sábado, 14 de dezembro de 2024

É hora de levar a sério o antirracismo no SUS

Em novembro de 2014, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), lançou a campanha “Não Fique em Silêncio – Racismo Faz Mal à Saúde”, uma iniciativa pioneira que visava enfrentar o racismo no Sistema Único de Saúde (SUS). A campanha surgiu no contexto da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que, desde sua criação em 2009, busca combater as desigualdades raciais no acesso e na qualidade dos serviços de saúde. O objetivo da campanha era sensibilizar tanto profissionais de saúde quanto usuárias/os para os impactos negativos do racismo no acesso aos serviços e na qualidade do atendimento, além de incentivar a denúncia de discriminação racial.

Não é recente em nossa história que esses atores e atrizes políticos pressionaram o Estado pela criação de ações que reconheçam o racismo como um determinante social de saúde e que, consequentemente, pudessem subsidiar políticas públicas mais justas para a população negra. A ação foi um marco ao reconhecer o racismo como elemento que compromete a equidade no acesso aos cuidados de saúde e impacta diretamente a qualidade da assistência prestada à população negra. No entanto, para os movimentos negros, o impacto dessa campanha foi limitado, uma vez que faltaram estratégias institucionais consistentes e planejadas que, de fato, transformassem as dinâmicas de poder dentro do SUS e enfrentassem o racismo de maneira efetiva e duradoura.

Uma das maiores contribuições dessa iniciativa foi destacar o racismo como um problema que influencia diretamente os resultados em saúde da população negra, afetando o acesso aos serviços de saúde, a qualidade do atendimento e as condições de vida que determinam o bem-estar, como moradia, educação e trabalho. Ao trazer a palavra “racismo” para o centro do debate, a campanha não apenas reconheceu o problema de forma explícita, mas também ajudou a desnaturalizar a discriminação racial que permeia o atendimento de saúde. Além disso, a campanha teve grande visibilidade, utilizando uma variedade de canais de comunicação, incluindo televisão, rádios comunitárias e redes sociais. Ao alcançar um público amplo e diverso, a campanha ajudou a disseminar a mensagem sobre as implicações do racismo no SUS. Esse uso estratégico de meios de comunicação foi um dos pontos positivos da ação, pois permitiu o alcance de diferentes grupos e territórios do Brasil, ampliando a discussão sobre saúde da população negra.

Outro aspecto positivo foi promover a reflexão coletiva sobre o papel das instituições públicas no enfrentamento do racismo. Ao incentivar a denúncia de discriminação racial no âmbito da saúde, a campanha trouxe à tona uma prática que, muitas vezes, é invisibilizada ou minimizada dentro das esferas de gestão pública e de prestação de serviços públicos. Outro ponto importante foi a articulação entre o Ministério da Saúde, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil. Essa colaboração foi importante porque assegurou que a campanha fosse uma ação coletiva em sua elaboração, levando em consideração a experiência e os conhecimentos acumulados pelos movimentos negros, de mulheres negras e organizações antirracistas. Ainda que essa participação tenha sido limitada, a campanha favoreceu a relação entre o governo e esses grupos, trazendo visibilidade para a luta contra o racismo no SUS.

Além disso, a campanha não teve continuidade, o que significou que as questões levantadas não foram abordadas de forma estruturada dentro do próprio SUS. A falta de monitoramento e de um planejamento intersetorial consistente para a implementação das medidas propostas comprometeram os resultados a longo prazo. Essa fragilidade na implementação revelou a dificuldade de incorporar a pauta racial de forma contínua e coordenada nas políticas públicas de saúde, especialmente nos âmbitos estadual e municipal por meio da PNSIPN. De fato, o racismo institucional, abordado pela campanha, continua a ser um dos principais obstáculos para a efetivação de uma saúde pública equânime. Diante disso, ao longo dos anos, os dados sobre a saúde da população negra mostram que o racismo institucionalizado nas instâncias públicas como o SUS ainda é um fator decisivo para a perpetuação das desigualdades.

O Relatório da 1ª Oficina de Trabalho: Morte Materna de Mulheres Negras no Contexto do SUS (2023) apresenta dados que expõem a gravidade das desigualdades raciais na mortalidade materna. De acordo com o documento, mulheres negras (pretas e pardas) representaram cerca de 65% das mortes maternas no Brasil, mesmo compondo aproximadamente 56% da população feminina em idade fértil. Essa discrepância reflete a persistência de barreiras raciais no acesso aos cuidados de saúde. Além disso, o relatório ressalta que a maioria dessas mortes ocorre devido a causas evitáveis, como hemorragias e infecções pós-parto, agravadas pela demora no diagnóstico e tratamento, além da falta de assistência adequada durante o pré-natal e o parto. De acordo com o Boletim Epidemiológico – Número Especial Saúde da População Negra (2023), há desigualdades importantes no número de consultas de pré-natal realizadas entre mulheres negras em comparação com as brancas. Dados apontam que, enquanto 79,7% das mulheres brancas realizaram sete ou mais consultas de pré-natal, apenas 68,4% das mulheres negras alcançaram a cobertura mínima recomendada pelo Ministério da Saúde.

Esses dados refletem disparidades significativas no acesso a cuidados essenciais de saúde, como acompanhamento pré-natal de qualidade e assistência obstétrica adequada, e demonstram o impacto do racismo na saúde, contribuindo para a maior vulnerabilidade da população negra. A análise também destaca que a mortalidade materna é desproporcionalmente maior entre mulheres negras, revelando falhas no atendimento e no cumprimento das políticas de saúde destinadas a reduzir essas desigualdades. Os movimentos de mulheres negras têm destacado, de maneira contínua, que a persistência dessas desigualdades no SUS está diretamente relacionada à ausência de um financiamento consistente para a saúde da população negra e à precarização dos serviços de saúde em territórios de alta vulnerabilidade.

Outro ponto crítico apontado pelos movimentos negros é a baixa representatividade da população negra nos espaços decisórios do SUS. A ausência de lideranças negras nos cargos de gestão e planejamento das políticas de saúde é uma das causas principais da resistência à implementação de estratégias adequadas para o enfrentamento do racismo. Essa resistência, por sua vez, contribui para a descontinuidade das políticas públicas que poderiam efetivamente enfrentar as desigualdades raciais no sistema de saúde. Sem a presença de pessoas negras nesses espaços, há uma tendência à manutenção de práticas e prioridades que não consideram plenamente o impacto das desigualdades raciais na saúde.

Além disso, a resistência à inclusão de perspectivas antirracistas nos serviços de saúde pública contribui para a descontinuidade de iniciativas fundamentais, como campanhas e programas de combate às iniquidades raciais. Essa descontinuidade reflete não apenas uma falha em priorizar a saúde da população negra, mas também compromete a credibilidade e a capacidade do SUS em ser um sistema verdadeiramente universal. Portanto, a ampliação da representatividade negra em espaços de decisão é essencial não apenas para fortalecer políticas públicas, mas também para assegurar que a luta contra o racismo seja central e contínua no planejamento e execução das ações de saúde.

Em relação à PNSIPN, embora a política tenha sido um avanço significativo, ela ainda enfrenta uma série de desafios. O principal deles é a falta de estratégias de educação permanente para as/os profissionais de saúde, que são agentes nas práticas de cuidado e atendimento à população negra. A inserção de conteúdos educativos que abordem os temas racismo e saúde da população negra nas graduações e capacitações de profissionais de saúde ainda é insuficiente e, muitas vezes, negligenciada. Sem uma formação específica e contínua, as/os profissionais de saúde não estarão preparadas/os para lidar com questões relativas ao racismo no atendimento, e isso acaba por reforçar a desigualdade dentro do próprio SUS.

As políticas públicas para a população negra ainda carecem de uma articulação efetiva entre as diferentes esferas de governo, e, especialmente, entre os diferentes setores da sociedade. As desigualdades raciais na saúde não podem ser enfrentadas apenas por meio de ações isoladas, como a campanha “Não Fique em Silêncio”, mas por uma ação coordenada que envolve não apenas a área da saúde, mas também da educação, da segurança pública e da assistência social. Somente por meio dessa articulação intersetorial será possível criar um SUS que respeite as necessidades da população negra e combata efetivamente o racismo.

Portanto, para que o SUS cumpra seu papel de garantir a saúde para toda a população brasileira de maneira igualitária, é necessário um compromisso renovado com a implementação plena da PNSIPN. Isso requer a destinação de recursos adequados, a criação de metas claras e a formação continuada das/os trabalhadoras/es da saúde. É fundamental também que as lideranças negras tenham um papel central na formulação e implementação das políticas públicas de saúde, com a participação ativa em conselhos e comitês de saúde e outros espaços decisórios. A inclusão da pauta racial nos planos estaduais e municipais de saúde deve ser obrigatória, e essas ações precisam ser monitoradas de forma constante para garantir que os resultados sejam alcançados.

A campanha “Não Fique em Silêncio” é um marco relevante no enfrentamento do racismo na saúde, mas é necessário avançar, especialmente após os anos de desmonte das políticas voltadas para a população negra que marcaram os governos de Temer e Bolsonaro. A erradicação das desigualdades raciais exige mudanças estruturais nas políticas públicas e um compromisso contínuo com a promoção da equidade racial em todos os níveis do SUS. Transformar a realidade da saúde depende de estratégias que reconheçam e enfrentem as desigualdades raciais como barreiras estruturais ao acesso e à qualidade dos serviços de saúde, promovendo ações concretas que garantam o cuidado humanizado. Sem essas mudanças, as disparidades raciais permanecerão como um dos maiores desafios para a efetivação do direito universal à saúde no Brasil.

 

Fonte: Por Marjorie Chaves, em  Outra Saúde

 

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