizar articulações de cunho multilateral com
países que também são megadiversos em biodiversidade e demais recursos
naturais.
Estrategicamente, nosso grande desafio é
mudar paradigmas de produção agrícola, de construção de infraestrutura, de
criação de animais, de distribuição de terras, de demarcação de áreas
indígenas, quilombolas e de práticas de exploração das riquezas minerais. Mas,
além de mudar o paradigma, há o esforço a ser feito por todas as agências
públicas e privadas que trabalham junto à população, com processos que geram
aprendizagem para promover a absorção do novo paradigma e transformá-lo em
valor cultural, em convicção do que é ético e justo fazer. São dois imensos
desafios.
No enfrentamento desses dois desafios, o
Brasil tem feito grandes investimentos em Bioeconomia, que é a produção
econômica que conserva e protege a natureza. Essa política inclui comunidades
tradicionais, respeita e remunera seus conhecimentos associados à
biodiversidade, constrói espaços de circulação e venda para os produtos dessas
comunidades e compartilha os resultados financeiros do uso industrial de seus saberes
em larga escala. Outra medida é fomentar o desenvolvimento de tecnologias para
investidores que cumpram o papel de conservar e proteger a natureza. A proteção
a que nos referimos diz respeito igualmente ao uso de agrotóxicos. Vandana
Shiva, uma das principais vozes nos debates mundiais sobre produção de
alimentos e combate à desigualdade, afirma que “a semente é um símbolo de
liberdade numa era de manipulação e monopólio”. Nessa frase há todo um conceito
de produção rural ao lado da resistência ao que Shiva chama de
“bioimperialismo” promovido por interesses das corporações internacionais.
Outro aspecto de nosso enfrentamento no
plano nacional se refere à nossa matriz energética. O Brasil tem produção de
energia oriunda de fontes renováveis hídricas, solar, eólica e de biomassa. Há
também grande potencial de produção de hidrogênio verde predominando sobre as
fontes fósseis do carvão, gás e petróleo. Mas esse é um espaço de grandes
disputas, pois as fontes fósseis têm um financiamento gigantesco, apesar de
emitirem grandes quantidades de carbono. Todo o seu uso amplifica o efeito
estufa pela retenção do calor solar. Isso significa uma energia que não é
dissipada no espaço e vai transformando nosso planeta em um grande forno no
qual estamos todos sujeitos a perecer.
No espaço urbano, têm se firmado políticas
para abordar vários problemas ambientais, urbanísticos e sociais, sob a ideia
de cidades resilientes. Essas políticas incluem fomento à agricultura urbana e
à organização social e econômica dos coletores de resíduos, fortalecimento e
ampliação de áreas verdes, remoção de pessoas em áreas de risco de desabamento
e alagamentos, entre outras medidas. Esse conjunto de ações deve vir
acompanhado de outras políticas que enfrentem a fome e a desigualdade social e
que ofereçam proteção contra os efeitos de eventos climáticos extremos.
Por fim, é importante ressaltar nossas
escolhas de consumo, na governabilidade de cada um. Esse consumo, muitas vezes,
financia indústrias que não se preocupam com o meio ambiente, que geram
resíduos de embalagem quando os recipientes não são recicláveis. O volume dos
produtos adquiridos, muitas vezes sem necessidade, é resultado da propaganda
dos produtores em todas as mídias com as quais interagimos.
Todos os dias oferecemos ao planeta coisas
que ele não pediu, não precisa e ainda sofre muito com elas. São bilhões de
sacolas plásticas, caixinhas, latinhas, tampinhas, escovas de dente, lacres de
embalagens, tecidos, papéis, entre muitas outras coisas. Descartar uma sacola,
um copinho plástico, um lacrezinho é tão natural, tão ínfimo, tão irrelevante
que nos esquecemos de multiplicar nosso gesto individual por bilhões sobre o
planeta. Os governos dos países, no entanto, têm que fazer essa conta e lidar
com esses números inimagináveis para nossa visão de leigos.
Na ONU reverberam essas microtragédias
acumuladas na escala dos bilhões. Em 1992, o estudo “Nosso futuro comum”
levantava uma série de alertas sobre o impacto das ações humanas sobre a
natureza. O estudo foi liderado pela ex-primeira-ministra da Noruega, Gro
Brundtland, a pedido das Nações Unidas. Após a circulação desse estudo,
realizou-se, no Rio de Janeiro, a Eco 92, também chamada de Cúpula da Terra,
uma Conferência de Meio Ambiente. Foi um marco na história das conferências,
pois, além de oficializar o conceito de desenvolvimento sustentável, criado
pelo Relatório Brundtland, decidiu-se pela criação das Conferências de Clima,
de Biodiversidade e de Desertificação, e foi aprovada uma Declaração sobre
Florestas.
Agora estamos às vésperas da trigésima
reunião da Conferência do Clima, a COP 30, que se realizará em Belém, no Pará,
em novembro de 2025. Este é um lugar emblemático e um bioma emblemático. Será
uma das reuniões mais importantes do sistema ONU, com a participação de 196
países signatários da conferência e milhares de organizações da sociedade. A
COP 30 se constitui em um momento limite para fazermos, como humanidade, alguma
coisa sensata e generosa conosco, com as demais formas de vida e com o meio
ambiente. Teremos um encontro com temas fundamentais para nosso futuro,
principalmente para garantir que ele exista para o sistema de vida, pois o
planeta continuará existindo sem nós, caso não cheguemos a um acordo mundial
sobre os limites ecológicos que devemos respeitar.
Na pauta da COP 30 do Clima estão a
mitigação, adaptação e transformação. Isso significa que os países se
debruçarão sobre negociações de medidas para promover a redução da emissão de
gases que causam o efeito estufa. Isso inclui enfrentar os diferentes graus de
consequência sobre o aumento da temperatura global em todos os países e, por
fim, discutir como financiar a transição energética.
Nesse debate, discutir-se-ão ações
concretas rumo ao objetivo de não permitir que o aumento da temperatura média
da Terra ultrapasse 1,5 graus. Para isso, será preciso triplicar as energias
renováveis, duplicar a eficiência energética e, o que é mais importante, fazer
a transição para o fim do uso de combustíveis fósseis. Também será definido o
estabelecimento de Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs)
suficientemente robustas para evitar o início do fim da vida no planeta. Desse
encontro, surgirão respostas, inclusive sobre se ainda é possível salvar a
humanidade e todas as demais formas de vida. E esse é o maior desafio dos
direitos humanos: continuar plenos de esperança de que temos preservadas as
condições em que a vida nos foi dada no planeta.
Fonte: Por Marina
Silva, no Le Monde
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