Francisco Celso
Calmon: AI-5 nunca mais
Neste mês de
dezembro, marca os 56 anos do Ato Institucional número 5. Temos o dever
histórico de relembrar e condenar o dia 13 de dezembro de 1968, a data de
instauração do AI-5.
A resistência
estava crescendo pelo fermento na massa estudantil, a resistência começava a
incomodar a ditadura, malgrado toda a repressão.
De um lado o
movimento estudantil e de outro a repressão policial-militar do regime de
exceção cresciam em proporções desiguais, e o ano de 1968, pelos acontecimentos
ocorridos, vai se tornar um ano histórico.
Em 28 de março
daquele ano ocorreu o assassinato do estudante secundarista Edison Luís, no
restaurante Calabouço, Rio.
A significante
manifestação do seu enterro, mobilizando parte expressiva da classe média, à
frente artistas e intelectuais, vai impulsionar novas ações de resistência à
ditadura. “Abaixo a Ditadura. O Povo no poder”, foi a grande faixa
que abriu o cortejo do enterro.
A morte do
companheiro Edison Luís gerou indignação nacional e pipocou atos de protestos,
senão em todos em quase todos os estados do Brasil. E vai num crescendo como
rastilho de pólvora chegando próximo ao barril.
E não só
estudantes!
Em abril de 1968,
operários da Belgo-Mineira realizaram uma greve com ocupação da fábrica. Essa
greve marcou o início de uma onda de revolta operária em Minas Gerais contra o
arrocho salarial.
Em 1º de maio do
mesmo ano, em SP, os operários colocaram para correr do palanque da comemoração
do dia de luta do trabalhador, o governador Abreu Sodré e os sindicalistas
pelegos, e realizaram o ato e depois saíram em passeata.
Em 26 de junho de
1968 ocorreu a passeata dos cem mil no Rio, com retumbantes estímulos a outras
manifestações em demais partes do país.
Duas semanas após,
outra passeata no Rio, quantificada pelos organizadores em 50 mil, a rigor uns
30 mil era mais realista. Fui protagonista participante dessas manifestações.
Os operários,
embora não se integrassem expressivamente a essas manifestações, também
começavam as suas lutas reivindicatórias, com viés político de crítica à
ditadura, patrocinadora do arrocho salarial.
Inquestionável que
a Ditadura Militar surgiu com um golpe (1964), rasgou o diploma legal, cometeu
monstruosa ilegalidade e com o tempo, as ilegalidades se multiplicaram, e como
resposta contra a crescência de movimentos contra o regime, é articulado o
AI-5, que deu aos militares o instrumento mais poderoso para impor terror à
população, utilizando força física e barbaridades aos direitos humanos para
demonstrar que, a qualquer custo, eles manteriam o controle.
AI-5 foi o
responsável para que parte significativa da esquerda revolucionária optasse
pela luta armada.
Dentro desta
monstruosidade jurídica, destaco artigos desse decreto, como: “O ato que
decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou
proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou
privados”. “Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de:
vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em
funções por prazo.” “O Presidente da República poderá mediante decreto,
demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das
garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas
públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva
ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando
for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.” “O
Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste
Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução(..).”
“Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos,
contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.”
Com o Ato, o
Congresso Nacional foi fechado e o habeas-corpus para os chamados crimes
políticos foi abolido.
Além de prisões e
cassações, esse hediondo ato institucional instituiu a licença para caçar,
sequestrar, torturar e matar, sangrou uma geração de brasileiros.
A ditadura perdeu
todo o pudor que porventura restava, raspou o verniz de legalidade e assumiu a
feição cruel de uma ditadura escancarada.
O Estado ditatorial
virou um Estado terrorista.
Fui caçado em
janeiro de 1969 no meu trabalho, escapei passando de um edifício para um outro
pela cobertura que unia os dois, em fevereiro no casamento de minha irmã
escapei pela sacristia nos fundos da igreja. Em 4 novembro conseguiram me
sequestrar, junto com mais duas companheiras, sem chance de resistência.
Encarcerado, torturado, algumas vezes ameaçado de morte, sobrevivi para
continuar a luta até hoje.
A ditadura, apesar
de militar, prendeu 6.591 militares, muitos torturados, exilou mais de 10 mil e
torturou em torno de 11 mil, entre elas 95 crianças e adolescentes. Entre
mortos e desaparecidos, incluindo indígenas e camponeses, o cálculo não está
concluído, estimam que ultrapasse 20 mil brasileiros.
Para acrescentar na
lista de dados que são essenciais para a crítica apropriada e bem construída
sob o AI-5 e suas consequências: entre 1964 e 1970, foram feitas no total 536
intervenções em sindicatos federações e confederações.
Três meses após a
instauração deste Ato Institucional, 66 professores foram expulsos das
universidades ao redor do país.
De acordo com a
Agência Senado, 181 parlamentares foram cassados, 173 deputados federais, 8
senadores, e 3 ministros do Supremo Tribunal Federal.
O AI5 durou 10 anos
e 18 meses, durante esse tempo o Brasil esteve sob um imenso pau-de-arara.
Mesmo sob a
guilhotina do AI-5 e da Lei de Segurança, nós combatemos a ditadura. Custou
muito, mas a democracia venceu.
Ao não extirpar por
completo as raízes daquela ditadura, através da aplicação da Justiça de
Transição, voltamos a um Estado de exceção com o golpe de 2016.
A direita golpista
conspira permanentemente para golpear a democracia. É a história que nos
ensina.
Ninguém deve se
calar, ninguém deve se permitir esquecer as consequências que o AI-5 causou. É
preciso gritar, reagir, avançar na consciência e organização antifascista e de
defesa da democracia.
Para o futuro será
necessário a constituição de uma Comissão Estatal Permanente de Memória e
Reparação, que abranja todos os períodos traumáticos do Brasil – escravidão,
ditaduras e o genocídio bolsonarista, a fim de ser realizada a justiça de
transição necessária à construção de uma democracia sólida. Para tanto,
precisaremos de Congresso menos extrema-direita que o atual.
Nossos heróis não
morrem, se os cultivarmos na memória do povo, como semente permanente ao
florescimento de juventudes revolucionárias (como pregou o Papa Francisco), na
perspectiva da construção de um Brasil soberano, libertário e democrata, como
sonhou e lutou Carlos Marighella.
Nossos filhos,
netos, historiadores, conhecedores da nossa memória, falarão por nós, mas, até
lá, a memória viva não deve ser substituída por aqueles que serão memória
histórica, não viva.
Quando se acredita
numa ideia, num ideal, não se luta somente numa conjuntura, mas por toda a
vida.
Esquecer é matar a
esperança da justiça!
AI-5 nunca
mais. Ditadura nunca mais. Democracia sempre mais!
¨ A morte violenta causada pela ditadura. por Urariano
Mota
Uma notícia desta
semana informa que os cartórios devem emitir nova certidão de óbito de vítimas
da ditadura militar. O Conselho Nacional de Justiça aprovou na terça-feira (10)
uma resolução que determina que os cartórios passam a ser obrigados a
reconhecer as mortes ocorridas durante a ditadura militar.
Eles devem
retificar as certidões de óbito com a grave informação de que a causa
real da morte não foi natural, mas causada pelo Estado brasileiro. O documento
deve trazer a seguinte informação: “morte não natural, violenta, causada pelo
Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população
identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.
A decisão do CNJ
avaliou uma proposta do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. O
presidente do conselho, ministro Luís Roberto Barroso, classificou a medida
como um acerto de contas legítimo com o passado. Trata-se de uma decisão
histórica, sem dúvida.
Entre os muitos
casos de óbitos, pior, entre todos os casos de óbito da
ditadura, cínicos, criminosos, lembro o de Soledad Barrett, que ao lado de
cinco militantes socialistas foi assassinada em janeiro de 1973 no Recife.
Em 11/02/2016. o jornal O Globo noticiava:
“O ministro da
Justiça, José Eduardo Cardozo, determinou a um cartório da capital paulista que
proceda a inscrição da ‘causa mortis’ de Soledad Barrett Viedma, em sua
certidão de óbito, como ‘“desaparecimento político’ ”.
Mas nesta semana
houve um sério avanço. Não se trata mais de morte de desaparecido político.
Trata-se de crime violento cometido pela ditadura.
É uma história
bárbara, feita por bárbaros, assassinos fascistas do regime implantado em 1964.
O feto de Soedad foi arrancado do seu cadáver!
Relatou a
fundamental advogada Mércia Albuquerque:
“Eu tomei
conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério…. em um barril
estava Soledad Barrettt Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas
coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto.”
Quando Mércia
Albuquerque declarou essas palavras, ela não era mais advogada de presos e
perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava
acostumada ao horrível e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque
havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira
e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco,
falou entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias. Dura e
endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973
ainda a perseguia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma
expressão muito grande de terror”.
No depoimento da
advogada não havia uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no
necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa que fraterniza e confraterniza com
pessoas. “Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao
lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”. Distante
dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a
cadáveres, mas a gente. Chama-os pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo,
Manuel, Soledad. Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram
homens e mulheres –, despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da
morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder
imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à
câmara de sofrimento. “A boca de Soledad estava entreaberta”.
Aqui chegamos a um
estágio em que o melhor é narrar colado aos fatos e à sua complexidade. Vamos
ao momento do depoimento imortal da advogada Mércia Albuquerque:
“O que mais me
impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão
de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando
coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto
estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo
no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.”.
Agora, chegou a vez
de corrigir na certidão de óbito o que estava antes na história. Atualização
cartorial do horror.
Fonte: Jornal GGN
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