sexta-feira, 14 de junho de 2024

Wagner Sousa: Para entender o declínio da França

A Segunda Guerra Mundial foi, pode-se dizer, o estertor da primazia europeia nos assuntos mundiais. Os Estados Unidos já eram a maior economia do mundo desde o fim do século XIX, mas, embora crescentemente influentes não tinham até então capacidade para se firmar como poder hegemônico global. A destruição da Europa e de outra grande potência militarista e expansiva da época, o Japão, dá aos EUA a oportunidade de afirmar a sua hegemonia mundial, em contraposição à União Soviética, país que tinha em seu cerne outra velha potência imperial, a Rússia.

No pós-guerra, os impérios coloniais europeus por todo o mundo ruíram, em sua maior parte, e a maioria das colônias se transformou em países independentes. Os movimentos independentistas ganharam força no “Terceiro Mundo”, com a luta legítima de seus povos pela autodeterminação, e também tiveram apoio da nova potência hegemônica, os EUA, que tinham interesse em limitar a influência europeia no mundo como parte do processo da afirmação de sua própria influência.

A Europa Ocidental, no período da guerra fria, com a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aliança militar liderada e em sua maior parte mantida pelos EUA, inicia a sua integração, com a Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço (CECA), em 1951, sob tutela geoestratégica norte-americana, o que segue sendo a realidade até os dias atuais. A França, neste cenário, dá início a um processo de pacificação com a então Alemanha Ocidental, que se materializaria no processo europeu de integração, que, com o decorrer dos anos, ganharia complexidade. Para a Alemanha, sob a liderança do conservador Konrad Adenauer era a maneira de se integrar ao Ocidente e ter alguma “margem de manobra” para agir na política externa. E para a França, após o trauma de duas guerras mundiais, a oportunidade para a paz regional e exercício de liderança política, no que passou a ter destaque o seu poderio nuclear, ausente na Alemanha. A França detém até hoje a vantagem da influência em sua antiga zona colonial, em especial na África, e do fato do francês ser uma língua falada em escala global.

A descolonização no pós-guerra, a crescente integração da França na Europa e o progressivo aumento da influência alemã, a adoção de políticas econômicas neoliberais e, já no século XXI, a afirmação de novas potências na cena global com destaque para China e Índia e retorno de uma velha potência, a Rússia, são os fatores que, em síntese, podem explicar o declínio relativo do poder francês tanto em nível regional quanto global.

No que diz respeito à descolonização, a independência, portanto, da maior parte das áreas diretamente subordinadas a Paris, em especial na África, mas também na Ásia, assim como para outros poderes europeus, como o Reino Unido, representou perda de poder e prestígio. Porém isto não significa que os franceses (e outros europeus) não tenham mantido, a despeito desta importante mudança, bastante influência, em especial na África. Com isso, têm conseguido manter relações privilegiadas. Todavia, tem havido questionamentos a este “neocolonialismo” francês, como no caso do Níger, ex-colônia da qual a França importa urânio a preços baixos. A percepção destas relações injustas e ação, na região, de outras potências, como Rússia e China tem levado a França a perder espaço político no continente.

A integração europeia é o grande feito político francês do século XX. Em um continente até então envolto em guerras contínuas há pelo menos um milênio, a iniciativa inicial já mencionada da Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço (CECA), assinada por França, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Itália e que evoluiu para a decisão da criação da União Europeia e da moeda comum, o euro, em 1992, com o Tratado de Maastricht, garantiu relações pacíficas e crescente cooperação e articulação política.

Contudo, mesmo no cenário regional, também se vê a perda de peso relativo da França. A esfera monetária europeia é um exemplo. O processo de coordenação cambial que levou ao euro, já nos anos 1990, teve o marco alemão como moeda referência em todo o período. Tornou-se referência inclusive do próprio euro, uma espécie de moeda alemã europeizada. Os Estados Nacionais europeus perderam margem de manobra com a subordinação à rígida política anti-inflacionista do Bundesbank, que foi copiada pelo Banco Central Europeu.

Após um início de políticas nacionalistas e estatizantes, o governo francês do socialista François Miterrand “capitulou” em 1984, com a adoção da política do franco forte e a proposta de aprofundar a integração europeia. O Ato Único Europeu, em 1986, pactuou as medidas liberalizantes de preparação para o Mercado Único, que se constituiu em 1992. A reunificação alemã, em 1990, tem como contrapartida exigida pela França a criação da moeda europeia, o euro. A França ganha assento no Banco Central Europeu, mas se compromete com política monetária de rígido controle inflacionário e austeridade fiscal. Não há, até os dias atuais, políticas europeias fiscais, na escala suficiente, para “compensar” uma moeda europeia que serve melhor às economias mais desenvolvidas do norte da Europa. A integração europeia como mola propulsora de políticas neoliberais favoreceu amplamente a indústria alemã em detrimento dos europeus do sul, menos desenvolvidos, e também prejudicou a economia da França. A partir da adoção do euro, consolidou-se a hegemonia econômica alemã na Europa.

Entre os anos 1990, no pós-guerra fria, e a década de 2010, o mundo teve o “momento unipolar” dos EUA. Mas o cenário mudou consideravelmente. A guerra entre Rússia e Ucrânia deu um novo “sentido existencial” à OTAN e reafirmou a liderança norte-americana no continente. A Europa se volta aos preparativos para a guerra e a Alemanha se coloca, no nível regional, como o país com capacidade de liderar este esforço de rearmamento. A China passou a ser percebida pelos europeus não mais como mercado e investidor, mas como concorrente nas áreas de maior conteúdo tecnológico e comprador indesejado de empresas europeias importantes e estratégicas, além de ameaça política, pelo seu sistema de governo autoritário.

E nesta conjuntura a França se vê internamente com grande insatisfação social pelo empobrecimento de grande parte da população, pelo fracasso das políticas relativas aos imigrantes e seus descendentes, falta de perspectivas aos jovens e crescimento da xenofobia e da extrema direita. O país tem menos influência nos assuntos globais e também europeus. A “solução” futura para a crise pode ser um governo de extrema direita ultranacionalista, que eventualmente pode, inclusive, provocar uma ruptura na União Europeia.

É a dinâmica do declínio relativo da França que deve seguir, e, provavelmente, se aprofundar, a despeito das bravatas do presidente Emmanuel Macron sobre o envio de soldados da OTAN

para defender a Ucrânia e das escolhas políticas que sua população fizer no futuro.

 

¨      A França está realmente em decadência?

Os Estados Unidos e outros países acusaram a França de arrogância tipicamente gaulesa nos últimos meses por causa da posição do governo de Jacques Chirac em relação à guerra do Iraque. Mas, na verdade, os próprios franceses parecem estar sofrendo de aguda falta de autoconfiança.

Essa, pelo menos, é a mensagem em três dos livros mais vendidos que foram publicados neste outono por intelectuais franceses, que têm provocado paroximos de raiva no governo por causa de seus prognósticos sombrios de que economica e politicamente a França está em declínio terminal.

Não suspeitava que os franceses fossem sombrios. Muito pelo contrário, na verdade. Parece haver muito sobre o que ser alegre na França, da comida e do vinho, ao transporte público que é eficiente.

Mas os três livros contam uma história diferente. Só os títulos já avisam que algo não está bem: França em Colapso, A Arrogância da França, Adeus a uma França em Extinção.

<><> Rive Gauche

Por isso, é um alívio quando conheço o autor do último desses títulos pessimistas, Jean-Marie Rouart, e encontro um homem alegre, nos seus mais de 50 e com um distinto brilho nos olhos.

Apesar de ser integrante da renomada Academie Française, ele é afável e receptivo. Ele abre a porta de seu apartamento que corresponde às minhas expectativas do que seja viver na Rive Gauche (a margem esquerda do rio Sena).

Dentro, as paredes são quase invisíveis entre uma confusão de quadros coloridos. As prateleiras de livros estão tão cheias, que adquiriram uma precária vida própria.

Edições volumosas de Chateaubriand competem com as de Voltaire para ver quem pode se sustentar mais vertiginosamente na beirada.

<><> Morte lenta

Ainda assim, o seu livro é claramente uma elegia, uma história semibiográfica de amor e perda. O amor por um país e a perda de uma França que valorizava a honra, que se orgulhava da sua própria civilização.

Jean-Marie Rouart pinta o seu próprio quadro de um país, cuja morte lenta ele lamenta. Por que, pergunto, tantos escritores na França parecem acreditar que o seu país está perdido?

Não acabou de resistir aos Estados Unidos em relação ao Iraque, provando que a França ainda pode atuar no palco mundial? Ele sacode a cabeça tristemente. Os políticos de hoje, diz ele, não são De Gaulle. Ele tinha fogo, paixão, poesia.

É por isso que ele era amado. De Gaulle fez o país orgulhoso de ser francês, depois de um período de extremo envergonhamento. Os líderes de hoje, por dedução, são pálidas sombras, dizendo nada, meros atores substitutos no palco mundial.

"Nós estamos até mesmo envergonhados de nossa história", diz ele. "Nunca admitiremos, mas para nós, história é Vichy, derrota".

Mas e no momento, pergunto. A França ainda tem uma cultura de que se orgulhar e, apesar dos atuais problemas econômicos, tem uma das mais altas taxas de produtividade da Europa.

Outro dar de ombros gaulês. A globalização, diz ele, passou e deixou a França para trás. "O que você precisa entender é que para a Grã-Bretanha, para os Estados Unidos, a globalização é fácil, é natural."

"Materialismo e mentalidade comercial não são motivos de vergonha nas suas culturas protestantes. Mas para nós, dinheiro é uma coisa suja", diz ele.

"Somos jacobinos, católicos, valorizamos a vida da mente. Somos um país que ainda quer falar para o mundo, mas temos que achar outra linguagem."

<><> Violência e desemprego

E, de acordo com muitos dos companheiros intelectuais de Rouart, esse não é o único problema. Por que ouvir um país que tem tantos problemas próprios? Com desemprego tão elevado – 10% da força de trabalho – e violência nos subúrbios?

Outro autor tem uma visão ainda mais apocalíptica, de uma França despedaçada pela tensão racial, com apoio elevado e crescente à extrema direita, graças ao desemprego – o qual, ele alega, o governo parece incapaz de controlar.

Nicolas Bavarez, economista e escritor de direita, autor de La France qui Tombe (França em Colapso, em tradução livre), é o autor que mais irrita o governo.

Como integrante da direita, era esperado que ele estivesse do mesmo lado, mas fez um resumo vigoroso dos fracassos atuais da França – e não recebeu agradecimentos por isso.

"Temos uma situação muito difícil na França hoje, declínio econômico e político real. E o problema é que não há verdadeiro projeto político para lidar com esses governos nem da oposição e nem do governo, e então, isso cria extremismo político e violência social", diz ele. "Esse é o ciclo que precisamos quebrar na França."

Mas ele admite que não será fácil.

"A sociedade francesa e a economia francesa estão bloqueadas e não vamos nos beneficiar da recuperação dos Estados Unidos por essa razão. Temos que nos dar conta que ninguém vai reformar a França, a não ser os franceses", diz ele.

"Não existe a Providência externa para nos salvar, nem a recuperação da Europa e nem a dos Estados Unidos. Cabe a nós agir."

<><> Problema intelectual

O governo francês, no entanto, pede licença para discordar. Essa efusão de desespero sobre o declínio da França neste outono atingiu o âmago do governo.

Nos jornais, o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin contra-atacou.

O problema, disse ele, não é a França, mas os seus intelectuais, sentados nas alturas do Olimpo, olhando para baixo e condenando a sociedade francesa.

"Eles nunca falam de uma França contente e próspera", reclamou o primeiro-ministro.

"Eles são como uma rolha na garrafa de champanhe julgando o vinho. A rolha tem que sair para que possamos provar o champanhe".

A mais jovem integrante do UMP (União por um Movimento Popular), partido do governo, Nathalie Kosciusko-Morizet, concorda com essa comparação maravilhosamente francesa.

"Acho que é uma tradição muito antiga na comunidade intelectual francesa acreditar que o passado era melhor do que o presente", ela diz, quando nos encontramos em um café da Rive Droite (margem direita do Sena).

"Isso não é verdade. É claro que existem ciclos históricos e o mundo está se movendo muito rapidamente. A globalização e todas essas mudanças perturbam muitos na sociedade, não apenas os intelectuais.

"Mas eu acredito firmemente que não por que ser pessimista."

Olhando à volta a riqueza que ainda existe em muitas partes da França, especialmente na capital, com o conforto de um bom cálice de Beaujolais no café, é difícil discordar.

 

Fonte: Outras Palavras/BBC News Brasil

 

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