Paulo Nogueira Batista Jr:
Acordo Mercosul/União Europeia – um post mortem
Meus amigos, os brasileiros que procuram defender o
Brasil têm vida quase sempre difícil. Alcançamos, em geral, pouco ou nenhum
sucesso e raramente temos algo a comemorar. Uma razão é a tenebrosa “quinta
coluna”.
Não sei se o leitor conhece a origem dessa expressão.
Durante a Guerra Civil Espanhola, os republicanos diziam que pior do que as
quatro colunas do General Franco, que marchavam sobre Madrid, era a quinta
coluna franquista que operava dentro da capital. Pois bem, a nossa quinta
coluna faz sombra à madrilenha. É um numeroso exército de oportunistas e
vassalos de interesses estrangeiros. Dou meu testemunho: ao longo da vida
inteira, passei grande parte do tempo lutando contra esses quinta-colunistas.
Veja-se, por exemplo, o recém-concluído acordo entre o
Mercosul e a União Europeia. Foi recebido com certa empolgação no Brasil.
Celebraram, por um lado, os setores liberais e seus porta-vozes na mídia
tradicional. E, por outro, os defensores incondicionais do governo, muitos dos
quais pouco informados sobre o assunto. Os liberais querem expor a economia aos
ventos da concorrência europeia. Os demais defensores do acordo simplesmente
não admitem a hipótese de que o governo possa errar em questões fundamentais.
Não são da quinta coluna, claro, mas acabam colaborando com ela sem saber.
No final do ano passado e início deste, escrevi vários
artigos explicando por que este acordo, herdado do governo de Jair Bolsonaro,
era uma verdadeira fria para o Brasil (Ver, por exemplo, “O acordo com a União Europeia está morto?”). A conclusão não
poderia surpreender ninguém. Afinal, o que de positivo deixou Jair Bolsonaro?
O governo Lula obteve modificações em alguns aspectos
do acordo. Embora não sejam desprezíveis, não mudam a essência neoliberal do
acordo. É essa ideologia, dominante na época em que a negociação com os
europeus foi lançada há duas décadas, que estabelece a orientação do acordo.
O princípio da liberalização fundamenta as suas
principais partes– a eliminação de tarifas sobre importações, a proibição de
impostos sobre exportações e a abertura das compras governamentais a empresas
estrangeiras. O pressuposto central é que a liberalização é benéfica, tão
benéfica que vale a pena consagrá-la em acordo internacional, protegendo-a de
decisões nacionais.
Ressalte-se que o neoliberalismo foi abandonado nesse
meio tempo em quase toda parte, inclusive nos Estados Unidos e na Europa.
Encontrou, porém, uma sobrevida entre nós. Como dizia Millôr Fernandes, quando
ficam caquéticas, as ideologias vêm morar aqui no Brasil.
Uma curiosidade: o acordo com a União Europeia fica
aquém do que seria um acordo de livre comércio para bens e serviços. Mas vai
além disso em diversos outros campos, como por exemplo em compras
governamentais e na proibição de tributação sobre exportações de minerais
críticos.
·
Alterações no acordo
As alterações obtidas pelo governo Lula foram em três
áreas principais: (a) certa margem de manobra em compras governamentais; (b)
algumas exceções à proibição de taxar exportações de minerais críticos; e (c)
um pequeno alongamento do cronograma de desgravação tarifária no setor
automobilístico.
Um ponto essencial, leitor. O que se conseguiu foi
algum damage control (controle de prejuízos), e não
propriamente vantagens. Esse ponto nem sempre é compreendido. Explico
suscintamente.
Em compras governamentais, não temos hoje qualquer
restrição à sua utilização como forma de favorecer a produção e a geração de
empregos em território nacional. Temos a liberdade de definir margens de
preferência para produtores nacionais nas licitações públicas, favorecendo-os
relativamente a fornecedores estrangeiras. Pelo acordo com a União Europeia,
fica limitado o uso desse instrumento de política desenvolvimento econômico e
de política industrial.
O que o governo conseguiu foi apenas introduzir
exceções setoriais à liberalização. No que diz respeito a compras do Sistema
Único de Saúde, agricultura familiar e pequenas empresas, por exemplo,
conservou-se o direito de favorecer os produtores nacionais relativamente aos
do exterior. Ou seja, limitou-se o estrago, mas a liberalização foi preservada
no essencial.
No que diz respeito a minerais críticos, essenciais
para áreas estratégicas como economia digital e energia, foi definida uma
pequena lista de produtos sobre os quais o governo poderá estabelecer impostos
de exportação até um limite de 25%. Ora, hoje o governo pode tributar exportações
desses e outros produtos sem exceção e sem pedir licença a ninguém.
Isso pode ser importante para garantir o nosso acesso a
esses insumos e estimular que a sua elaboração seja feita em solo nacional, no
lugar de exportá-los em estado bruto. Como esses minerais são decisivos para a
produção em setores de vanguarda, preservar essa margem de manobra teria sido
essencial. Obteve-se a título de damage control uma pequena
lista sobre a qual impostos serão admissíveis até certo teto.
Quanto à eliminação de tarifas sobre bens industriais
pelo Mercosul, adiou-se a redução a zero desse imposto para alguns tipos de
veículos. No caso dos carros eletrificados, a eliminação das tarifas se dará em
18 anos. No caso de veículos a hidrogênio, a desgravação passa para 25 anos e
para os de nova tecnologia, para 30 anos.
Para os demais setores industriais, permanece o prazo
original de 15 anos. Depois desse período, a indústria brasileira, com as
exceções mencionadas, ficará exposta à concorrência desimpedida com a indústria
europeia, que conta com acesso a fontes de financiamento e economias de escala
muito mais vantajosas.
Na verdade, leitor, era impossível melhorar
suficientemente o acordo fechado no tempo de Jair Bolsonaro. Não era
recomendável aceitar ponto de partida tão desfavorável para a retomada dos
entendimentos com os europeus. Melhor teria sido simplesmente abandonar o
acordo, como fez recentemente a Austrália em negociação semelhante com a União
Europeia. E explorar outros caminhos para incrementar as relações econômicas
com os europeus de forma equilibrada e mutuamente benéfica.
·
O que ganhamos?
Repito a pergunta que fiz nos meus artigos anteriores.
O que exatamente ganhamos com esse acordo, mesmo modificado? Não estou falando
em damage control, mas em vantagens concretas. Essa pergunta
nunca foi respondida.
Ganhamos acesso adicional aos mercados europeus para
produtos industriais? Praticamente nenhum. As tarifas europeias sobre
importações industriais já são muito baixas.
Ganhamos acesso adicional para a nossa agropecuária?
Pouco. O comércio desses bens em que o Mercosul é amplamente competitivo
permanecerá regulado por cotas restritivas. Não é um acordo de livre comércio,
portanto.
Nas áreas em que somos competitivos, prevalece o
protecionismo. Só haverá livre comércio para os bens industriais em que a
Alemanha e outros países têm largas vantagens competitivas. Não por acaso, a
Alemanha se empenha pelo acordo. Depois de um período de transição, as tarifas
de importação serão zeradas. Vamos assim exportar empregos industriais para a
Alemanha. As montadoras estrangeiras, várias delas europeias, se inclinarão a
produzir menos ou fechar fábricas no Brasil. Resultado: uma provável
substituição de produção local por importações.
Bovinamente, os nossos representantes aceitaram
negociar dentro desse esquema assimétrico…
Outra área que fica vulnerável com esse acordo é a
agricultura familiar, setor para o qual não se prevê salvaguardas no processo
de abertura. Não por acaso, o MST se pronunciou várias vezes contra esse
acordo. O Ministério de Desenvolvimento Agrário, entretanto, parece ter ficado
à margem do assunto.
·
Um rebanho bem comportado
Um aspecto curioso é que, mesmo sendo poucos os ganhos
para a agropecuária do Mercosul, os agricultores europeus resistem ferozmente.
A França se posiciona, por isso, abertamente contra a ratificação do acordo,
assim como outros países com setores agrícolas vulneráveis à concorrência com o
Mercosul.
Argumenta-se que o acordo não é tão ruim assim. Prova
disso seria que a CNI, a Fiesp e outras entidades industriais são favoráveis a
ele. Argumento falacioso. É preciso ter em conta o que realmente são essas
entidades. Depois de décadas de desindustrialização, elas são industriais
apenas no nome. As suas lideranças, em sua maior parte, não são empresários da
indústria, mas burocratas de federações ou confederações. Ou então importadores
e montadores, interessados em remoção de barreiras. Ou, ainda, filiais de
empresas multinacionais, inclusive europeias, sem autonomia de decisão em
relação a suas matrizes.
A verdade é que a burguesia industrial brasileira foi
trucidada por décadas de políticas econômicas neoliberais, desde Fernando
Collor e Fernando Henrique Cardoso. Foi-se o tempo em que havia um Antônio
Ermírio de Moraes, um Cláudio Bardella, um Paulo Cunha, um José Alencar. Agora
temos luminares como Paulo Skaf ou Robson de Andrade. Não sobrou quase ninguém.
Com a eliminação de tarifas sobre produtos industriais,
inaugura-se provavelmente uma nova fase da desindustrialização da economia
brasileira. O governo enche a boca para falar em “neoindustrialização”. Mais
realista seria falar em neodesindustrialização.
Uma pequena sugestão: porque não criar uma medalha de
mérito Visconde de Cairu, aquele discípulo de Adam Smith que, no início do
século 19, pregava a abertura irrestrita da economia brasileira? Os
negociadores desse acordo seriam os primeiros candidatos a receber essa
honraria.
Realmente, como dizia Nelson Rodrigues,
subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos.
·
Um acordo natimorto?
Termino o artigo com uma nota (envergonhada) de
esperança. O que pode nos salvar dessa arapuca são alguns países europeus,
notadamente a França. Ficamos nas mãos dos outros, como se colônias ainda
fôssemos.
O melhor que ainda pode acontecer é a França montar
uma coligação suficientemente forte, em termos de número de países e de
população, capaz de constituir uma “minoria de bloqueio”. Pelas regras
europeias, se houver oposição de pelo menos quatro países com pelo menos 35% da
população do bloco, o acordo não passa. Mesmo que essa minoria não seja
alcançada no âmbito dos poderes executivos, resta saber se os parlamentos
europeus irão aprovar.
Ursula von der Leyen e Lula podem ter celebrado um
acordo natimorto. O presidente Lula chegou a declarar, com notável desapego por
ganhos concretos, que não era “tanto pela questão do dinheiro” que ele buscava
finalizar o acordo, mas sim porque era preciso encerrar negociações que se
arrastavam há mais de 20 anos…
De um diplomata que participou ativamente dessas
negociações cheguei a ouvir que, embora pouco vantajoso para nós, o
entendimento com os europeus teria o valor geopolítico para o Brasil de fazer
um contraponto à China. É um mistério para mim que um acordo desvantajoso, que
praticamente não abre mercados adicionais para as nossas exportações, possa
servir como contrapeso à China, nosso maior parceiro comercial por larga
margem. Não se fazem mais diplomatas como antigamente.
Essa mistura de ignorância, servilismo e desorientação
estratégica nos levou a esse beco. Agora é torcer, passivamente, para que a
França e outros países da União Europeia inviabilizem esse acordo danoso.
Fonte: A Terra é
Redonda
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