Medicamentos não incorporados mais
judicializados no SUS são para doenças raras
O Ministério da Saúde gastou
em 2023 mais de 1,4 bilhão de reais para o fornecimento de medicamentos não
incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Cerca de 40% do montante foi
destinado para aquisição de três medicamentos para doenças raras. Os dados são do
Departamento de Logística em Saúde e foram obtidos com exclusividade por Futuro
da Saúde através da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o
fornecimento de medicamentos não incorporados, criando critérios mais rígidos,
o valor gasto pelo Ministério pode ser reduzido nos próximos anos. Contudo,
pacientes com doenças raras serão os principais afetados e temem que não tenham
acesso a tratamentos inovadores.
Voxzogo (vosoritida), para
acondroplasia (nanismo), Translarna (atalureno), tratamento para Distrofia Muscular
de Duchenne, e Tegsedi (inotersena), para polineuropatia amiloidótica familiar,
são os medicamentos não incorporados com maiores contratos em 2023 para o
atendimento de demandas judiciais.
Deles, apenas o Tegsedi
(inotersena) passou por avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e recebeu recomendação de não incorporação em
2024, indicando incertezas das evidências existentes e impacto orçamentário
elevado. Com a decisão do STF tornando a análise da Conitec soberana, o acesso ao
medicamento por via judicial tende a se tornar mais complexo.
Em nota, a PTC Therapeutics,
fabricante do inotersena e do atalureno, afirma que “a companhia está avaliando
as próximas solicitações de incorporações (submissões e ressubmissões) para a
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde
(Conitec) de suas terapias”.
Já a BioMarin, responsável
pelo Voxzogo, afirma que está preparando “um dossiê robusto, incluindo dados
clínicos bem estabelecidos de segurança, eficácia e vida real da população
brasileira, e vai solicitar, em 2025, a incorporação de vosoritida pela
Conitec”.
Procurado, o Ministério da
Saúde afirma, em nota, que a decisão e os critérios estabelecidos pelo STF
“contribuem para uma maior eficiência no tratamento de pacientes com doenças
graves, ao mesmo tempo em que evitam a sobrecarga do SUS, dando um
direcionamento mais claro à judicialização da saúde. No entanto, ainda é cedo
para determinar se haverá economia e possível diminuição desses valores”.
·
Tratamento para nanismo
Fabricado pela BioMarin, o
Voxzogo (vosoritida), é indicado para o tratamento de acondroplasia, um dos
tipos mais comuns de nanismo, a partir de seis meses de vida, seguindo
critérios específicos. Ele deve ser utilizado até que demonstre efeitos
positivos na saúde do paciente. A doença rara impacta além da baixa estatura, e
o uso do medicamento de forma precoce pode contribuir com a redução do risco de
outras complicações.
Atualmente o acesso se dá
apenas por via judicial. A BioMarin confirmou em nota que deve submeter o
medicamento para incorporação em 2025. “Ao longo desse processo, a BioMarin
trabalhará em estreita colaboração com o Ministério da Saúde para buscar
alinhamento em todo o processo de submissão e análise, para garantir que esta
terapia, a única aprovada para crianças com acondroplasia, esteja disponível
àqueles que dela necessitam”, afirma a farmacêutica.
Vice-presidente da
Associação Nanismo Brasil (Annabra), Karine Siqueira defende que, embora a
decisão do STF, estabelecendo critérios mais rígidos, busque trazer mais
previsibilidade ao fornecimento de medicamento, traz também impactos negativos
a pacientes vulneráveis, como no caso do nanismo. “As pessoas menos
favorecidas que dependem da Defensoria Pública vão ter uma maior dificuldade de
entendimento e em buscar documentos para essa judicialização. Também vai ter um
maior acúmulo de trabalho para os defensores em provar isso. Isso tudo vem
burocratizar a judicialização de medicamentos”, afirma Siqueira, que é
advogada.
De acordo com ela, as
associações acompanham com ansiedade e preocupação o Projeto de Lei
Complementar n° 149, de 2024, de autoria do senador Romário (PL-RJ), em
tramitação no Senado. Ele aguarda designação do relator na Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania. Segundo ela, o texto traz os critérios
estabelecidos pela justiça anteriores à decisão do STF: registro na Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), incapacidade financeira e relatório
médico fundamentado.
“Estamos apreensivos porque
essa análise complexa também vai sobrecarregar o Judiciário, assim como
profissionais e advogados que defendem os interesses de pessoas com doenças
raras. Vão ter que juntar mais documentos e fazer um trabalho aprofundado junto
aos magistrados para explicar os requisitos que vieram do STF”, afirma Karine.
Em 2023, o Voxzogo foi o
medicamento não incorporado solicitado por via judicial que mais custou ao
Ministério da Saúde, de acordo com dados do Departamento de Logística em Saúde.
Mais de R$ 260 milhões foram pagos para a aquisição de medicamentos.
·
Revisão da autorização
Destinado para pacientes do
sexo masculino com distrofia muscular de Duchenne com dois anos de idade ou
mais, o Translarna (atalureno) é utilizado continuamente em pacientes com um
tipo específico da doença, com a mutação “nonsense”, para produção de
distrofina, proteína que auxilia os músculos a trabalhar adequadamente. O
medicamento possui registro na Anvisa desde 2019.
Karina Züge, presidente da
Aliança Distrofia Brasil (ADB), explica que o acesso ao medicamento da PTC
Therapeutics só está disponível no setor público via judicialização, já que não
foi avaliado e incorporado ao SUS. Isso implica na demora do acesso ao
tratamento.
A falta de um PCDT para a
doença é considerada um dos principais problemas para os pacientes com distrofia
muscular de Duchenne, junto à ausência de medicamentos incorporados, mesmo para
medicamentos que atuam no controle de sintomas.
Em outubro, a European
Medicines Agency (EMA) suspendeu a autorização da PTC Therapeutics de
comercialização condicional do atalureno, após analisar dados de mundo real de
pacientes que utilizaram o medicamento, considerando-os inconclusivos, e dois
estudos clínicos realizados após a autorização em 2014. Não foi observada
diferença significativa entre quem utilizou o medicamento e placebo.
No mesmo mês, o U.S. Food and Drug Administration (FDA) informou à PTC
Therapeutics que aceitaria a revisão para o reenvio de pedido de registro do
medicamento, após tentativa de registro em 2016. Na divulgação sobre a
informação, a farmacêutica aponta que irá utilizar estudos que comprovam os
benefícios do uso do medicamento em pacientes. Não há data para a conclusão da
análise.
“Não é a mesma régua que se
usa para doenças raras e ultrarraras. Se usar, vai acabar condenando esses
pacientes. Os critérios estabelecidos no STF não nos contempla. Como já
estávamos nesse limbo, impacta mas não muda. Na prática já estava ruim”,
argumenta Karina Züge.
·
Decisão do STF e posição do
Ministério
O Ministério da Saúde
argumenta, em nota, que “é importante esclarecer que um dos critérios judiciais
que autorizam a dispensação de medicamentos não fornecidos pelo SUS é a
incapacidade financeira do paciente de arcar com os custos do tratamento. Dessa
forma, não há restrições aos direitos daqueles que enfrentam dificuldades
financeiras para adquirir medicamentos de alto custo com eficácia comprovada”.
No entanto, os critérios
estabelecidos pelo Supremo vão além da comprovação da incapacidade financeira.
Além do registro na Anvisa, é preciso mostrar que houve a negativa de
fornecimento do medicamento no SUS, ilegalidade no processo de avaliação da
Conitec, falta de solicitação para incorporação ou apontar demora no
processo.
Em nota, a PTC Therapeutics
afirma que acredita que a decisão do STF “é mais um passo para estruturação do
setor, que ainda requer ajustes e políticas públicas consolidadas, mas que tem
tido avanços importantes nos últimos dez anos desde a instituição da Política
Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, a Portaria nº 199”.
A farmacêutica aponta que mantém diálogo com o Ministério da Saúde, reiterando
seu compromisso com a comunidade de doenças raras.
O Ministério avalia que
houve um “esforço conjunto” para a melhor a gestão do recurso público e o
efetivo fornecimento do insumo, assim como a execução de políticas públicas em
saúde. O fortalecimento da Conitec tem sido reforçado pela pasta em eventos e
comunicados à imprensa.
Questionado se deve submeter
os medicamentos não incorporados para avaliação da Conitec, o Ministério da Saúde
não se posicionou sobre o tema.
Ainda, existe uma discussão
sobre a obtenção de medicamentos já incorporados mas não disponibilizados no
SUS. Dados do Departamento de Demandas em Judicialização em Saúde, obtidos via
Lei de Acesso à Informação, apontam que o Ministério gastou em 2023 mais de R$
930 milhões em três medicamentos nesta situação: Soliris (eculizumabe),
Zolgensma (onasemnogene abeparvoveque) e Trikafta
(elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor).
Fonte: Futuro da
Saúde
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