sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Francisco Celso Calmon: AI-5 nunca mais

Neste mês de dezembro, marca os 56 anos do Ato Institucional número 5. Temos o dever histórico de relembrar e condenar o dia 13 de dezembro de 1968, a data de instauração do AI-5.

A resistência estava crescendo pelo fermento na massa estudantil, a resistência começava a incomodar a ditadura, malgrado toda a repressão.

De um lado o movimento estudantil e de outro a repressão policial-militar do regime de exceção cresciam em proporções desiguais, e o ano de 1968, pelos acontecimentos ocorridos, vai se tornar um ano histórico.

Em 28 de março daquele ano ocorreu o assassinato do estudante secundarista Edison Luís, no restaurante Calabouço, Rio.

A significante manifestação do seu enterro, mobilizando parte expressiva da classe média, à frente artistas e intelectuais, vai impulsionar novas ações de resistência à ditadura. “Abaixo a Ditadura. O Povo no poder”, foi a grande faixa que abriu o cortejo do enterro.

A morte do companheiro Edison Luís gerou indignação nacional e pipocou atos de protestos, senão em todos em quase todos os estados do Brasil. E vai num crescendo como rastilho de pólvora chegando próximo ao barril.

E não só estudantes!

Em abril de 1968, operários da Belgo-Mineira realizaram uma greve com ocupação da fábrica. Essa greve marcou o início de uma onda de revolta operária em Minas Gerais contra o arrocho salarial.

Em 1º de maio do mesmo ano, em SP, os operários colocaram para correr do palanque da comemoração do dia de luta do trabalhador, o governador Abreu Sodré e os sindicalistas pelegos, e realizaram o ato e depois saíram em passeata.

Em 26 de junho de 1968 ocorreu a passeata dos cem mil no Rio, com retumbantes estímulos a outras manifestações em demais partes do país.

Duas semanas após, outra passeata no Rio, quantificada pelos organizadores em 50 mil, a rigor uns 30 mil era mais realista. Fui protagonista participante dessas manifestações.

Os operários, embora não se integrassem expressivamente a essas manifestações, também começavam as suas lutas reivindicatórias, com viés político de crítica à ditadura, patrocinadora do arrocho salarial.

Inquestionável que a Ditadura Militar surgiu com um golpe (1964), rasgou o diploma legal, cometeu monstruosa ilegalidade e com o tempo, as ilegalidades se multiplicaram, e como resposta contra a crescência de movimentos contra o regime, é articulado o AI-5, que deu aos militares o instrumento mais poderoso para impor terror à população, utilizando força física e barbaridades aos direitos humanos para demonstrar que, a qualquer custo, eles manteriam o controle.

 AI-5 foi o responsável para que parte significativa da esquerda revolucionária optasse pela luta armada.

Dentro desta monstruosidade jurídica, destaco artigos desse decreto, como: “O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados”. “Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo.” “O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.” “O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução(..).” “Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.”

Com o Ato, o Congresso Nacional foi fechado e o habeas-corpus para os chamados crimes políticos foi abolido.

Além de prisões e cassações, esse hediondo ato institucional instituiu a licença para caçar, sequestrar, torturar e matar, sangrou uma geração de brasileiros.

A ditadura perdeu todo o pudor que porventura restava, raspou o verniz de legalidade e assumiu a feição cruel de uma ditadura escancarada.

O Estado ditatorial virou um Estado terrorista.

Fui caçado em janeiro de 1969 no meu trabalho, escapei passando de um edifício para um outro pela cobertura que unia os dois, em fevereiro no casamento de minha irmã escapei pela sacristia nos fundos da igreja. Em 4 novembro conseguiram me sequestrar, junto com mais duas companheiras, sem chance de resistência. Encarcerado, torturado, algumas vezes ameaçado de morte, sobrevivi para continuar a luta até hoje.

A ditadura, apesar de militar, prendeu 6.591 militares, muitos torturados, exilou mais de 10 mil e torturou em torno de 11 mil, entre elas 95 crianças e adolescentes. Entre mortos e desaparecidos, incluindo indígenas e camponeses, o cálculo não está concluído, estimam que ultrapasse 20 mil brasileiros.

Para acrescentar na lista de dados que são essenciais para a crítica apropriada e bem construída sob o AI-5 e suas consequências: entre 1964 e 1970, foram feitas no total 536 intervenções em sindicatos federações e confederações.

Três meses após a instauração deste Ato Institucional, 66 professores foram expulsos das universidades ao redor do país.

De acordo com a Agência Senado, 181 parlamentares foram cassados, 173 deputados federais, 8 senadores, e 3 ministros do Supremo Tribunal Federal.

O AI5 durou 10 anos e 18 meses, durante esse tempo o Brasil esteve sob um imenso pau-de-arara.

Mesmo sob a guilhotina do AI-5 e da Lei de Segurança, nós combatemos a ditadura. Custou muito, mas a democracia venceu.

Ao não extirpar por completo as raízes daquela ditadura, através da aplicação da Justiça de Transição, voltamos a um Estado de exceção com o golpe de 2016.

A direita golpista conspira permanentemente para golpear a democracia. É a história que nos ensina.

Ninguém deve se calar, ninguém deve se permitir esquecer as consequências que o AI-5 causou. É preciso gritar, reagir, avançar na consciência e organização antifascista e de defesa da democracia.

Para o futuro será necessário a constituição de uma Comissão Estatal Permanente de Memória e Reparação, que abranja todos os períodos traumáticos do Brasil – escravidão, ditaduras e o genocídio bolsonarista, a fim de ser realizada a justiça de transição necessária à construção de uma democracia sólida. Para tanto, precisaremos de Congresso menos extrema-direita que o atual.

Nossos heróis não morrem, se os cultivarmos na memória do povo, como semente permanente ao florescimento de juventudes revolucionárias (como pregou o Papa Francisco), na perspectiva da construção de um Brasil soberano, libertário e democrata, como sonhou e lutou Carlos Marighella.   

Nossos filhos, netos, historiadores, conhecedores da nossa memória, falarão por nós, mas, até lá, a memória viva não deve ser substituída por aqueles que serão memória histórica, não viva.

Quando se acredita numa ideia, num ideal, não se luta somente numa conjuntura, mas por toda a vida.

Esquecer é matar a esperança da justiça!

 AI-5 nunca mais. Ditadura nunca mais. Democracia sempre mais!

 

¨      A morte violenta causada pela ditadura. por Urariano Mota

Uma notícia desta semana informa que os cartórios devem emitir nova certidão de óbito de vítimas da ditadura militar. O Conselho Nacional de Justiça aprovou na terça-feira (10) uma resolução que determina que os cartórios passam a ser obrigados a reconhecer as mortes ocorridas durante a ditadura militar.

Eles devem retificar as certidões de óbito com a grave informação de  que a causa real da morte não foi natural, mas causada pelo Estado brasileiro. O documento deve trazer a seguinte informação: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.

A decisão do CNJ avaliou uma proposta do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O presidente do conselho, ministro Luís Roberto Barroso, classificou a medida como um acerto de contas legítimo com o passado. Trata-se de uma decisão histórica, sem dúvida.

Entre os muitos casos de óbitos, pior, entre todos os casos de óbito da ditadura, cínicos, criminosos, lembro o de Soledad Barrett, que ao lado de cinco militantes socialistas foi assassinada em janeiro de 1973 no Recife.  Em 11/02/2016. o jornal O Globo noticiava:

“O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, determinou a um cartório da capital paulista que proceda a inscrição da ‘causa mortis’ de Soledad Barrett Viedma, em sua certidão de óbito, como ‘“desaparecimento político’ ”.

Mas nesta semana houve um sério avanço. Não se trata mais de morte de desaparecido político. Trata-se de crime violento cometido pela ditadura.  

É uma história bárbara, feita por bárbaros, assassinos fascistas do regime implantado em 1964. O feto de Soedad foi arrancado do seu cadáver!

Relatou a fundamental advogada Mércia Albuquerque:

“Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério…. em um barril estava Soledad Barrettt Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto.”

Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, ela não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao horrível e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco, falou entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror”.

No depoimento da advogada não havia uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa que fraterniza e confraterniza com pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-os pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad. Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres –, despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. “A boca de Soledad estava entreaberta”.

Aqui chegamos a um estágio em que o melhor é narrar colado aos fatos e à sua complexidade. Vamos ao momento do depoimento imortal da advogada Mércia Albuquerque:

“O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.”.

Agora, chegou a vez de corrigir na certidão de óbito o que estava antes na história. Atualização cartorial do horror.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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