Wagner Sousa: Para
entender o declínio da França
A
Segunda Guerra Mundial foi, pode-se dizer, o estertor da primazia europeia nos
assuntos mundiais. Os Estados Unidos já eram a maior economia do mundo desde o
fim do século XIX, mas, embora crescentemente influentes não tinham até então
capacidade para se firmar como poder hegemônico global. A destruição da Europa
e de outra grande potência militarista e expansiva da época, o Japão, dá aos
EUA a oportunidade de afirmar a sua hegemonia mundial, em contraposição à União
Soviética, país que tinha em seu cerne outra velha potência imperial, a Rússia.
No
pós-guerra, os impérios coloniais europeus por todo o mundo ruíram, em sua
maior parte, e a maioria das colônias se transformou em países independentes.
Os movimentos independentistas ganharam força no “Terceiro Mundo”, com a luta
legítima de seus povos pela autodeterminação, e também tiveram apoio da nova
potência hegemônica, os EUA, que tinham interesse em limitar a influência
europeia no mundo como parte do processo da afirmação de sua própria
influência.
A
Europa Ocidental, no período da guerra fria, com a criação da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aliança militar liderada e em sua maior
parte mantida pelos EUA, inicia a sua integração, com a Comunidade Europeia
para o Carvão e o Aço (CECA), em 1951, sob tutela geoestratégica
norte-americana, o que segue sendo a realidade até os dias atuais. A França,
neste cenário, dá início a um processo de pacificação com a então Alemanha
Ocidental, que se materializaria no processo europeu de integração, que, com o
decorrer dos anos, ganharia complexidade. Para a Alemanha, sob a liderança do
conservador Konrad Adenauer era a maneira de se integrar ao Ocidente e ter
alguma “margem de manobra” para agir na política externa. E para a França, após
o trauma de duas guerras mundiais, a oportunidade para a paz regional e
exercício de liderança política, no que passou a ter destaque o seu poderio
nuclear, ausente na Alemanha. A França detém até hoje a vantagem da influência
em sua antiga zona colonial, em especial na África, e do fato do francês ser
uma língua falada em escala global.
A
descolonização no pós-guerra, a crescente integração da França na Europa e o
progressivo aumento da influência alemã, a adoção de políticas econômicas
neoliberais e, já no século XXI, a afirmação de novas potências na cena global
com destaque para China e Índia e retorno de uma velha potência, a Rússia, são
os fatores que, em síntese, podem explicar o declínio relativo do poder francês
tanto em nível regional quanto global.
No
que diz respeito à descolonização, a independência, portanto, da maior parte
das áreas diretamente subordinadas a Paris, em especial na África, mas também
na Ásia, assim como para outros poderes europeus, como o Reino Unido,
representou perda de poder e prestígio. Porém isto não significa que os
franceses (e outros europeus) não tenham mantido, a despeito desta importante
mudança, bastante influência, em especial na África. Com isso, têm conseguido
manter relações privilegiadas. Todavia, tem havido questionamentos a este
“neocolonialismo” francês, como no caso do Níger, ex-colônia da qual a França
importa urânio a preços baixos. A percepção destas relações injustas e ação, na
região, de outras potências, como Rússia e China tem levado a França a perder espaço
político no continente.
A
integração europeia é o grande feito político francês do século XX. Em um
continente até então envolto em guerras contínuas há pelo menos um milênio, a
iniciativa inicial já mencionada da Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço
(CECA), assinada por França, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e
Itália e que evoluiu para a decisão da criação da União Europeia e da moeda
comum, o euro, em 1992, com o Tratado de Maastricht, garantiu relações
pacíficas e crescente cooperação e articulação política.
Contudo,
mesmo no cenário regional, também se vê a perda de peso relativo da França. A
esfera monetária europeia é um exemplo. O processo de coordenação cambial que
levou ao euro, já nos anos 1990, teve o marco alemão como moeda referência em
todo o período. Tornou-se referência inclusive do próprio euro, uma espécie de
moeda alemã europeizada. Os Estados Nacionais europeus perderam margem de
manobra com a subordinação à rígida política anti-inflacionista do Bundesbank,
que foi copiada pelo Banco Central Europeu.
Após
um início de políticas nacionalistas e estatizantes, o governo francês do
socialista François Miterrand “capitulou” em 1984, com a adoção da política do
franco forte e a proposta de aprofundar a integração europeia. O Ato Único
Europeu, em 1986, pactuou as medidas liberalizantes de preparação para o
Mercado Único, que se constituiu em 1992. A reunificação alemã, em 1990, tem
como contrapartida exigida pela França a criação da moeda europeia, o euro. A
França ganha assento no Banco Central Europeu, mas se compromete com política
monetária de rígido controle inflacionário e austeridade fiscal. Não há, até os
dias atuais, políticas europeias fiscais, na escala suficiente, para
“compensar” uma moeda europeia que serve melhor às economias mais desenvolvidas
do norte da Europa. A integração europeia como mola propulsora de políticas
neoliberais favoreceu amplamente a indústria alemã em detrimento dos europeus
do sul, menos desenvolvidos, e também prejudicou a economia da França. A partir
da adoção do euro, consolidou-se a hegemonia econômica alemã na Europa.
Entre
os anos 1990, no pós-guerra fria, e a década de 2010, o mundo teve o “momento
unipolar” dos EUA. Mas o cenário mudou consideravelmente. A guerra entre Rússia
e Ucrânia deu um novo “sentido existencial” à OTAN e reafirmou a liderança
norte-americana no continente. A Europa se volta aos preparativos para a guerra
e a Alemanha se coloca, no nível regional, como o país com capacidade de
liderar este esforço de rearmamento. A China passou a ser percebida pelos
europeus não mais como mercado e investidor, mas como concorrente nas áreas de
maior conteúdo tecnológico e comprador indesejado de empresas europeias
importantes e estratégicas, além de ameaça política, pelo seu sistema de
governo autoritário.
E
nesta conjuntura a França se vê internamente com grande insatisfação social
pelo empobrecimento de grande parte da população, pelo fracasso das políticas
relativas aos imigrantes e seus descendentes, falta de perspectivas aos jovens
e crescimento da xenofobia e da extrema direita. O país tem menos influência
nos assuntos globais e também europeus. A “solução” futura para a crise pode
ser um governo de extrema direita ultranacionalista, que eventualmente pode,
inclusive, provocar uma ruptura na União Europeia.
É a
dinâmica do declínio relativo da França que deve seguir, e, provavelmente, se
aprofundar, a despeito das bravatas do presidente Emmanuel Macron sobre o envio
de soldados da OTAN
para
defender a Ucrânia e das escolhas políticas que sua população fizer no futuro.
¨ A França está realmente em decadência?
Os
Estados Unidos e outros países acusaram a França de arrogância tipicamente
gaulesa nos últimos meses por causa da posição do governo de Jacques Chirac em
relação à guerra do Iraque. Mas, na verdade, os próprios franceses parecem
estar sofrendo de aguda falta de autoconfiança.
Essa,
pelo menos, é a mensagem em três dos livros mais vendidos que foram publicados
neste outono por intelectuais franceses, que têm provocado paroximos de raiva
no governo por causa de seus prognósticos sombrios de que economica e
politicamente a França está em declínio terminal.
Não
suspeitava que os franceses fossem sombrios. Muito pelo contrário, na verdade.
Parece haver muito sobre o que ser alegre na França, da comida e do vinho, ao
transporte público que é eficiente.
Mas
os três livros contam uma história diferente. Só os títulos já avisam que algo
não está bem: França em Colapso, A Arrogância da França, Adeus a uma França em
Extinção.
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Rive Gauche
Por
isso, é um alívio quando conheço o autor do último desses títulos pessimistas,
Jean-Marie Rouart, e encontro um homem alegre, nos seus mais de 50 e com um
distinto brilho nos olhos.
Apesar
de ser integrante da renomada Academie Française, ele é afável e receptivo. Ele
abre a porta de seu apartamento que corresponde às minhas expectativas do que
seja viver na Rive Gauche (a margem esquerda do rio Sena).
Dentro,
as paredes são quase invisíveis entre uma confusão de quadros coloridos. As
prateleiras de livros estão tão cheias, que adquiriram uma precária vida
própria.
Edições
volumosas de Chateaubriand competem com as de Voltaire para ver quem pode se
sustentar mais vertiginosamente na beirada.
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Morte lenta
Ainda
assim, o seu livro é claramente uma elegia, uma história semibiográfica de amor
e perda. O amor por um país e a perda de uma França que valorizava a honra, que
se orgulhava da sua própria civilização.
Jean-Marie
Rouart pinta o seu próprio quadro de um país, cuja morte lenta ele lamenta. Por
que, pergunto, tantos escritores na França parecem acreditar que o seu país
está perdido?
Não
acabou de resistir aos Estados Unidos em relação ao Iraque, provando que a
França ainda pode atuar no palco mundial? Ele sacode a cabeça tristemente. Os
políticos de hoje, diz ele, não são De Gaulle. Ele tinha fogo, paixão, poesia.
É
por isso que ele era amado. De Gaulle fez o país orgulhoso de ser francês,
depois de um período de extremo envergonhamento. Os líderes de hoje, por
dedução, são pálidas sombras, dizendo nada, meros atores substitutos no palco
mundial.
"Nós
estamos até mesmo envergonhados de nossa história", diz ele. "Nunca
admitiremos, mas para nós, história é Vichy, derrota".
Mas
e no momento, pergunto. A França ainda tem uma cultura de que se orgulhar e,
apesar dos atuais problemas econômicos, tem uma das mais altas taxas de
produtividade da Europa.
Outro
dar de ombros gaulês. A globalização, diz ele, passou e deixou a França para
trás. "O que você precisa entender é que para a Grã-Bretanha, para os
Estados Unidos, a globalização é fácil, é natural."
"Materialismo
e mentalidade comercial não são motivos de vergonha nas suas culturas
protestantes. Mas para nós, dinheiro é uma coisa suja", diz ele.
"Somos
jacobinos, católicos, valorizamos a vida da mente. Somos um país que ainda quer
falar para o mundo, mas temos que achar outra linguagem."
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Violência e desemprego
E,
de acordo com muitos dos companheiros intelectuais de Rouart, esse não é o
único problema. Por que ouvir um país que tem tantos problemas próprios? Com
desemprego tão elevado – 10% da força de trabalho – e violência nos subúrbios?
Outro
autor tem uma visão ainda mais apocalíptica, de uma França despedaçada pela
tensão racial, com apoio elevado e crescente à extrema direita, graças ao
desemprego – o qual, ele alega, o governo parece incapaz de controlar.
Nicolas
Bavarez, economista e escritor de direita, autor de La France qui Tombe (França
em Colapso, em tradução livre), é o autor que mais irrita o governo.
Como
integrante da direita, era esperado que ele estivesse do mesmo lado, mas fez um
resumo vigoroso dos fracassos atuais da França – e não recebeu agradecimentos
por isso.
"Temos
uma situação muito difícil na França hoje, declínio econômico e político real.
E o problema é que não há verdadeiro projeto político para lidar com esses
governos nem da oposição e nem do governo, e então, isso cria extremismo
político e violência social", diz ele. "Esse é o ciclo que precisamos
quebrar na França."
Mas
ele admite que não será fácil.
"A
sociedade francesa e a economia francesa estão bloqueadas e não vamos nos
beneficiar da recuperação dos Estados Unidos por essa razão. Temos que nos dar
conta que ninguém vai reformar a França, a não ser os franceses", diz ele.
"Não
existe a Providência externa para nos salvar, nem a recuperação da Europa e nem
a dos Estados Unidos. Cabe a nós agir."
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Problema intelectual
O
governo francês, no entanto, pede licença para discordar. Essa efusão de
desespero sobre o declínio da França neste outono atingiu o âmago do governo.
Nos
jornais, o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin contra-atacou.
O
problema, disse ele, não é a França, mas os seus intelectuais, sentados nas
alturas do Olimpo, olhando para baixo e condenando a sociedade francesa.
"Eles
nunca falam de uma França contente e próspera", reclamou o
primeiro-ministro.
"Eles
são como uma rolha na garrafa de champanhe julgando o vinho. A rolha tem que
sair para que possamos provar o champanhe".
A
mais jovem integrante do UMP (União por um Movimento Popular), partido do
governo, Nathalie Kosciusko-Morizet, concorda com essa comparação
maravilhosamente francesa.
"Acho
que é uma tradição muito antiga na comunidade intelectual francesa acreditar
que o passado era melhor do que o presente", ela diz, quando nos
encontramos em um café da Rive Droite (margem direita do Sena).
"Isso
não é verdade. É claro que existem ciclos históricos e o mundo está se movendo
muito rapidamente. A globalização e todas essas mudanças perturbam muitos na
sociedade, não apenas os intelectuais.
"Mas
eu acredito firmemente que não por que ser pessimista."
Olhando
à volta a riqueza que ainda existe em muitas partes da França, especialmente na
capital, com o conforto de um bom cálice de Beaujolais no café, é difícil
discordar.
Fonte:
Outras Palavras/BBC News Brasil
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