É hora de levar a sério o antirracismo no SUS
Em novembro de 2014, o Ministério da Saúde, por meio da
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), lançou a campanha “Não
Fique em Silêncio – Racismo Faz Mal à Saúde”, uma iniciativa pioneira que
visava enfrentar o racismo no Sistema Único de Saúde (SUS). A campanha surgiu
no contexto da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN),
que, desde sua criação em 2009, busca combater as desigualdades raciais no
acesso e na qualidade dos serviços de saúde. O objetivo da campanha era
sensibilizar tanto profissionais de saúde quanto usuárias/os para os impactos
negativos do racismo no acesso aos serviços e na qualidade do atendimento, além
de incentivar a denúncia de discriminação racial.
Não é recente em nossa história que esses atores e
atrizes políticos pressionaram o Estado pela criação de ações que reconheçam o
racismo como um determinante social de saúde e que, consequentemente, pudessem
subsidiar políticas públicas mais justas para a população negra. A ação foi um
marco ao reconhecer o racismo como elemento que compromete a equidade no acesso
aos cuidados de saúde e impacta diretamente a qualidade da assistência prestada
à população negra. No entanto, para os movimentos negros, o impacto dessa
campanha foi limitado, uma vez que faltaram estratégias institucionais
consistentes e planejadas que, de fato, transformassem as dinâmicas de poder dentro
do SUS e enfrentassem o racismo de maneira efetiva e duradoura.
Uma das maiores contribuições dessa iniciativa foi
destacar o racismo como um problema que influencia diretamente os resultados em
saúde da população negra, afetando o acesso aos serviços de saúde, a qualidade
do atendimento e as condições de vida que determinam o bem-estar, como moradia,
educação e trabalho. Ao trazer a palavra “racismo” para o centro do debate, a
campanha não apenas reconheceu o problema de forma explícita, mas também ajudou
a desnaturalizar a discriminação racial que permeia o atendimento de saúde.
Além disso, a campanha teve grande visibilidade, utilizando uma variedade de
canais de comunicação, incluindo televisão, rádios comunitárias e redes
sociais. Ao alcançar um público amplo e diverso, a campanha ajudou a disseminar
a mensagem sobre as implicações do racismo no SUS. Esse uso estratégico de
meios de comunicação foi um dos pontos positivos da ação, pois permitiu o
alcance de diferentes grupos e territórios do Brasil, ampliando a discussão
sobre saúde da população negra.
Outro aspecto positivo foi promover a reflexão coletiva
sobre o papel das instituições públicas no enfrentamento do racismo. Ao
incentivar a denúncia de discriminação racial no âmbito da saúde, a campanha
trouxe à tona uma prática que, muitas vezes, é invisibilizada ou minimizada
dentro das esferas de gestão pública e de prestação de serviços públicos. Outro
ponto importante foi a articulação entre o Ministério da Saúde, a Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), os movimentos
sociais e as organizações da sociedade civil. Essa colaboração foi importante
porque assegurou que a campanha fosse uma ação coletiva em sua elaboração,
levando em consideração a experiência e os conhecimentos acumulados pelos
movimentos negros, de mulheres negras e organizações antirracistas. Ainda que
essa participação tenha sido limitada, a campanha favoreceu a relação entre o
governo e esses grupos, trazendo visibilidade para a luta contra o racismo no
SUS.
Além disso, a campanha não teve continuidade, o que
significou que as questões levantadas não foram abordadas de forma estruturada
dentro do próprio SUS. A falta de monitoramento e de um planejamento
intersetorial consistente para a implementação das medidas propostas
comprometeram os resultados a longo prazo. Essa fragilidade na implementação
revelou a dificuldade de incorporar a pauta racial de forma contínua e
coordenada nas políticas públicas de saúde, especialmente nos âmbitos estadual
e municipal por meio da PNSIPN. De fato, o racismo institucional, abordado pela
campanha, continua a ser um dos principais obstáculos para a efetivação de uma
saúde pública equânime. Diante disso, ao longo dos anos, os dados sobre a saúde
da população negra mostram que o racismo institucionalizado nas instâncias
públicas como o SUS ainda é um fator decisivo para a perpetuação das
desigualdades.
O Relatório da 1ª Oficina de Trabalho: Morte Materna de
Mulheres Negras no Contexto do SUS (2023) apresenta dados que expõem a
gravidade das desigualdades raciais na mortalidade materna. De acordo com o
documento, mulheres negras (pretas e pardas) representaram cerca de 65% das
mortes maternas no Brasil, mesmo compondo aproximadamente 56% da população
feminina em idade fértil. Essa discrepância reflete a persistência de barreiras
raciais no acesso aos cuidados de saúde. Além disso, o relatório ressalta que a
maioria dessas mortes ocorre devido a causas evitáveis, como hemorragias e
infecções pós-parto, agravadas pela demora no diagnóstico e tratamento, além da
falta de assistência adequada durante o pré-natal e o parto. De acordo com o
Boletim Epidemiológico – Número Especial Saúde da População Negra (2023), há
desigualdades importantes no número de consultas de pré-natal realizadas entre
mulheres negras em comparação com as brancas. Dados apontam que, enquanto 79,7%
das mulheres brancas realizaram sete ou mais consultas de pré-natal, apenas
68,4% das mulheres negras alcançaram a cobertura mínima recomendada pelo
Ministério da Saúde.
Esses dados refletem disparidades significativas no
acesso a cuidados essenciais de saúde, como acompanhamento pré-natal de
qualidade e assistência obstétrica adequada, e demonstram o impacto do racismo
na saúde, contribuindo para a maior vulnerabilidade da população negra. A
análise também destaca que a mortalidade materna é desproporcionalmente maior
entre mulheres negras, revelando falhas no atendimento e no cumprimento das
políticas de saúde destinadas a reduzir essas desigualdades. Os movimentos de
mulheres negras têm destacado, de maneira contínua, que a persistência dessas
desigualdades no SUS está diretamente relacionada à ausência de um
financiamento consistente para a saúde da população negra e à precarização dos
serviços de saúde em territórios de alta vulnerabilidade.
Outro ponto crítico apontado pelos movimentos negros é
a baixa representatividade da população negra nos espaços decisórios do SUS. A
ausência de lideranças negras nos cargos de gestão e planejamento das políticas
de saúde é uma das causas principais da resistência à implementação de
estratégias adequadas para o enfrentamento do racismo. Essa resistência, por
sua vez, contribui para a descontinuidade das políticas públicas que poderiam
efetivamente enfrentar as desigualdades raciais no sistema de saúde. Sem a
presença de pessoas negras nesses espaços, há uma tendência à manutenção de
práticas e prioridades que não consideram plenamente o impacto das
desigualdades raciais na saúde.
Além disso, a resistência à inclusão de perspectivas
antirracistas nos serviços de saúde pública contribui para a descontinuidade de
iniciativas fundamentais, como campanhas e programas de combate às iniquidades
raciais. Essa descontinuidade reflete não apenas uma falha em priorizar a saúde
da população negra, mas também compromete a credibilidade e a capacidade do SUS
em ser um sistema verdadeiramente universal. Portanto, a ampliação da
representatividade negra em espaços de decisão é essencial não apenas para
fortalecer políticas públicas, mas também para assegurar que a luta contra o
racismo seja central e contínua no planejamento e execução das ações de saúde.
Em relação à PNSIPN, embora a política tenha sido um
avanço significativo, ela ainda enfrenta uma série de desafios. O principal
deles é a falta de estratégias de educação permanente para as/os profissionais
de saúde, que são agentes nas práticas de cuidado e atendimento à população
negra. A inserção de conteúdos educativos que abordem os temas racismo e saúde
da população negra nas graduações e capacitações de profissionais de saúde
ainda é insuficiente e, muitas vezes, negligenciada. Sem uma formação
específica e contínua, as/os profissionais de saúde não estarão preparadas/os
para lidar com questões relativas ao racismo no atendimento, e isso acaba por
reforçar a desigualdade dentro do próprio SUS.
As políticas públicas para a população negra ainda
carecem de uma articulação efetiva entre as diferentes esferas de governo, e,
especialmente, entre os diferentes setores da sociedade. As desigualdades
raciais na saúde não podem ser enfrentadas apenas por meio de ações isoladas,
como a campanha “Não Fique em Silêncio”, mas por uma ação coordenada que
envolve não apenas a área da saúde, mas também da educação, da segurança
pública e da assistência social. Somente por meio dessa articulação
intersetorial será possível criar um SUS que respeite as necessidades da
população negra e combata efetivamente o racismo.
Portanto, para que o SUS cumpra seu papel de garantir a
saúde para toda a população brasileira de maneira igualitária, é necessário um
compromisso renovado com a implementação plena da PNSIPN. Isso requer a
destinação de recursos adequados, a criação de metas claras e a formação
continuada das/os trabalhadoras/es da saúde. É fundamental também que as
lideranças negras tenham um papel central na formulação e implementação das
políticas públicas de saúde, com a participação ativa em conselhos e comitês de
saúde e outros espaços decisórios. A inclusão da pauta racial nos planos estaduais
e municipais de saúde deve ser obrigatória, e essas ações precisam ser
monitoradas de forma constante para garantir que os resultados sejam
alcançados.
A campanha “Não Fique em Silêncio” é um marco relevante
no enfrentamento do racismo na saúde, mas é necessário avançar, especialmente
após os anos de desmonte das políticas voltadas para a população negra que
marcaram os governos de Temer e Bolsonaro. A erradicação das desigualdades
raciais exige mudanças estruturais nas políticas públicas e um compromisso
contínuo com a promoção da equidade racial em todos os níveis do SUS.
Transformar a realidade da saúde depende de estratégias que reconheçam e
enfrentem as desigualdades raciais como barreiras estruturais ao acesso e à
qualidade dos serviços de saúde, promovendo ações concretas que garantam o
cuidado humanizado. Sem essas mudanças, as disparidades raciais permanecerão
como um dos maiores desafios para a efetivação do direito universal à saúde no
Brasil.
Fonte: Por Marjorie Chaves, em Outra Saúde
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