Guerra do Paraguai,
160 anos: as descobertas que contradizem o que a escola ensinou sobre o
conflito sangrento
Ao longo de pelo
menos duas décadas, a maior parte dos estudantes brasileiros aprendeu uma
história errada sobre a Guerra do Paraguai, o maior e mais sangrento conflito
armado internacional já ocorrido na América Latina.
A versão mais
contada pelos professores de História era aquela popularizada pelos ideólogos
de esquerda que faziam oposição ao regime militar que comandou o Brasil durante
a ditadura, de 1964 a 1985. Com foco em uma aversão ao imperialismo estrangeiro
e qualquer interferência das grandes potências nos destinos sul-americanos,
vendia-se a narrativa de que o conflito do século 19 havia sido causado,
financiado e indiretamente capitaneado pela Grã-Bretanha.
Nessa história,
o Paraguai ascendia como
um país que caminhava para ser considerado desenvolvido, com industrialização,
justiça social e uma produção de riquezas sem igual, de forma independente,
configurando assim uma exceção naquele contexto de novos países americanos que
estavam conseguindo autonomia frente aos colonizadores a preço de uma
dependência econômica de nações ricas.
Vendo-se ameaçados
por aquele paisinho que se tornaria um concorrente de sua influência, sobretudo
no Brasil e na Argentina, os ingleses despejaram dinheiro e reforços bélicos. O
resultado: um massacre que teria condenado ao Paraguai à pobreza e
ao subdesenvolvimento. Fim do sonho sul-americano.
"Onde está
qualquer documento que prove que foi a Inglaterra? Não existe um documento
oficial, não existe nada que mostre que o governo inglês tinha interesse em
fazer uma guerra na região", diz o historiador Francisco Doratioto,
professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB). O especialista concedeu
entrevista à BBC News Brasil na manhã de terça-feira (10/12).
A visão
contemporânea que se tem do conflito, deflagrado oficialmente com a declaração de guerra do Paraguai ao Brasil em 13 de
dezembro de 1864,
véspera da invasão das forças do país vizinho à então província do Mato Grosso,
é aquela que foi construída por historiadores como Doratioto depois de
minuciosa pesquisa em documentos históricos paraguaios, brasileiros,
argentinos, uruguaios e ingleses.
Em 2002, o
historiador lançou seu mais conhecido livro: Maldita Guerra: Nova História
da Guerra do Paraguai, consolidando-se como autoridade no tema. Outros
estudiosos que foram reconhecidos pela reescrita da história dessa guerra foram
os historiadores Ricardo Salles (1950-2021) e, de forma pioneira, Moniz
Bandeira (1935-2017).
A Guerra do
Paraguai durou de dezembro de 1864 a março de 1870. De um lado estava a pequena
República do Paraguai, com cerca de 400 mil habitantes. De outro, a Tríplice
Aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai — juntos, somavam pouco mais de
11 milhões de habitantes.
O resultado foi
arrasador. Calcula-se que a população paraguaia tenha se reduzido para menos de
190 mil pessoas. "90% dos homens morreram", afirma Doratioto.
"Do sexo masculino, sobraram apenas idosos e crianças."
Doratioto explica
que a versão outrora ensinada no Brasil acabou se tornando a mais conhecida e
difundida no país, sobretudo por conta da ditadura militar. E seu registro mais
popular foi o livro Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai, publicado
em 1979, de autoria do jornalista Júlio José Chiavenato.
"Ele não é
historiador e comete erros de metodologia que qualquer aluno de graduação [se o
fizesse] não seria aprovado na matéria", aponta Doratioto. "Mas tem o
grande mérito de reviver o tema que estava abandonado pelos historiadores e por
militares que vinham com uma visão ufanista e oficial da guerra."
Nessa obra, nota-se
que o autor tenta passar sua indignação pelas crueldades cometidas pela guerra.
"Ele vai pelos corações e ganha pela emoção", analisa Doratioto.
"Na época, ao ler aquilo, eu achei correto."
Tanto que o
historiador foi um dentre a imensa maioria de sua geração que contava essa
versão nas salas de aula, quando professor de colégios em São Paulo.
"Eu ensinei
isso", admite. "Lembro-me que tinha um aluno brilhante que, no final
de uma aula, me perguntou: mas, professor, se a Inglaterra queria acesso ao
mercado paraguaio e fez a guerra para ter esse acesso, qual era a lógica de
destruir esse mercado?"
O revisionismo que
trouxe à tona essa narrativa, na época, tinha um foco: desmoralizar os
militares que autoritariamente chefiavam o país. E, de quebra, criticar a
influência imperialista de forças estrangeiras.
"No momento
histórico em que aquilo foi escrito, em pleno regime militar, os setores
democráticos da sociedade tinham perdido o espaço", contextualiza.
"De repente
apareceu um livro que dizia que o Caxias, que é o patrono do exército
brasileiro, tinha feito crimes de guerra praticamente, mandando jogar cadáveres
coléricos no rio Paraguai para contaminar tropas paraguaias", comenta
Doratioto. "O livro desmoralizava os ícones do regime militar. Dava à
guerra ideológica uma vantagem contra o regime militar."
Nesse exemplo
trazido pelo historiador, a narrativa é de que o marechal Luís Alves de Lima e
Silva (1803-1880), o Duque de Caxias, que comandava as tropas brasileiras no
Paraguai, teria determinado que os corpos daqueles que haviam morrido por uma
epidemia de cólera que matou 4 mil de seus soldados fossem jogados no rio
Paraguai, nos arredores de Humaitá, para que contaminassem os soldados
paraguaios entrincheirados a quilômetros ali, em uma guerra biológica.
Mas Doratioto
aponta contradições: a primeira, de cunho geográfico. O sentido em que corre o
rio é contrário ao que faria sentido nessa narrativa. "Os cadáveres
nadaram contra a corrente? Isto é absurdo", provoca o historiador.
O outro é o fato de
que os militares tinham o costume de queimar ou enterrar os que morriam durante
as campanhas. "Como era uma região pantanosa, a água do rio acabou
contaminada. E isso provocou a epidemia que matou ainda mais soldados
brasileiros", explica ele.
Em carta destinada
à mulher, Caxias lamentou que havia perdido "um exército" antes mesmo
de entrar em combate, já que quase 4 mil soldados brasileiros morreram de
cólera no episódio.
Outro problema da
narrativa difundida por Chiavenato foi pintar o Paraguai como um país em outro
patamar de desenvolvimento, com industrialização avançada, ferrovias e uma
sociedade baseada na justiça social.
"Indústria
pesada no Paraguai em 1864? Praticamente não existia. Tinha uma fundição.
Protossocialismo? Como protossocialismo? Era uma estrutura de exploração do
camponês que colhia erva-mate e mesmo pela lógica marxista havia uma, entre
aspas, mais-valia apropriada pelo Estado paraguaio do camponês",
exemplifica.
Para Doratioto, a
ideia de mirar no imperialismo inglês e vilanizá-lo pelas crueldades da guerra
também encontra justificativa no cenário da ditadura. A esquerda ideológica
brasileira tinha como inimigo o imperialismo norte-americano, pois os Estados
Unidos financiaram o golpe de 1964 e eram apoiadores dos governos militares.
Assim, mudava-se o protagonista, mas havia uma mesma semântica para configurar
o "inimigo".
Se essa versão
revisionista da história se tornou popular no Brasil por conta da esquerda, o
curioso é que na Argentina ela se consolidou pela direita.
"[No país
vizinho, essa narrativa] É basicamente o pensamento autoritário da direita
xenófoba que vem desde as década de 1920 e 1930, um pensamento que se constrói
contra os ingleses, contra o imperialismo inglês", afirma. "E no
Brasil ele é reciclado frente a um sentimento anti-Estados Unidos."
·
Por
que a guerra?
Desde a sua
independência, em 1811, o Paraguai vivia uma situação atípica. Encurralado e
sem acesso ao mar, tinha dificuldade para escoar internacionalmente seus
produtos — erva-mate e madeira, basicamente.
No centro do
continente e sem oferecer as riquezas que eram importantes no mundo colonial,
ou seja, metais preciosos, o Paraguai já havia experimentado um certo
isolamento durante o domínio espanhol. Isso impactou na formação de sua
sociedade.
"Era e ainda é
a única sociedade na América do Sul bilíngue, com a cultura guarani entranhada
na cultura do colonizador", exemplifica Doratioto.
Além disso, a
população feminina era maior do que a masculina. Isso se dava justamente
porque, com a falta de ouro e prata, o território acabou se tornando ponto de
passagem para o contrabando — as mulheres se fixavam, mas os homens iam e
vinham.
Com a independência
das antigas colônias hispânicas, a elite de Buenos Aires "tentou se tornar
um centro de poder", explica o historiador. "Eles buscavam manter
subordinadas a ela todas as províncias do antigo Vice-reino do Rio da Prata, ou
seja, Uruguai, Bolívia e Paraguai", diz ele.
O Paraguai se
recusou e acabou sozinho.
No comando do país
estava o ditador Gaspar de Francia (1766-1840). "Ele estabeleceu uma
ditadura impressionante, quase surrealista", analisa Doratioto. "Para
se ter uma ideia, ele rompeu com Roma e estabeleceu uma Igreja Católica
própria. E proibiu casamento interculturais, prendeu parte da elite…"
O isolamento
sul-americano só fortaleceu seu regime, pois acabava justificando a necessidade
de seu poder autoritário e centralizado.
Seu sucessor foi
Carlos Antonio López (1790-1882) que, segundo Doratioto, "tinha uma visão
muito clara da situação" complicada que enfrentava o país. "Ele tenta
abrir o Paraguai, controladamente", comenta.
Nesse processo,
ganhou o apoio do Império Brasileiro. Que também tinha seus interesses: não
queria que a Argentina fosse tão poderosa, no xadrez geopolítico que se
desenhava na América do Sul.
López decidiu criar
uma elite preparada em seu país. Financiou o envio de duas dezenas de jovens
para estudar na Europa, contratou uma empresa inglesa para representar os
interesses paraguaios junto às grandes potências e começava a investir em
material bélico. Ele também contratou técnicos ingleses para fazer obras
pontuais de infraestrutura em seu território.
"Mas o
Paraguai era um país agrícola, não tinha escolas em nível superior, tinha
apenas uma fundição de ferro e uma pequena ferrovia que ligava Assunção a um
acampamento militar e que foi a terceira da América Latina", aponta.
A modernização
experimentada pelo Paraguai, segundo o historiador, tinha finalidades apenas
militares, de defesa. Não visava a uma sociedade igualitária ou à justiça
social.
Com sua morte, a
presidência foi assumida pelo filho, Francisco Solano López (1827-1870). Que,
menos pragmático do que o pai, acabou sendo o autor da declaração de guerra que
tornaria o conflito entre os países sul-americanos inevitável.
De acordo com o
historiador Moniz Bandeira, a motivação do conflito foi de natureza econômica.
Naquela década de 1860, o isolado Paraguai estava sem caixa para continuar o
tímido porém calculado projeto de modernização empreendido pelo López pai.
"Para aumentar
as exportação, o Paraguai precisava achar uma saída para o mar", resume
Doratioto. O historiador, contudo, comenta que mesmo se esse acesso fosse
possível o país teria dificuldades. "Era um pequeno país de agricultura de
técnicas medievais. E nenhum agricultor [paraguaio] tinha interesse em produzir
mais para a exportação. Eram agricultores de subsistência, em um nível muito
baixo."
·
O
investimento inglês
Um dos achados de
Doratioto que indicam que a Grã-Bretanha não queria uma guerra na América do
Sul é uma carta do diplomata Edward Thornton, então o embaixador britânico na
Argentina e no Paraguai — baseado em Buenos Aires, já que Assunção não contava
com este posto.
Dirigindo-se ao
chanceler paraguaio José Berges, o inglês escreveu que "a Inglaterra
também está em atritos com o Brasil" e que "particularmente sim, se
puder servir, no mínimo que seja, para contribuir para a reconciliação dos dois
países [Paraguai e Brasil], espero que Vossa Excelência não hesite em me
utilizar".
A carta é datada de
7 de dezembro de 1864, cinco dias antes da declaração de guerra emitida pelo
governo paraguaio.
Um dos principais
pontos da historiografia revisionista é dizer que a prova do interesse e do
envolvimento inglês seria o fato de que houve financiamento da potência
europeia nas campanhas brasileira e argentina que acabariam dizimando metade do
Paraguai.
De fato, esses
empréstimos ocorreram. Mas Doratioto tem argumentos para contextualizar esse
fato. "A lógica do capital não tem nacionalidade nem patriotismo. O
capital está em busca de remuneração e garantia", pontua. "Banqueiros
ingleses emprestaram para o Brasil e para a Argentina, claro. Vão emprestar
para o Paraguai, um país isolado no interior do continente, sem acesso ao
mercado externo, sem ouro e fazendo guerra contra três países por iniciativa
própria?"
Ele ainda lembra
que esse financiamento inglês nem foi tão representativo como se imagina para o
lado brasileiro da guerra. Segundo o historiador, cerca de 12% das despesas de
guerra do Brasil foram bancadas com empréstimos estrangeiros, apenas.
·
Violência
militar
Sobre as atrocidades
da guerra cometidas por Duque de Caxias e suas tropas, Doratioto concorda que
elas foram ressaltadas para manchar a imagem do patrono do exército no contexto
da ditadura. Mas ele as confirma.
Em seu livro, por
exemplo, o historiador conta que os combatentes brasileiros chegaram a matar
crianças que se passavam por soldados nas trincheiras paraguaias.
"Guerra é
sempre uma selvageria. As acusações contra o Caxias fazem parte de uma
dialética da guerras: todos os chefes militares em combate deram ordem para
matar, até a Segunda Guerra vencia uma guerra quem matava mais",
argumenta.
Doratioto avalia
que a figura histórica do Duque de Caxias "até hoje não foi
suficientemente explorada pelos historiadores". E entende que
"desmoralizá-lo", na época da ditadura, "era desmoralizar o
regime militar".
Fonte: BBC News
Brasil
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