Autos do assassinato da vice-prefeita de Magé (RJ) ficaram
desarquivados por quase um ano
Em 2002, a então vice-prefeita, mulher
negra, ex-empregada doméstica e ativista política Lídia Menezes foi assassinada em Magé (RJ), na Baixada
Fluminense. Então pré-candidata a deputada federal, Menezes foi encontrada
carbonizada dentro de seu carro, no dia 2 de junho daquele ano.
Em outubro de 2002, Genivaldo Ferreira
Nogueira, conhecido como Batata, empresário e ex-vereador de Magé, e então
presidente da Câmara Municipal, foi preso como suposto mandante do crime.
Segundo os investigadores da época, o plano seria afastar a prefeita Narriman
e, com a morte de Menezes, assumir o poder. Anos depois, em 2006, Batata foi
absolvido por unanimidade.
A execução é considerada “o primeiro
assassinato de uma mulher negra política desde a redemocratização”, para o
sociólogo e coordenador institucional no Afro-Cebrap, Huri Paz, morador de Magé
durante 11 dos seus 27 anos de idade.
Agora, em outubro deste ano, mais de 22
anos após o assassinato de Menezes, o pesquisador foi pego de surpresa: em meio
à sua pesquisa sobre o assassinato e o significado dele para os casos de violência política da Baixada,
Paz descobriu que o processo sobre o crime havia sumido do cartório de Magé.
O pesquisador contou que contatou um
colega advogado e solicitou ajuda para localizar o processo, que ainda se
encontra no formato físico, sem digitalização. “Ao consultar a movimentação da
ação judicial, percebi que o processo havia sido desarquivado por um outro
advogado, em dezembro de 2023, e, desde então, nunca fora devolvido”, disse. O
defensor ligou para a vara criminal de Magé e teve a confirmação: “O processo
não está mais aqui e nós não conseguimos localizar o advogado responsável”,
informou um funcionário.
A Agência Pública entrou
em contato com esse setor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
em Magé, no dia 30 de outubro, e confirmou, com os atendentes, que o processo
envolvendo o assassinato de Menezes ainda não havia retornado depois do
desarquivamento.
Segundo as informações do tribunal, os
advogados que desarquivaram o processo antes do sumiço dos autos são: Luiz
Carlos Silva Neto, famoso criminalista carioca, que teria uma carteira de clientes como o bicheiro Rogério
de Andrade; e Celso Silva da Cruz, criminalista do escritório Silva Neto que
ficou responsável pelo recolhimento e pela devolução dos autos ao cartório.
Uma vez desarquivado, um processo pode
ficar até dez dias com a pessoa que fez a solicitação para que tenha tempo
hábil de fazer as cópias de trechos e partes que achar relevante. Segundo os
registros do tribunal, os advogados ficaram com os autos em mãos por quase um
ano.
Em ligação com a Pública no
dia 21 de novembro, o advogado Celso Silva da Cruz alegou já ter devolvido os
autos do processo há mais ou menos dois meses. “[O processo] foi consultado e
tal, e ficamos com o processo, aí o cartório notificou o escritório, de
imediato o titular do escritório [Luiz Carlos Silva Neto] me ligou e mandou
entregar, eu entreguei lá”, explica o criminalista, que afirma ter demorado
para devolver o processo por puro esquecimento. “São muitos processos, muitos
processos e de repente ficou esquecido.”
Contudo, os funcionários da vara de Magé
ouvidos pela reportagem em condição de anonimato afirmaram que “não só o
documento não foi entregue, como sequer conseguiram contato com o escritório”.
A resposta foi reforçada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro e pelo
Tribunal de Justiça do estado (TJRJ), que informaram, via assessoria, que
“diante da não devolução dos autos físicos ao cartório, foi expedido Mandado de
Busca e Apreensão (MBA) para o endereço do advogado responsável pela retirada
do processo, com retorno negativo. Um novo MBA foi expedido para novo endereço
e está aguardando o retorno do resultado pelo Oficial de Justiça responsável
pela diligência. Paralelo a isso, foi expedido ofício à OAB comunicando o fato
e requerendo apoio para estabelecimento de contato com o advogado”.
A reportagem questionou o TJRJ sobre a
demora em cobrar a devolução do processo. Por e-mail, a assessoria de imprensa
informou que o cartório “promove diligências regulares para verificação da situação
de processos em andamentos” e que, “obedecendo às prioridades dos trâmites dos
processos, verificada a não devolução dos autos, são emitidos mandados de busca
e apreensão visando à sua devolução ao cartório”, como ocorreu no caso do
processo em questão.
Questionado se teria algum comprovante da
devolução dos autos, Cruz disse que “sim, mas que não os tinha em mãos na hora
e que procuraria eventualmente”. Alguns dias depois do contato da reportagem
com Cruz, o processo foi registrado no TJRJ como arquivado novamente.
Membro do escritório Silva Neto, Cruz é
um dos 22 advogados que ainda neste ano foram identificados em auditoria do TJRJ como suspeitos de
falsificar precatórios para receber quantias que, no caso dele em especial,
somariam até R$ 1,5 milhão.
Luiz Carlos Silva Neto e seu escritório
representam legalmente Batata, cujo nome já fora arrolado em inúmeras
denúncias judiciais e/ou públicas de crimes como assassinato e tentativa de
homicídio de opositores políticos seus e de membros do clã Cozzolino – que se
perpetua no poder de Magé, angariando cargos na prefeitura e na Câmara de
Vereadores, desde os anos 1980. O político já foi acusado de outros três assassinatos, incluindo um triplo
homicídio.
O escritório Silva Neto já defendia
Batata, que foi apontado como principal suspeito do assassinato de Lídia, mas
acabou por ser absolvido em 2006. Questionado quanto ao interesse em
desarquivar um processo em que o cliente terminara inocentado, Cruz respondeu
que eles pretendiam checar alguns dados para a progressão de regime semiaberto
de Batata, que se encontra preso por outros crimes e deverá ir a júri popular em março de 2025 pelo assassinato
do vereador Alexandre Augusto Pereira Alcântara, morto numa emboscada em janeiro de 2002, na
estrada Rio-Magé, junto a sua mãe e seu motorista. A defesa de Batata não quis
fazer declarações.
·
A pesquisa de
uma vida
O pesquisador Huri Paz tinha sete anos
quando chegou a Magé. A cidade estava em um dos poucos momentos da sua história
recente no qual a família Cozzolino não estava no Executivo
municipal, à época sob o comando da prefeita Narriman Felicidade (2001-2004),
ex-esposa do político Zito (PV), patriarca do clã de mesmo nome que é notório
rival político dos Cozzolino.
“Eu lembro até hoje quando eu fui no
posto de saúde e estava passando a propaganda da Narriman: ‘Olha só o que a
Narriman fez, a Narriman reformou o posto de saúde, fez isso, fez aquilo outro.
E aí, quando a gente saía na rua, eram carros de som defendendo a Núbia
Cozzolino e atacando a Narriman”, conta.
Já mais velho, Huri foi se inserindo na
juventude política local, para terror de sua família, que tinha seu pé no
sindicalismo paulista. Quando questionados, seus parentes explicaram a má fama
de Magé no quesito violência política. Desde 1988, o município teve ao menos 16
homicídios de políticos ou pessoas envolvidas com política, como jornalistas e
blogueiros, o que deixa a cidade como primeiro lugar do ranking das cidades
com maior número de atentados e homicídios políticos dos 13 municípios da
Baixada.
Chocado com os números, Huri levou a
política para a pesquisa acadêmica. Entre os mortos políticos de Magé, um lhe
chamou atenção: Lídia Menezes, vice-prefeita eleita com Narriman Felicidade e
morta menos de um ano depois de eleita.
Mais do que apenas um nome e um número na
história de violência política local, Menezes tinha um perfil ímpar. Para além
de ter sido vice-prefeita, ela era uma mulher negra e oriunda das classes
populares mageenses. Empregada doméstica, com duas filhas e bastante religiosa,
ela não se via representada no PT, diz Paz; então se filiou ao PSDB, que logo
viu sua popularidade e articulou com Zito para alinhá-la na chapa de Narriman.
O próprio Zito, em conversa com a Pública, confirmou a
história. “Após a Narriman aceitar, eu refleti que o candidato a vice deveria
ser da cidade. Eu me encantei pela Lídia, pelo fato dela ser uma pessoa simples,
dela ser negra, evangélica, doméstica e ter semelhança com a Benedita da Silva
[vice-governadora]. Ela tinha pedigree político e não sabia. Ela tinha tudo pra
deslanchar. Eu a chamava de ‘a nossa Benedita de Magé’”, relembra.
“Segundo fontes, quando a Lídia foi tomar
posse como vice-prefeita na Câmara Municipal de Magé, alguém gritou ‘ela é do
povo’. A Lídia que trouxe a legitimação popular para a candidatura da
Narriman”, apontou Paz, que disse ainda que, ao chegar na sede da prefeitura,
Menezes nem sequer teria gabinete próprio.
Em meio ao tenso jogo de poder em Magé,
que vivia a tensão entre os Cozzolino e os Zito, o assassinato de Menezes
foi esquecido, aponta Paz. “É aí que a raça e o gênero entram na minha
pesquisa. Ela [Menezes] entra […] como um corpo que pode ser descartado.”
·
Ataque à
memória
Especialista em teoria geral do direito
processual penal e professora do curso de direito da Universidade Federal do
Paraná (UFPR), Clara Maria Roman Borges explica que o desarquivamento por um
prazo tão longo de processos penais pode até ser uma prática comum em cartórios
onde os autos são físicos.
“Eu era estagiária, fui advogada por um
tempo. E volta e meia a gente tinha notícias de advogados que carregavam os
autos de processo e nunca mais devolviam. Daí virava aquele drama. O advogado
pedia a vista dos autos no balcão, botava debaixo do braço e saía. E ninguém
mais tinha notícia. Tem casos que até viraram piada”, comenta.
Contudo, o sumiço de peças processuais ou
até mesmo de processos por inteiro são uma prática já registrada pelo núcleo
político de Batata e os Cozzolino, com quem têm aliança. Em 2018, o juiz
Gabriel de Almeida percebeu que nove processos envolvendo o clã
haviam desaparecido, ao mesmo tempo que em outras peças processuais as
assinaturas de promotores eram falsificadas. Contatado pela Pública, o juiz
apenas confirmou que suas denúncias fizeram com que virasse testemunha em
diferentes processos do tribunal do Rio de Janeiro.
“Lídia Menezes, enfim, é uma mulher
empregada doméstica, uma mulher preta, [tinha] duas filhas, o pai dela era dono
de uma funerária, todos moravam no mesmo quintal, então, assim, tinham condições
bem difíceis de vida, e ser vice-prefeita para aquela família parecia o melhor
caminho possível”, contextualiza o pesquisador Paz. Para ele, a morte de
Menezes e todo o desenrolar do caso demonstram o “abismo racial e de gênero na
política da Baixada Fluminense, uma vez que a vice-prefeita não era bem aceita
por conta de suas origens desatreladas da tradição política local”.
“Isso mostra um gravíssimo problema de
segurança documental que o cartório, especificamente de Magé, a vara de Magé,
tem em relação aos seus processos. E, se isso aconteceu com um processo de
certa notoriedade que envolveu uma vice-prefeita do município, eu fico muito
receoso do que é que não pode estar acontecendo com vítimas que não tinham um
cargo como esse.”
Por Matheus Moura e Leonardo Coelho, da Agência Pública
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