Wladimir Safatle: A era de crise
psíquica fabricada
Há quase dez anos, começamos a desenvolver na
Universidade de São Paulo a pesquisa que resultou no livro Neoliberalismo como
gestão do sofrimento psíquico. Tal pesquisa foi feita pelo Laboratório
de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip/USP), que congrega
professores e pesquisadores do Departamento de Filosofia e do Instituto de
Psicologia da nossa universidade. Durante os piores momentos da universidade
pública brasileira, lutamos para levar a cabo essa pesquisa como forma de
começar a analisar as mutações pelas quais os sujeitos estavam a passar no
interior da nova ordem econômica com suas estruturas próprias de brutalização
social e violência.
Tal pesquisa sobre o neoliberalismo e as formas
contemporâneas do sofrimento psíquico era o primeiro passo para tirar as
consequências de uma questão epistemológica que nos parecia central, a saber: o
que, afinal, é uma categoria clínica? Que tipo de entidade são categorias como
“transtorno de personalidade histriônica”, “neurose obsessiva”,
“esquizofrenia”, “transtorno de ansiedade”, entre tantas outras? Seriam tais
categorias a expressão de espécies naturais descobertas
pelo desenvolvimento técnico do saber médico?
“Espécie
natural” é uma espécie correspondente ao agrupamento de fatos e elementos que
refletiria a estrutura do mundo natural, em vez de refletir os sistemas de
interesses e ações dos seres humanos. Nesse sentido, uma espécie natural seria
um agrupamento dotado de duas características fundamentais: acessibilidade
epistêmica (eles podem ser conhecidos) e autonomia metafísica (eles não se
reduzem a construções convencionais produzidas pelas minhas estruturas de
saber). A pergunta era então: são nossas categorias clínicas dotadas de
estruturas naturais, de leis naturais regulares que podem ser identificadas e
verificadas através de pesquisa empírica?
O que aconteceria se partíssemos da hipótese de
categorias clínicas não serem espécies naturais, de não haver nada no mundo
natural parecido com a perversão, a esquizofrenia, o transtorno
obsessivo-compulsivo, o transtorno de personalidade histriônica, já que os
mesmos marcadores biológicos podem descrever estados mentais distintos?
Poderíamos então afirmar que categorias clínicas são, de certa forma,
agenciamentos produzidos pelo próprio impacto dos saberes médicos nos objetos
que eles descrevem? Pode a configuração do saber médico, com suas estruturas de
classificação, produzir efeitos na experiência subjetiva? Ou seja, pode nosso
regime de saber compor o problema, e não a solução?
Essas eram as questões de base. Elas nos pareciam
relevantes porque muitas das nossas categorias clínicas não apenas não
têm ainda marcadores
biológicos precisos. Na verdade, elas nunca terão, não há
possibilidade alguma de elas virem a ter algum dia. Afinal, apenas para ficar
em um exemplo pedagógico, seria possível encontrar marcadores biológicos para o
já citado transtorno de personalidade histriônica? Seus critérios diagnósticos
são, entre outros, “desconforto em situações nas quais ele ou ela não são o
centro das atenções”, “uso constante da aparência física para chamar a atenção
para si”, “autodramatização, teatralidade e expressão exagerada de emoções”.
Tais critérios não podem ser avaliados como expressão de marcadores biológicos
específicos, mas como comportamentos de recusa, inconsciente ou não, a padrões
de socialização que, por sinal, são bastante imprecisos. Pois se estamos a
falar em “expressão exagerada de emoções”, temos de nos perguntar onde estaria
a definição de um “padrão adequado” de emoções senão na subjetividade do
médico. Ou seja, a categoria clínica está claramente assentada em um padrão
disciplinar de conduta que nada tem a ver com a biologia ou algum outro regime
de saber aparentemente independente do sistema de valores do observador.
Dessa forma, fica evidente como tal problema não dizia
respeito apenas a questões epistemológicas gerais ligadas ao campo do saber
psiquiátrico-psicológico e suas categorias. Antes, estávamos diante de uma
questão política ligada ao saber médico como setor fundamental das tecnologias
de poder. Pois se tratava de entender como as sociedades se reproduzem
definindo não exatamente a norma, mas os desvios. Governar é definir as formas
possíveis de desvios, é dizer a quem não se adapta (mas quem efetivamente se
adapta?), a quem sofre devido ao peso restritivo das normas sociais: “Esses são
os lugares dos desvios possíveis disponíveis para você”. Um pouco como a famosa
parábola da porta de lei, de Franz Kafka. A mesma parábola que nos lembra de
que essa porta o impede de entrar, mas foi criada para você.
Nesse sentido, as formas de inscrição do sofrimento em
patologias que serão objetos de tecnologias de intervenção clínica eram problemas
políticos fundamentais. Quanto mais extensas essas formas de inscrição, mais as
sociedades denunciam sua fragilidade em relação à crença nas normas, na
normalidade que elas mesmas enunciam. Pois tudo se passa como se as estruturas
de dominação social precisassem se aproximar cada vez mais dos sujeitos, como
se estivessem a lutar contra uma insubmissão, um mal-estar, uma recusa que
parece vir por todos os poros. Se quisermos entender como categorias clínicas e
tecnologias de intervenção clínica são construídas, não devemos ter apenas uma
perspectiva histórica que mostre o desenvolvimento como algo que parece seguir
o ritmo do mero aprofundamento da disciplina e do controle. Precisamos de uma
perspectiva agonística que mostre “contra quem” tais regimes de saberes e de
intervenção são criados. Qual insubmissão eles tentam calar. Estabelecer essas
questões em meio a um Brasil tomado pela ascensão da extrema direita e do
fascismo nacional nos parecia algo mais do que uma mera curiosidade
intelectual.
·
O neoliberalismo como o nome de uma crise psíquica
Jacques Lacan um dia compreendeu, com sua precisão
costumeira, que as múltiplas modalidades de sofrimento psíquico eram déficits de
reconhecimento.
Essa era uma maneira de lembrar que nossos sintomas, inibições e angústias
estavam organicamente vinculados a problemas de reconhecimento social ou,
antes, aos limites das possibilidades de reconhecimento social historicamente
constituídas para nós. Não se tratava, assim, de uma inabilidade dos sujeitos
em suas tentativas de se fazerem reconhecer, mas das limitações objetivas da
própria sociedade que cindia, que dividia, que instaurava a contradição no seio
dos sujeitos. Lembremos sempre disto: normas sociais não criam sujeitos, elas
os dividem. Se normas tivessem essa força criadora ex nihilo, dificilmente
conseguiríamos explicar por que elas nos fazem sofrer, por que somos tão
inadaptados a elas.
Faço essa observação apenas para dizer que a
perspectiva lacaniana abria uma avenida a ser explorada. Hegel, quando compreendeu
as estruturas de reconhecimento como base da formação da consciência, entendeu
que trabalho, desejo e linguagem, como campos fundamentais de interação social,
eram os eixos materiais da emergência da consciência. No entanto, foi
necessário alguém como Marx para completar tal guinada para fora da filosofia
transcendental, para fora das ilusões das pretensas determinações a-históricas
e atemporais da consciência, ao insistir na ideia de que necessitávamos então
de uma análise concreta das configurações atuais do trabalho. Uma análise que
partisse do fato de não trabalharmos do mesmo jeito dentro e fora do
capitalismo. Pois se não trabalhávamos do mesmo jeito dentro e fora do
capitalismo, então as estruturas de dominação social eram distintas, o sofrimento
social era distinto, e os problemas de reconhecimento precisavam ser
inflexionados a partir de tais distinções. Mais do que isso, as ações visando à
emancipação não poderiam ser pensadas de forma genérica, precisariam ser
inflexionadas levando em conta a especificidade das condições materiais do
trabalho social historicamente constituído.
Podemos dizer que o mesmo vale para a compreensão
lacaniana a respeito dos problemas de reconhecimento do desejo com os quais
lidamos na clínica. Não se deseja da mesma forma dentro e fora do capitalismo,
nem sequer dentro e fora da sua configuração mais atual, a saber, o
neoliberalismo. No entanto, mais do que as mutações históricas das formas
avalizadas de desejo, devemos prestar atenção às mutações históricas das formas
avalizadas de desvios em relação às normas sociais do desejo.
Digo isso porque a ascensão do neoliberalismo como
estágio final do capitalismo implica nova configuração das estruturas de
dominação social. Ela implica, principalmente, aprofundamento das formas de
sujeição psíquica e de construção subjetiva. Tal aprofundamento passa não
apenas pela extensão da norma social, o que no caso significa extensão da
forma-empresa para todos os meandros das esferas sociais de valores, extensão
da violência concorrencial e bélica do empreendedorismo como modelo de relação
a si, ao outro e ao mundo, extensão de uma noção de liberdade como propriedade
de si que explode toda possibilidade de constituição de um corpo social baseado
na solidariedade. Ela passa, sobretudo, pela extensão indefinida do sofrimento
psíquico e de suas categorias, como se fosse o caso de fornecer uma autorização
quase que ilimitada para a intervenção psiquiátrica.
Pensemos, por exemplo, na explosão do número de
categorias clínicas que se dá exatamente a partir da ascensão do neoliberalismo
no final dos anos 1970. Quando foi publicado em sua primeira versão, em 1952,
o DSM (Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) continha 128 categorias para
a descrição de modalidades de sofrimento psíquico. Em 2013, em sua última
versão, apresentava 541 categorias. Ou seja, em cerca de 60 anos, 413 novas
categorias foram “descobertas”. Não há nenhum setor das ciências que tenha
conhecido um desenvolvimento tão anômalo e impressionante desde o fim do degelo
da era glacial. Claro que isso não indica “salto tecnológico” algum. Não
havíamos negligenciado por séculos 413 categorias clínicas. Antes, demos
autorização cada vez mais extensa para a intervenção médica em meandros da vida
que até então não eram vistos como campos possíveis de comportamento
patológico. Permitimos ao saber psiquiátrico entrar em nossas vidas em um grau
até então absolutamente inimaginável.
Insistiria na ideia de que isso ocorreu porque creio
ser correto dizer que vivemos em uma era de crise psíquica. Ou seja, era da
extensão cada vez maior do sofrimento psíquico como saldo normal dos processos
de socialização. Deixe-me salientar esse ponto: estamos a falar de “saldo
normal”, ou seja, não há como nossos processos de socialização e reconhecimento
social não produzirem tal aumento cada vez mais exponencial de sofrimento
psíquico. Para se ter uma ideia, apenas no Brasil, esse laboratório mundial do
neoliberalismo autoritário, atualmente 13,5% da população foi diagnosticada com
transtorno depressivo, e 9,7% com transtorno de ansiedade. Uma maneira de
interpretar tais dados é dizer que eles mostram como ser um Eu atualmente é
insuportável.
Sabemos que não há sujeito sem sintoma, ou seja, não há
sujeito sem marcas de uma socialização que se confunde com formas de alienação.
Mas há algo a mais hoje que dá ao processo de formação social do Eu um caráter
ainda mais insuportável. As exigências de iniciativa, de responsabilização
individual, de “fazer seu corre”, que a precarização social absoluta e a
implosão de relações elementares de solidariedade produziram no neoliberalismo,
geraram, na verdade, aprofundamento da desagregação psíquica. Numa era de
extensão da racionalidade econômica para nossa vida privada e esferas de
intimidade, numa era de fortalecimento dos foros individuais de decisão devido
à afirmação de uma liberdade que se conjuga apenas no singular, como liberdade
dos interesses individuais, o Eu não consegue mais esconder para si a angústia
social. Ou seja, ao expandir a racionalidade econômica para as esferas da vida
privada, algo que Adam Smith, por exemplo, nunca fez, haja vista a diferença de
abordagem entre A
riqueza das nações (baseado,
entre outros, no reconhecimento da função social do egoísmo) e a Teoria dos sentimentos
morais (baseado
na necessidade da empatia), o neoliberalismo fez do preço para ser um Eu algo
impagável. Nesse horizonte social, o Eu está a todo momento sob autoavaliação a
partir dos vocabulários do rendimento, da performance, de desempenho, da
contabilidade, do interesse quantificável em relação à sua própria pessoa. E
cada vez mais submetido a imperativos que produzem não a revolta de se saber
sob uma lei repressiva, mas, sim, a implosão depressiva de ser chamado a
performances atléticas, submetido a injunções de gozo irrestrito que nunca se
realizam. Por isso, gradualmente o Eu passa a ter menos capacidade de mediar o
que não se submete a essa lógica de racionalidade econômica estendida. Tudo o
que não se conforma a ela aparece como um risco ao seu funcionamento, à sua
liberdade, em suma, algo a ser patologizado. Só resta então o uso cada vez
maior de defesas narcísicas, agressivas, violentas e segregadoras. Isso talvez
ajude a entender o atual tamanho dos transtornos de ansiedade.
Ou seja, conhecemos a emergência da definição,
atualmente clássica, dos sujeitos como “empreendedores de si mesmos”. Mas nos
perguntemos sobre o que deve acontecer à sociedade para que sujeitos possam se
autoperceber dessa forma. Isso foi resultado de uma “escolha individual”, de uma
decisão de se verem preferencialmente como empreendedores de suas próprias
habilidades, de seu “capital humano”, como até mesmo a esquerda contemporânea
advoga de forma irresponsável? Ou é fruto de uma violência social brutal
produzida a ferro e fogo, um pouco como a descrição dada por Marx para a
transformação de trabalhadores vinculados afetivamente à terra em indivíduos
que nada têm a não ser uma “força de trabalho” abstrata e quantificável? Pois
“empreendedorismo” não é uma forma de liberdade, mas de violência, de
eliminação ainda maior de qualquer enraizamento. Não se trata de um modo de
produzir riquezas, mas da violência de reduzir toda relação social à figura da
concorrência e da competição. Redução de todo outro à condição de um
concorrente a ser eliminado. Essa é uma forma de organizar a sociedade a partir
da lógica da guerra, de uma guerra infinita na qual nenhuma solidariedade é
possível. Nessa situação, o chamado neoliberal ao fortalecimento dos foros
individuais de decisão e deliberação só pode produzir o pânico de se ver em um
real isolamento social, sempre se equilibrando contra a morte econômica à
espreita. A crise psíquica aparece então como fruto da implosão completa de um
corpo social anterior aos indivíduos. Algo que apenas o neoliberalismo
conseguiu fazer de forma rigorosa e extensa, pois se trata de uma destruição
vinculada a chamados morais de nos tornarmos “livres”, mais pretensamente
responsáveis pelas nossas próprias vidas.
Notemos ainda que os chamados ao fortalecimento da
capacidade de decisão e escolha do Eu não são apenas ilusórios, mas irreais. O
Eu não é centro de decisões e deliberações. O Eu nunca decide, pois as reais
decisões não se dão como fruto de escolhas e exercício de um pretenso
“livre-arbítrio” mobilizado pelo Eu. Elas se impõem ao Eu em dimensões
inconscientes. Ninguém “escolhe”, por exemplo, uma orientação sexual. Ela se
impõe aos sujeitos, cabendo ao Eu reconhecer ou não o que lhe aparece como
incontornável. E o não reconhecimento será necessariamente pago com enormes
quantidades de sofrimento psíquico e autoviolência. As decisões que cabem ao Eu
são apenas aquelas que se organizam como representações da consciência, como
objetos de consensualidade, como expressões de “interesses” pessoais. O que
significa uma quantidade extremamente limitada de decisões referentes a nossas
vidas. Essa é uma forma de lembrar que fortalecer o Eu como instância de
decisão é apenas uma forma de desconhecimento ideológico. Algo que apenas
aprofunda a incapacidade do Eu em lidar com decisões reais, com processos
inconscientes e despersonalizados que nos determinam. O resultado só pode ser a
rigidez ainda maior de uma instância psíquica que se sente a todo momento
invadida, atravessada por alteridades que lhe são internas. O desamparo de se
perceber em tal situação é, em momentos de crise, transformado em apelos de
amparo por imagens narcísicas de si encarnadas em instâncias de poder e em
discursos belicistas.
Ou seja, a crise psíquica é fruto da implosão completa
de um corpo social anterior à ilusão de os sujeitos serem indivíduos, entidades
em concorrência e competição contínua entre si. Conhecemos o sofrimento
resultante da incapacidade de se individualizar do corpo social, mas agora
temos o sofrimento de ser apenas um indivíduo, sem nenhum corpo social genérico
por vir, capaz de transformar, em seu próprio movimento de emergência, nossas
identidades sociais e suas limitações.
Soma-se a isso o fato de que sempre se exigiu dos
sujeitos um enorme esforço de recalque e restrição para serem sujeitos sociais
capazes de desempenho e reconhecimento. Isso implicava, inclusive, recalque
sexual, constituição de si como identidade rígida de gênero, pois esse era um
elemento fundamental de garantia para escapar da violência social e da
exclusão. No entanto, com a flexibilização das identidades de gênero, inclusive
no setor central do capitalismo empresarial (não há empresa que não queira
atualmente “diversidade” sexual, que não celebre a “diversidade” em suas
campanhas), essa autoviolência necessária para a constituição do Eu se
transformou em algo obsoleto, o que provoca uma angústia enorme. Pois tudo se
passa como se o sujeito não só se submeteu a uma violência atualmente
desnecessária, mas também se mostrou incapaz de ler as novas tendências, antecipar
o novo. A violência que ele levantou contra si mesmo não tem mais valor algum
agora. Daí a raiva que se volta contra aqueles e aquelas que o lembram disso
por terem sido capazes de lidar com suas dissidências de gênero e divergências
de outra forma.
Em todas essas situações, vemos uma crise psíquica cada
vez mais bruta, com explosões sociais previsíveis. Contra ela, o saber
psiquiátrico levanta a extensão indefinida das categorias clínicas, a
patologização de todas as formas de mal-estar e desconforto em relação aos
processos normais de socialização e individuação, o uso do diagnóstico como
forma de preservação de si (“se tenho um diagnóstico, mereço alguma forma de
cuidado”) que cobra um alto preço, pois paralisa o sujeito em uma posição de
impotência e exclusão. Quanto maior a extensão da possibilidade de diagnósticos
clínicos, menor a chance de mobilizar o sofrimento psíquico como fundamento
para a revolta social. Nesse sentido, é para a compreensão de tal crise e suas
consequências que precisamos atualmente nos mover. Ela é um desafio maior a
quem entende a clínica do sofrimento psíquico como um setor necessário dos
processos de emancipação social, pois tal crise psíquica se aprofundará diante
dos nossos olhos.
Fonte: Outras
Palavras
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