sábado, 14 de dezembro de 2024

Mais trabalho e menos direitos

Quantas vezes já vimos, na altura dos trinta minutos do segundo tempo, aquelas estatísticas aterrorizantes afirmando 60, 70% de posse para aquele time moroso de toques horizontais? Em um jogo de poucas emoções e riscos, é ele quem parece ter o domínio do campo. Contudo, quando menos se espera… gol. Gol daquele que soube o caminho certo e arriscou na hora correta. Pelo menos no futebol, sabemos disso: posse de bola não ganha jogo. Contudo, a tática política é distinta, e ao menos nela, ter a bola é fator de extrema relevância. Deixarei de lado a metáfora futebolística, à qual voltarei um pouco à frente, para desmembrar alguns elementos do atual estado de coisas que vivemos para cá dos trópicos.

O caminho que a direita brasileira pavimentou nos últimos anos foi o de um debate moralizador de pautas das minorias sociais vocalizadas pela esquerda. Ao absorvê-las, rearticulou-as de forma negativa, centralizando no outro – negro, indígena, gay, mulher etc. – os problemas nacionais. Já foi suficientemente discutido como esse modus operandi não se limita apenas ao Brasil, na medida em que é um movimento internacional cuja estratégia é o deslocamento de problemas estruturais de âmbito econômico, político e cultural para a esfera da moral. Os problemas passam, então, a ser discutidos através de pautas animadas pelo racismo, machismo e lgbtfobia: o desemprego é um problema do migrante ou do Bolsa Família; a corrupção, uma degeneração midiaticamente centralizada nos partidos de esquerda; a diversidade, uma imposição de normas comportamentais às crianças e jovens.

Quando Donald Trump brada uma América great again, sabemos perfeitamente do que se trata: é uma imaginação que estimula o desejo de reavivamento econômico e garantia de emprego, amalgamada a um país racialmente homogêneo e hierarquicamente estruturado em desigualdades de níveis diversos. Já o “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, que se repetiu como farsa na nossa história, promove um mesmo movimento.

O Brasil nunca foi grande como os Estados Unidos, mas “sempre foi brasileiro e cristão”, ao menos é isto que pensam os ideólogos da direita brasileira. Embora não tenhamos, neste país, um dilema migratório como as nações do centro do capitalismo, temos fricções históricas que rasuram a bandeira verde e amarela e parodiam o hino nacional, tornando-o peça cômica de um país inexistente. Falo de quilombolas e ribeirinhos, yanomamis e pataxós, negros e candomblecistas, dentre tantas outras formas de existência presentes à margem da nossa sociedade. Já o “Deus acima de todos”, não é preciso se alongar, dada a nitidez de sua falsidade.

Nesse panorama, as últimas eleições demonstram que há uma gradativa mobilidade da população – esmagada na atual estrutura social capitalista que exige mais trabalho e impõe menos direitos – às pautas e discursos neoliberais. Uma sociedade tensionada como essa precisa imaginar saídas, que têm sido dadas pela direita: o empreendedorismo articulado à moralização da política. Não à toa, Pablo Marçal repetia diversas vezes a “prosperidade” – termo vinculado às versões do neopentecostalismo – como finalidade da prática empreendedora.

Contudo, as rotas da direita não levam a classe trabalhadora a lugar algum, senão a uma rua sem saída, e eles sabem disso. A estratégia, no entanto, é bem tramada. O capitalismo neoliberal propõe a dinamitação da sociedade – lembremos da icônica fala de Margaret Thatcher, para quem havia apenas indivíduos e famílias – e, uma vez fragilizados os laços coletivos, ataca-se os direitos sociais conquistados.

O Estado neoliberal – distinto das bravatas ideológicas que o fantasiam com a máscara do mítico Estado mínimo – é grande, e sua atuação é mobilizada pela classe dominante para garantir a ordem social (intensificação das práticas de segurança e coerção) e a exploração do trabalho – reformas administrativas, da previdência, trabalhistas etc. – ao mesmo tempo em que funciona como impulsionador dos lucros da classe dominante, a partir da manutenção de taxas de juros exorbitantes e incentivos fiscais.

Uma vez alçada ao estresse com o aumento do desemprego e da violência, articula-se como saída milagrosa as pautas imediatistas já disseminadas no senso comum – principalmente pela grande mídia –, vocalizadas pelos políticos de direita: desemprego? Empreendedorismo. Violência? Pena de morte, prisão. O fato é que essas políticas tendem a gerar um ciclo de tensividade social, no qual os problemas que elas prometem resolver são, na verdade, intensificados.

Assim, cada volta do ciclo abre caminho para propostas mobilizadas pela direita, cada vez mais exorbitantes quanto ineficazes (Pablo Marçal falava, por exemplo, de mudanças de mentalidades para enfrentar problemas como a miséria e a fome). Nesse cenário, a esquerda é acuada, tendo que se defender das pautas neoliberais agressivas à população e das fake news, numa posição reativa próxima do time que tenta sair da linha alta de marcação do adversário.

A ruptura de uma noção cíclica, portanto, progressiva e regressivamente evolutiva, só pode se dar pela mobilização social. Somos nós os atores da nossa história já dizia Marx, e se eximir dela significa deixar-se levar por quem nela atua. É esse o sentido da provocação feita por Vladimir Safatle acerca da morte da esquerda. A pauta da escala 6×1, antes de contestar a tese, a confirma. A posição a que ficamos nos últimos anos, de responder às pautas da direita – seja às de destituição dos direitos sociais ou aquelas moralizadas –, fez retroagir não apenas a esquerda, mas a própria sociedade, que migrou cada vez mais para o campo da direita. A proposta do fim da escala 6×1 e da redução da carga horária semanal de trabalho irrompe, portanto, no cenário, como um momento de reencontro da esquerda com o povo.

Após as últimas eleições municipais, muito se falou da necessidade de a esquerda falar com os públicos hostis a ela, como a comunidade evangélica. Essa proposta inclui não apenas uma desmistificação das fake news perpetradas nos últimos anos (kit gay e fechamento de igrejas pelos governos Haddad e Lula), como uma aproximação no âmbito do discurso.

A discussão da 6×1 demonstra, contudo, que a estratégia a se seguir para solucionar o problema do diálogo não é a de uma performance evangelizadora por parte da esquerda, que passaria a incluir nos seus discursos termos como “prosperidade” e “bênção”. O fato é que, através dessa estratégia, continuaremos sendo sempre mais à esquerda, aos olhos do eleitorado, do que a direita, que há muito conjecturou à sua identidade política o neopentecostalismo.

Pior: as igrejas continuarão monopolizadas pelos grupos religiosos-empresariais que a comandam, transformando o púlpito eclesiástico em balcão de negócios e seus fiéis em potenciais consumidores. E mesmo que, em circunstâncias específicas – por exemplo, uma eleição acirrada e polarizada –, possa parecer eficiente a migração do discurso e da política à direita, isto só pode funcionar (e não é uma jogada segura) a curto prazo. No médio e longo prazo, significa, na verdade, um processo de intensificação da direita pela esquerda, que passa a reiterar seu glossário e política.

A pauta atual é unificadora porque, através do debate do trabalho, atinge a maior parte da população, significando ganhos reais que gays, negros, mulheres, mas também evangélicos e homens, se beneficiam. Aqui é o ponto em que retornamos à posse da bola; o momento é ímpar e instrutivo. A proposta protocolada pela deputada federal Erika Hilton obrigou a direita a jogar recuada, no seu campo, tendo que lidar com a pressão social.

O ponto nodal é que sabemos o quanto seus interesses classistas – ocultados nas pautas moralizadas que aprenderam a flamular aos quatro ventos – entram em conflito com o público que o elegeu. A pressão sobre o Nikolas Ferreira explicita, justamente, as incoerências da política de direita quando observada pelos de baixo. Tais inconsistências só podem ser abordadas se a esquerda atuar na promoção de pautas radicalizadas, pois tais propostas, ao mesmo tempo que significam a melhoria efetiva da vida da população, levam a direita a conflitar com seus eleitores, esmagadoramente pobres.

É isso que estamos presenciando: deputados de partidos como PT, PSOL, PCdoB, REDE e PV apoiam integralmente a proposta, seguidos do PSB e PDT, com índices positivos, respectivamente, de 92,8% e 83,3%. Algo que contrasta com o pífio apoio de partidos como União Brasil, MDB, PP e PL, com os respectivos apoios: 54,2%, 36,3%, 31,8% e 5,3%. Se verificarmos as bancadas temáticas, que são predominantemente de direita, como a evangélica, temos os seguintes dados: do total de 219 membros, 65 assinaram, perfazendo apenas 29,6% da bancada.  Os números ficam ainda mais dramáticos se observarmos a frente parlamentar do agronegócio, em que, de 251, apenas 38 membros (15,1%) apoiaram a proposta até o momento.

Nesse cenário, a direita busca retomar a posse da bola, e, para isso, surgem no seu horizonte dois principais movimentos. O primeiro, para aqueles partidos e grupos que não assinaram o projeto, é a disseminação de mentiras e fake news. Por exemplo, parte das inverdades difundidas buscou apresentar a PEC como irresponsável e “não técnica”, como o corte de um vídeo da deputada Erika Hilton em entrevista à Globonews, dando a indicar que a proposta foi feita sem levar em conta estudos científicos.

Para além das mentiras acerca da PEC, há também as futurologias apocalípticas, cuja finalidade é espalhar medo e impedir que a população reconheça no projeto avanços sociais e trabalhistas dos quais precisa. Daí disseminam-se ideias como a de que, uma vez aprovada, aumentará a informalidade no mundo do trabalho e destruiria empregos.

 Um segundo movimento é o sequestro da pauta, que pode acontecer através dos apoiadores e dos seus detratores. Dentre os detratores, há os que afirmam ser contra o fim da escala 6×1, como o deputado Kim Kataguiri, mas se negam a assinar e, portanto, a negociar os termos ou reescrever o projeto na votação da Câmara. O que o líder do MBL busca, na verdade, é cooptar a indignação popular para reforçar projetos contrários à classe trabalhadora, como, por exemplo, sua defesa pela implantação de um modelo de trabalho próximo ao dos Estados Unidos, buscando convencer sua base eleitoral de que o trabalhador teria escolhas e possibilidade de negociar com o patrão.

Já entre os deputados que assinaram e apoiaram o projeto, o sequestro pode vir a partir do seu rebaixamento, aceitando o fim da jornada 6×1, porém tensionando para manter a carga horária exploratória em vigência.

Para resguardar a posse da bola, a esquerda deve continuar pressionando e reafirmando a necessidade do fim da escala e da diminuição da carga horária de trabalho, como proposto na PEC, além de radicalizar em novas propostas que mobilizem e garantam direitos à sociedade, o que levará, cada vez mais, a direita ao atrito com parte dos seus eleitores expondo seus interesses classistas.

 

Fonte: Por Caique Oliveira de Carvalho, em A Terra é Redonda

 

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