sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Como queda de Assad na Síria confirma que 2024 foi pior ano para o Irã em décadas

Não faz muito tempo que o líder supremo do Irã descreveu Bashar al-Assad como o "herói do mundo árabe", em cuja sobrevivência a república islâmica gastou dezenas de bilhões de dólares.

No entanto, no momento em que Assad mais precisou, seu aliado mais próximo o deixou na mão.

Este foi, muito possivelmente, o pior ano para os interesses do Irã desde sua sangrenta guerra com o Iraque na década de 1980.

Suas milícias aliadas em Gaza e no Líbano — Hamas e Hezbollah, respectivamente — estão dizimadas depois de mais de um ano de guerra com Israel; seu arqui-inimigo Donald Trump vai voltar à Casa Branca; e o regime da Síria, a porta de entrada para sua influência no mundo árabe, desmoronou como um castelo de cartas.

Após décadas de apoio inabalável a um regime para o qual forneceu ajuda militar, econômica e política, o Irã viu a situação mudar na Síria e começou a conversar com os grupos rebeldes que conseguiram derrubar Assad, em uma tentativa de evitar um confronto entre os países vizinhos.

"É o povo sírio quem deve decidir sobre o futuro do seu país e do seu sistema político e governamental", declarou o presidente iraniano, Masoud Pezeshkian, no domingo (8/12).

Ele também acrescentou que os sírios devem ser livres para fazer isso sem interferência estrangeira.

A mensagem é nada menos que paradoxal, vinda do país que mais mexeu os pauzinhos para manter Damasco em sua órbita. E os rebeldes não se esqueceram disso.

No domingo, depois de chegar triunfante a Damasco, o líder do grupo que foi crucial para derrubar Assad, Ahmed al-Sharaa, alfinetou Teerã ao discursar na mesquita de Umayyad.

"Esse novo triunfo, meus irmãos, marca um novo capítulo na história da região, uma história repleta de perigos (que deixou) a Síria como um playground para as ambições iranianas, disseminando o sectarismo e alimentando a corrupção."

"Eles estão muito preocupados em Teerã neste momento", avalia Roxane Farmanfarmaian, professora de política internacional do Oriente Médio e Norte da África na Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Segundo ela, "é muito confuso o que o Irã fez para chegar a este ponto".

Para começar, por causa da mudança de regime, eles correm o risco de perder a passagem terrestre que tinham para apoiar o Hezbollah no Líbano — "aquela ponte terrestre para o Crescente que eles se empenharam tanto para manter", explica a especialista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

O território sírio permitiu que Teerã enviasse livremente armas, homens e dinheiro para a milícia islâmica libanesa, um de seus maiores aliados. Manter esses canais abertos agora vai ser extremamente difícil.

A Síria era uma peça-chave no chamado "Eixo de Resistência" — a aliança promovida pelo Irã para fazer frente a Israel, que também inclui o Hezbollah, os houtis do Iêmen e as milícias xiitas do Iraque —, que agora se vê seriamente enfraquecido.

A queda de Assad também mostra, de acordo com Farmanfarmaian, "uma fraqueza significativa na capacidade do Irã de influenciar os acontecimentos e também de defender seus aliados e seus próprios interesses".

Embora ainda não esteja claro "até que ponto eles foram realmente prejudicados pela guerra do Líbano e pelos ataques de Israel", afirma a pesquisadora, parece que estes dois eventos "enfraqueceram seriamente o Exército iraniano e reduziram seu alcance estratégico".

<><> Consequências para o Irã

A guerra civil na Síria começou depois que a violenta repressão do regime de Assad aos protestos pacíficos que eclodiram no país durante a Primavera Árabe, em 2011, colocou Damasco em uma situação difícil de sair.

As forças curdas, o Exército Livre da Síria (FSA, na sigla em inglês), apoiado pela Turquia, as Forças Democráticas da Síria (SDF, na sigla em inglês), apoiadas pelo Ocidente, os jihadistas da Al-Qaeda e do Estado Islâmico e dezenas de grupos insurgentes locais entraram em confronto entre si e com o Exército sírio ao longo dos últimos 13 anos.

Em meio a este caos, o Irã e o Hezbollah, assim como a Rússia, foram cruciais para sustentar o regime.

Mas, nos últimos anos, com a diminuição da intensidade dos combates, Teerã retirou grande parte de suas forças militares posicionadas na Síria, supondo que a situação era administrável, de acordo com Ray Takeyh, pesquisador de estudos do Oriente Médio no think tank americano Council on Foreign Relations (CFR).

Desde o assassinato do general iraniano Qasem Soleimani, um dos principais comandantes da Guarda Revolucionária, em um ataque dos EUA em janeiro de 2020, o Irã deixou a defesa de seus interesses na Síria nas mãos do Hezbollah, explica Takeyh, em uma análise publicada pelo think tank.

A velocidade com que os grupos insurgentes conseguiram avançar, em apenas uma semana, a partir da província de Idlib, no norte, e do sul, até a capital, deixou os iranianos perplexos.

O próprio ministro das Relações Exteriores do Irã, Abbas Araghchi, reconheceu em uma entrevista que, embora tenham recebido informações de que grupos rebeldes estavam planejando um levante no norte, "o que nos pegou desprevenidos foi, por um lado, a incapacidade do Exército sírio de fazer frente ao avanço e, por outro, a rapidez dos acontecimentos".

<><> Esgotamento com Assad

As declarações feitas nos últimos dias pelo alto escalão da república islâmica também sugerem um certo esgotamento por parte do regime de Teerã em relação a seu aliado agora defenestrado.

Araghachi disse na televisão que o motivo da queda de Bashar al-Assad foi a falta de diálogo com os manifestantes e a falta de esforço para chegar a uma solução política para fechar um acordo com a oposição, de acordo com o serviço de notícias persa da BBC.

Isso não deixa de ser paradoxal para um governo que foi acusado pelas Nações Unidas e por organizações humanitárias de reprimir os direitos humanos, o direito de manifestação e de prender centenas de opositores no Irã.

De acordo com o ministro das Relações Exteriores iraniano, Teerã, Ancara e Moscou haviam concordado, durante o chamado Processo de Astana (diálogo iniciado em 2017 pelos três aliados da Síria para encontrar uma solução diplomática para a guerra), em administrar o descontentamento popular sírio.

Mas a "inflexibilidade e lentidão" do governo de Assad em adotar mudanças e chegar a uma solução política levaram ao seu colapso, acrescentou Araghachi.

Assad havia se tornado "mais um fardo do que um aliado, o que significa que seu tempo havia se esgotado", admitiu Saeed Laylaz, um analista próximo ao governo iraniano, ao Financial Times. Continuar a defendê-lo não se justificava mais — e teria custos inaceitáveis, de acordo com a fonte.

Não é fácil quantificar o custo do apoio iraniano ao regime de Assad.

Os dois países estreitaram relações durante a guerra entre Irã e Iraque, na qual a Síria, diferentemente da maioria dos países árabes, ficou do lado do Estado persa.

Na época, Damasco ajudou o país a contornar as sanções internacionais ao canalizar por meio de seu território a venda de armas do bloco oriental para Teerã, conforme explica Ali Ramzanian, do serviço persa da BBC.

<><> Mais de US$ 30 bilhões

A ajuda militar foi enviada a partir de 2011, inicialmente sob o pretexto de combater o Estado Islâmico.

A mídia iraniana estima que esta ajuda esteja entre US$ 30 bilhões e US$ 50 bilhões, embora possa ser muito maior, de acordo com Ramzanian.

É muito improvável que este dinheiro, que os oponentes e críticos do governo dos aiatolás consideram uma afronta aos iranianos, seja recuperado.

O fato de a principal facção rebelde que liderou a investida contra Assad ser uma milícia islâmica que tem suas raízes na Al-Qaeda — embora tenha se desvinculado do grupo anos atrás — preocupa os países vizinhos da Síria, inclusive o Irã.

"Nenhum líder árabe, especialmente no Golfo, está muito confortável com esse desdobramento, e acho que os iranianos e os árabes estão bastante de acordo com isso", diz a professora de Cambridge.

Os governos árabes temem que a ascensão de um movimento islâmico na Síria possa dar asas a grupos fundamentalistas locais.

Por enquanto, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) assegurou que pretende colaborar com todos os grupos sírios, e garantiu a proteção das minorias.

"Mas, independentemente do que diga, é um grupo islâmico que tem opiniões muito fortes sobre os xiitas, o mesmo que aconteceu com o Talebã. Eles diziam que eram inclusivos e mais modernos, e veja o que aconteceu no Afeganistão. Portanto, há uma grande preocupação (no Irã) de que haja uma diferença entre o que eles dizem e o que vão fazer", observa Farmanfarmaian.

Como explica Kayvan Hosseini, do serviço persa da BBC, a maioria da população síria, 75%, é sunita, enquanto os xiitas, incluindo alauítas, ismaelitas e imamitas, representam apenas 10%.

"Embora o futuro da Síria ainda não esteja claro, o que está claro é que o Irã tem poucas chances de repetir os cenários do Líbano, do Iraque e até mesmo do Iêmen para ganhar influência e poder", avalia Hosseini.

<><> Que opções restam, então, ao Irã?

De acordo com Ray Takeyh, a situação atual oferece duas alternativas para o Irã: aumentar a dissuasão nuclear ou se abrir para negociações.

Teerã não possui armas nucleares, mas tem um programa nuclear e, de acordo com a Organização Internacional de Energia Atômica, acelerou o processo de enriquecimento de urânio a níveis preocupantes.

O Irã sempre alegou que seu programa nuclear se destina apenas a fins pacíficos.

"À medida que outros pilares da dissuasão desmoronam, aumenta a importância da arma definitiva", observa o especialista do CFR.

Neste contexto, "é provável que o Irã aceite ofertas de diplomacia americana e europeia, possivelmente até mesmo do novo governo Trump".

Para Farmanfarmaian, não está claro que Teerã vai estar aberto a negociar com as potências ocidentais, mas talvez com os países vizinhos.

"O Irã iniciou recentemente um processo de comunicação com seus vizinhos sauditas que tem sido gradual, mas que caminha em uma direção. E (a queda de Bashar al-Assad) vai reforçar isso", diz ela.

 

¨      Por que Israel lançou centenas de ataques contra a Síria após queda de Assad

Israel realizou centenas de ataques aéreos contra bases militares na Síria nos últimos dias, e também deslocou tropas para a "zona tampão" desmilitarizada nas Colinas de Golã, ampliando a quantidade de território sírio sob controle israelense.

O país diz que está tomando estas medidas para garantir a segurança de seus cidadãos, mas há quem diga que está aproveitando a oportunidade para enfraquecer um adversário de longa data.

<><> Que tipo de ataques aéreos Israel tem realizado?

O Observatório Sírio de Direitos Humanos (SOHR, na sigla em inglês), com sede no Reino Unido, afirma ter documentado mais de 310 ataques das Forças de Defesa de Israel (FDI) desde a queda do regime de Bashar al-Assad no domingo (8/12).

Os ataques supostamente tiveram como alvo instalações militares do Exército sírio desde em Aleppo, no norte, até em Damasco, no sul, incluindo armazéns de armas, depósitos de munição, aeroportos, bases navais e centros de pesquisa.

Rami Abdul Rahman, fundador do SOHR, disse que os ataques estão destruindo "todas as capacidades do Exército sírio", e afirmou que "terras sírias estão sendo violadas".

Israel argumenta que suas ações são para evitar que as armas caiam "nas mãos de extremistas", à medida que a Síria faz a transição para uma era pós-Assad.

Quais são as preocupações de Israel em relação às armas químicas?

Israel está preocupado com quem pode colocar as mãos no suposto arsenal de armas químicas de Bashar al-Assad.

Não se sabe onde ou quantas destas armas a Síria possui, mas acredita-se que o ex-presidente mantinha um arsenal delas.

Na segunda-feira (9/12), o órgão de vigilância química da Organização das Nações Unidas (ONU) alertou as autoridades na Síria para garantir que qualquer eventual estoque de armas químicas esteja em segurança.

Ake Sellstrom, ex-inspetor-chefe de armas da ONU na Síria, e agora professor de histologia na Universidade de Umea, na Suécia, afirma que Israel tem visado as instalações de armas químicas da Síria com seus ataques aéreos.

"O que Israel está fazendo é eliminar ativos", afirmou ele à BBC. "Podem ser pessoas, podem ser instalações ou podem ser equipamentos."

Sabe-se que as forças leais a Bashar al-Assad usaram gás sarin em um ataque a um subúrbio da capital síria, chamado Ghouta, em 2013, que teria matado mais de mil pessoas.

Eles também são acusados de usar armas químicas, como gás sarin e gás cloro, em outros ataques mais recentes.

Sellstrom diz que as forças rebeldes também podem ter estoques de armas químicas, uma vez que sabe-se que já as usaram antes contra seus inimigos na Síria.

"Assad tinha essas armas para marcar posição no conflito com Israel, mas nunca as usaria em primeira mão. Agora você tem um governo totalmente diferente."

"Israel está entrando para fazer a limpa... o que quer que eles tenham em termos de armas químicas".

<><> O que Israel está fazendo nas Colinas de Golã?

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, anunciou que suas tropas assumiram o controle da "zona tampão" (região neutra) desmilitarizada nas Colinas de Golã — ampliando a quantidade de território sírio que ocupa nesta região.

Ele disse que esta era uma "posição defensiva temporária até que um acordo adequado seja encontrado".

"Israel afirmou que quer evitar que qualquer ataque, como o de 7 de outubro de 2023, do Hamas, aconteça a partir da Síria", diz Gilbert Achcar, professor da Universidade SOAS, em Londres.

"Mas esta é uma oportunidade de avançar e impedir que outras forças se aproximem da fronteira da zona ocupada."

A tomada da "zona tampão" desmilitarizada por Israel foi fortemente condenada por meio de declarações de países árabes, com a medida sendo descrita como "uma ocupação do território sírio e uma violação flagrante do acordo de retirada de 1974" pelo Ministério das Relações Exteriores do Egito na segunda-feira.

Relatórios sírios afirmaram que os avanços israelenses haviam ultrapassado a "zona tampão" e chegado a 25 quilômetros de Damasco — mas fontes militares israelenses negaram.

As Forças de Defesa de Israel reconheceram pela primeira vez que suas tropas estão operando além da "zona tampão" desmilitarizada nas Colinas de Golã, mas seu porta-voz, Nadav Shoshani, disse que a incursão israelense não havia ido significativamente mais longe.

<><> O que são as Colinas de Golã?

As Colinas de Golã são um planalto rochoso no sudoeste da Síria, ocupado por Israel há mais de meio século.

Na Guerra dos Seis Dias, em 1967, a Síria bombardeou Israel a partir das alturas, mas Israel rapidamente rechaçou as forças sírias, e tomou cerca de 1.200 km² da região, que colocou sob controle militar.

A Síria tentou retomar as Colinas de Golã durante a Guerra do Yom Kippur, em 1973, mas fracassou.

Os dois países assinaram um armistício em 1974, e uma força de observadores da ONU está presente na linha de cessar-fogo desde 1974.

Mas Israel anexou a área em 1981, em uma ação que não foi reconhecida pela grande maioria da comunidade internacional.

A Síria disse que não vai fazer nenhum acordo de paz com Israel, a menos que o país se retire de toda a região das Colinas de Golã.

A maioria dos habitantes árabes sírios das Colinas de Golã fugiu durante a guerra de 1967.

Atualmente, há mais de 30 assentamentos israelenses na região de Golã, onde vivem cerca de 20 mil pessoas. Os israelenses começaram a construí-los quase imediatamente após o fim do conflito de 1967.

Os assentamentos são considerados ilegais no âmbito internacional, embora Israel conteste isso.

Os colonos vivem ao lado de cerca de 20 mil sírios, a maioria deles drusos, que não fugiram quando as Colinas de Golã foram capturadas.

<><> Os temores de segurança de Israel são justificados?

Netanyahu disse que a ocupação da "zona tampão" nas Colinas de Golã pelas FDI deve ser temporária, mas a retirada vai depender do comportamento do próximo governo da Síria.

"Se conseguirmos estabelecer relações de vizinhança e relações pacíficas com as novas forças que estão emergindo na Síria, esse é o nosso desejo", ele afirmou.

"Mas, se não conseguirmos, vamos fazer o que for preciso para defender o Estado de Israel e a fronteira de Israel."

"O que está passando pela cabeça dos israelenses é que pode haver incursões no Golã por forças de dentro da Síria e, para garantir que não haja essa possibilidade, eles se aprofundaram mais", explica o analista geopolítico H.A. Hellyer, do Royal United Services Institute (Rusi), think tank com sede em Londres

"No entanto, Israel ocupou anteriormente território nas Colinas de Golã como medida de segurança, e depois o fortificou. E pode fazer isso novamente."

O ministro das Relações Exteriores de Israel, Gideon Saar, disse que os ataques aéreos às bases militares sírias foram realizados exclusivamente para defender seus cidadãos.

"É por isso que atacamos sistemas de armas estratégicas, como, por exemplo, armas químicas ou mísseis e foguetes de longo alcance remanescentes, para que não caiam nas mãos de extremistas", ele acrescentou.

No entanto, Achcar observa: "As armas químicas não estão espalhadas na Síria. Elas estão apenas em dois ou três lugares. Mas com mais de 300 ataques aéreos, você está tentando tornar o país muito mais fraco."

Israel considerava Bashar al-Assad "o diabo que eles conheciam", ele acrescenta, mas agora o país não tem certeza do que vai acontecer a seguir.

"Eles esperam que a Síria seja dividida entre facções em guerra, como a Líbia, e temem que surja uma facção hostil a Israel."

"Eles querem evitar que uma facção como essa use as armas do Exército sírio contra eles."

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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