sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Pepe Escobar: A autópsia da Síria - terror, ocupação e Palestina

A curta manchete definindo o abrupto e rápido fim da Síria tal como a conhecíamos seria: Eretz Israel se encontra como o neo-otomanismo. O subtítulo? Um ganha-ganha para o Ocidente e um golpe fatal contra o Eixo da Resistência.

Mas para citar a ainda onipresente cultura pop americana, talvez as corujas não sejam o que parecem.

Comecemos com a rendição do ex-presidente sírio Bashar al-Assad. Diplomatas do Catar, extraoficialmente, sustentam que Assad tentou negociar a transferência de poder com a oposição armada que havia lançado uma grande ofensiva militar nos dias anteriores, começando com Alepo, rapidamente seguindo em direção ao sul rumo a Hama, Homs, e tendo Damasco como alvo. Isso foi discutido em detalhe entre Rússia, Irã e Turquia a portas fechadas durante o último suspiro do moribundo “processo de Astana” para a desmilitarização da Síria.

A negociação de transferência de poder fracassou. Assad, portanto, recebeu do presidente russo Vladimir Putin a oferta de asilo em Moscou. Isso explica por que tanto o Irã como a Rússia imediatamente mudaram a terminologia quando ainda em Doha, passando a se referir à “oposição legítima”, em uma tentativa de distinguir os reformistas não-militantes dos extremistas armados que provocam destruição por todo o estado.

O Chanceler russo Sergey Lavrov – com uma linguagem corporal que revelava o grau de sua ira – literalmente disse: “Assad tem que negociar com a oposição legítima, que está na lista da ONU”.

Muito importante: Lavrov não se referia ao Hayat Tahrir al-Sham (HTS), os bandos de salafi-jihadistas ou jihadis-de-aluguel financiados pela Organização de Inteligência Nacional da Turquia (MIT), com armas bancadas por Catar e contando com o total apoio da OTAN e de Tel Aviv.

O que aconteceu depois do funeral em Doha foi bastante obscuro, sugerindo um golpe controlado remotamente por uma inteligência ocidental, se alastrando com a rapidez de um raio, contando inclusive com relatórios de traições internas.

A ideia original de Astana era garantir a segurança de Damasco e fazer com que Ancara controlasse seu HTS. Mas Assad já havia cometido um grave erro estratégico, ao acreditar nas elevadas promessas da OTAN transmitidas por seus novos amigos, as lideranças árabes do EAU e da Arábia Saudita.

Atônito, Assad finalmente se deu conta da fragilidade de sua posição, tendo recusado ajuda militar de seus leais aliados regionais, Irã e Hezbollah, na crença de que seus novos aliados árabes garantiriam sua segurança.

O Exército Árabe Sírio (SAA) estava em frangalhos após treze anos de guerra e de impiedosas sanções dos Estados Unidos. A logística estava submetida a deplorável corrupção. A podridão era sistêmica. Mas é importante observar que embora muitos estivessem dispostos a, mais uma vez, lutar contra os grupos terroristas com apoio estrangeiro, Assad, segundo fontes próximas a ele, jamais usou a totalidade de seu exército para se contrapor ao ataque.

Teerã e Moscou tentaram de tudo – até o último minuto. Na verdade, Assad já passava por grandes dificuldades desde sua visita a Moscou, em 29 de novembro, que não colheu qualquer resultado concreto. O establishment de Damasco, assim, viu a insistência da Rússia em que Assad abandonasse suas linhas vermelhas de antes ao negociar um acordo político como um sinal que apontava para o fim.

·        Turquia: ‘não temos nada a ver com isso’

 Além de nada fazer para evitar a crescente atrofia e o colapso do SAA, Assad nada fez para frear Israel, que há anos vem bombardeando incessantemente a Síria.

Até o último momento, Teerã estava disposta a ajudar: duas brigadas estavam prontas para entrar na Síria, mas levaria ao menos duas semanas para que elas estivessem prontas para entrar em combate.

Fars News Agency explicou em detalhe o mecanismo – desde a falta de motivação da liderança síria para lutar contra as brigadas terroristas até Assad, de junho até cerca de dois meses atrás, ter desconsiderado as graves advertências do Líder Supremo iraniano Ali Khamenei, avisando que o HTS e seus apoiadores estrangeiros vinham preparando uma blitzkrieg. Segundo os iranianos:

“Após a queda de Alepo, ficou claro que Assad não tinha a menor intenção de permanecer no poder, de modo que demos início a conversas diplomáticas com a oposição e preparamos a saída segura para nossas tropas na Síria. Se o SAA não está disposto a lutar, não iremos arriscar a vida de nossos soldados. A Rússia e os EAU haviam conseguido convencê-lo a renunciar, de modo que não havia nada que pudéssemos fazer”.

Não há confirmação russa de que eles convenceram Assad a renunciar: basta interpretar a reunião fracassada de 29 de novembro em Moscou. Mas é significativo que, antes disso, tenha havido confirmação de que a Turquia, já há seis meses, tinha pleno conhecimento da ofensiva do HTS.

A versão de Ancara é previsivelmente nebulosa: o HTS informou a Turquia sobre o ataque, pedindo que ela não interviesse. Além disso, o Ministério das Relações Exteriores da Turquia passou a versão de que o Presidente-Califa Recep Tayyip Erdogan tentou avisar Assad (nenhuma palavra de Damasco sobre isso). Ancara, oficialmente, por intermédio do Chanceler Hakan Fidan, nega firmemente ter orquestrado ou aprovado a iniciativa dos jihadis-de-aluguel. Talvez eles venham a se arrepender dessa negativa, agora que todos, de Washington a Tel Aviv, querem o crédito pela queda de Damasco.

Só a máquina de propaganda da OTAN acredita nessa versão – uma vez que o HTS vem há anos contando com o total apoio não apenas da Turquia mas também, secretamente, de Israel, que foi publicamente acusado de pagar os salários dos extremistas durante a guerra síria, e sabidamente ajudou na reabilitação dos combatentes da Al-Qaeda feridos em ação. Tudo isso leva ao cenário predominante de uma cuidadosamente calculada demolição controlada executada pela CIA/MI6/Mossad, contando inclusive com um fluxo incessante de armamentos, com ucranianos treinando os takfiris no uso dos drones kamikaze FPV e malas recheadas de dinheiro vivo para subornar altos funcionários sírios.

·        O Novo Grande Jogo Reloaded

O colapso sírio talvez seja um exemplo clássico de “sobrecarregar a Rússia” – e também o Irã, no que se refere à crucial ponte de terra que a conecta a seus aliados no Mediterrâneo (os movimentos de resistência libanês e palestino). Para não falar de mandar um recado à China que, apesar de toda a sua altissonante retórica de “comunidade de futuro compartilhado”, não havia feito absolutamente nada para ajudar a reconstrução da Síria.

No nível da geoenergia, agora já não há mais obstáculos à resolução da épica saga do Gasodutistão – e uma das principais razões da guerra na Síria, como analisei há nove anos: a construção do gasoduto Catar-Turquia através de território sírio para oferecer à Europa uma alternativa ao gás russo. Assad havia rejeitado o projeto, após o que Doha ajudou a financiar a guerra na Síria para derrubá-lo.

Não há indícios de que estados importantes do Golfo Pérsico, como Arábia Saudita e EAU venham a aceitar de boa-vontade o estrelato geoeconômico do Catar no caso da construção do gasoduto. Para começo de conversa, ele terá que passar por território saudita, e talvez Riad não esteja mais aberta à ideia.

Essa pergunta candente se liga a uma pilha de outras perguntas, inclusive a de, com passagem síria praticamente inviabilizada, como o Hezbollah irá receber os futuros fornecimentos de armas, e como o mundo árabe reagirá à tentativa da Turquia de partir para o neo-otomanismo total.

Há então o espinhoso caso do estado parceiro dos BRICS se confrontando diretamente com os principais membros dos BRICS Rússia, China e Irã. A nova guinada de Ancara pode até mesmo acabar provocando sua não-aceitação nos BRICS, não recebendo da China um status comercial favorável.

Embora seja possível defender a ideia de que a perda da Síria talvez seja um golpe devastador para a Rússia e para a Maioria Global, vamos com calma - por enquanto. No caso de vir a perder o porto de Tartous, administrado pela URSS-Rússia desde 1971, juntamente com a base aérea de Hmeimim – sendo assim expulsos do Leste do Mediterrâneo – Moscou teria opções de substituição, com diferentes graus de praticabilidade.

Temos a Argélia (parceira dos BRICS), o Egito (membro dos BRICS) e a Líbia. Até mesmo o Golfo Pérsico: que, por sinal, poderia se tornar parte da parceria estratégica ampla Rússia–Irã, a ser oficialmente assinada em 25 de janeiro em Moscou por Putin e seu colega iraniano Presidente Masoud Pezeshkian.

Seria extremamente ingênuo supor que Moscou foi tomada de surpresa por uma suposta Kursk 2.0. Como se todos os recursos de inteligência – bases, satélites, inteligência no solo - não tivessem examinado minuciosamente, durante meses, um bando de salafi-jihadistas reunindo um exército de dezenas de milhares no Grande Idlib, contando até mesmo com uma divisão de tanques.

É bastante plausível, portanto, que o que está se desenrolando é Rússia clássica somada à astúcia persa. Não demorou muito para que Teerã e Moscou fizessem os cálculos do que seria perdido – principalmente em termos de recursos humanos – se caíssem na cilada de apoiar um Assad já enfraquecido em mais uma sangrenta e prolongada guerra no solo. Mesmo assim, Teerã ofereceu apoio militar e Moscou, apoio aéreo e cenários de negociações até o último momento.

Agora, toda a tragédia síria – incluindo um possível Califado de all-Sham comandado pelo jihadista reformado e amigo das minorias Abu Mohammad al-Julani – cai no âmbito da responsabilidade do combo OTAN/Tel Aviv/Ancara.

Eles, simplesmente, não estão preparados para navegar a ultracomplexa matriz síria, tribal, clânica e saturada de corrupção – para não falar do magma de 37 grupos terroristas, unidos apenas, até agora, pela tênue cola da derrubada de Assad. Esse vulcão certamente explodirá nas suas caras coletivas, talvez na forma de horrendas batalhas internas que talvez durem anos.

O nordeste e o leste da Síria já foram instantaneamente atirados na mais total anarquia, com uma multidão de tribos locais decididas a conservar seus esquemas mafiosos a qualquer custo, recusando-se a serem controladas por uma Rojava EUA/Curda, uma combinação em grande parte comunista e secular. Algumas dessas tribos já vêm fazendo amizade com os salafi-jihadistas apoiados pelos turcos. Outras tribos árabes, neste ano, haviam juntado forças com Damasco contra tanto os extremistas como os secessionistas curdos.

O Oeste da Síria talvez seja também território anárquico, como Idlib: rivalidades sanguinárias entre redes terroristas e de crime organizado, entre clãs, tribos, grupos étnicos e grupos religiosos arregimentados por Assad, com um panorama ainda mais complexo que na Líbia sob o antigo presidente Muammar al-Gaddafi.

Quanto às linhas de fornecimento dos Cortadores-de-Cabeças, elas inevitavelmente ficarão sobrecarregadas – e então será fácil interrompê-las, não apenas para o Irã, por exemplo, mas também para a ala da OTAN via Turquia/Israel, quando eles se voltarem contra o Califado, o que provavelmente farão caso os abusos deste último fiquem demasiadamente aparentes à mídia.

Ninguém consegue prever o que acontecerá com carcaça da Síria da dinastia Assad. Milhões de refugiados talvez retornem, em especial da Turquia, o que Washington há anos tenta evitar a fim de proteger seu projeto de “curdificação” no norte – mas, ao mesmo tempo, milhões irão fugir, aterrorizados pela perspectiva de um novo Califado e o retorno de uma guerra civil.

Haveria algum raio de luz em meio a uma tamanha escuridão? O líder do governo de transição será Mohammad al-Bashir, que até recentemente era o primeiro-ministro do assim chamado Governo de Salvação da Síria (SSG) no Idlib dominado pelo HTS. Engenheiro Elétrico por formação, Bashir acrescentou um outro diploma a seu currículo: Sharia e Direito.

·        Perder a Síria não significaria perder a Palestina

A Maioria Global talvez esteja pranteando o que, na superfície, parece ser um golpe quase mortal contra o Eixo da Resistência. Mas de modo algum Rússia, Irã, Iraque – e até mesmo a tonitruantemente silenciosa China – permitirão a vitória de um exército salafi-jihadista por procuração apoiado pelo eixo OTAN-Israel-Turquia. Comparados ao Ocidente Coletivo, eles são mais inteligentes, resilientes e infinitamente mais pacientes, e levam em conta os contornos do Grande Quadro que têm pela frente. Ainda é muito cedo mas, mais cedo ou mais tarde, eles entrarão em ação para evitar que o jihadismo apoiado pelo Ocidente atinja Pequim, Teerã e Moscou.

A agência de inteligência estrangeira russa, a Sluzhba Vneshney Razvedki (SVR) vem monitorando 24/7 qual será a próxima destinação da brigada salafi-jihadista na Síria, um exército formado por gente de todo o Heartland, em sua esmagadora uzbeques, uigures, tadjiques e alguns chechenos. É fora de dúvida que eles serão usados para “estender” (terminologia da Thinktanklândia dos Estados Unidos) não apenas a Ásia Central, mas também a Federação Russa.

Enquanto isso, Israel se verá sobrecarregado em Golan. Os americanos, temporariamente, irão se sentir seguros e protegidos em meio aos campos dos quais eles continuarão roubando petróleo sírio. Essas são duas latitudes ideais para o início do que será a primeira retaliação conjunta dos BRICS contra aqueles que vêm desencadeando a Primeira Guerra dos BRICS.

Então há a tragédia suprema: a Palestina. Uma maciça reviravolta de enredo ocorreu dentro da venerável mesquita Umayyad, em Damasco. O Exército de Cortadores de Cabeça da OTAN-Israel-Turquia agora promete aos palestinos que eles estão chegando para libertar Gaza e Jerusalém.

Mas até este último domingo, só se ouvia “Eu Amo Israel”. O mestre de cerimônias dessa operação de relações públicas – criada para enganar o mundo muçulmano e a Maioria Global – é ninguém menos que o próprio Califa de al-Sham, Julani.

Nas atuais circunstâncias, o novo regime de Damasco será, para todos os fins práticos, apoiado por aqueles que defendem e arquitetam o Eretz Israel e o genocídio dos palestinos. Isso já é público e notório, vindo de membros do gabinete israelense em pessoa: o ideal, para Tel Aviv, seria expulsar a população de Gaza e da Cisjordânia para a Síria, embora a Jordânia seja sua destinação preferida.

É essa a batalha que temos que focar daqui por diante. O falecido secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, foi peremptório ao insistir no significado mais profundo de perder a Síria: “a Palestina estaria perdida”. Mais que nunca, cabe à Resistência Global não permitir que isso venha a ocorrer.

¨      Partido Baath da Síria anuncia suspensão de atividades após mudança de poder no país

O Partido Socialista Árabe Baath, do presidente sírio Bashar al-Assad, anunciou nesta quarta-feira (11) a suspensão de suas atividades após mais de 60 anos no poder.

"Após analisar a situação política, social e econômica, com base nos interesses nacionais, a liderança tomou a seguinte decisão: suspender as ações e atividades do partido em todas as suas manifestações até novo aviso", disse o partido em comunicado publicado pelo jornal sírio Al-Watan.

O partido transferirá todos os equipamentos e as armas para os departamentos de polícia, de acordo com o comunicado.

"Todos os ativos materiais serão transferidos para a disposição do Ministério das Finanças, sob o proteção do Ministério da Justiça", disse o comunicado.

O Partido Socialista Árabe Baath foi fundado na Síria, em 1946, e adotou uma ideologia socialista e nacional árabe. Filiais do partido surgiram em muitos países da região, incluindo Líbano, Jordânia, Líbia e Arábia Saudita. Tornou-se o partido governante na Síria em 1963, enquanto no Iraque permaneceu no poder de meados da década de 1960 até o início dos anos 2000.

A oposição armada síria capturou a capital Damasco no último domingo (8). Autoridades russas disseram que o presidente sírio Bashar al-Assad renunciou após manter negociações com participantes do conflito sírio e deixou a Síria para ir à Rússia, onde recebeu asilo.

Mohammed al-Bashir — que comandou uma administração baseada em Idlib formada pelo grupo sunista salafista Hay'at Tahrir al-Sham (HTS, ou Comitê da Libertação do Levante em tradução livre) e outros grupos de oposição — foi nomeado primeiro-ministro interino na terça-feira (10).

 

Fonte: Brasil 247/Sputnik Brasil

 

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