Talibã no
Afeganistão: aproximação com Rússia e Ásia Central é chave para a estabilidade
regional?
Depois
de 20 anos, as tropas dos Estados Unidos deixaram o Afeganistão ao longo de
agosto de 2021. Ao país da Ásia Central, a ocupação norte-americana resultou em
caos, incertezas e instabilidade, o que levou o grupo Talibã ao poder. Mas o
cenário sombrio na região começa a dar espaço a uma luz no fim do túnel com
mudanças na configuração local.
Em
2001, em meio à guerra contra o terror iniciada após os ataques do 11 de
Setembro em Nova York, era iniciada a ocupação militar norte-americana no
Afeganistão. À época, o objetivo principal do governo do então presidente
George W. Bush era localizar o fundador da Al-Qaeda e responsável por
orquestrar o atentado contra as Torres Gêmeas, Osama Bin Laden, que foi
acolhido pelo grupo Talibã — organização sob sanções da Organização das Nações
Unidas (ONU) por atividade terrorista. Mas a operação atravessou décadas e
perdurou até 2021, em uma tumultuada saída em 30 de agosto, quando a última
aeronave do país deixava o aeroporto de Cabul, e que ressuscitou o controle do
Talibã sobre a região.
Em
meio às incertezas e aos caos que tomavam conta do Afeganistão, começava um
novo governo para o grupo que esteve à frente do país entre 1996 e 2001. Após
quase três anos, mudanças geopolíticas na Ásia Central começam a sinalizar um
caminho de estabilidade para a região: o reconhecimento cada vez mais próximo
do Talibã como governo legítimo pelo Cazaquistão, um dos principais atores
locais. Além disso, foi o primeiro país do mundo a retirar o grupo da lista de
organizações terroristas.
Na
última semana, como resultado do estabelecimento de relações diplomáticas
oficiais com a Rússia iniciado em 2022, o governo talibã enviou uma delegação
ao Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo (SPIEF, na sigla em
inglês), mais um passo rumo às mudanças positivas no difícil xadrez político da
região.
O
professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fernando Brancoli avaliou em
entrevista à Sputnik Brasil que o atual panorama tem como centralidade garantir
estabilidade nas relações comerciais e econômicas da Ásia Central, o que também
pode gerar efeitos políticos e sociais.
"As
ações recentes do Cazaquistão, como a acreditação desses enviados do Talibã e a
remoção na lista de grupos terroristas, são significativas porque sinalizam a
mudança nas relações diplomáticas regionais […]. No que diz respeito à Rússia,
há até discussões sobre a remoção do grupo da lista de organizações
extremistas, o que também reflete mudanças pragmáticas na política de Moscou.
Essas modificações são impulsionadas por questões econômicas e pela necessidade
russa de estabilizar a região. No caso de reconhecer o Talibã, pode facilitar
as relações entre Afeganistão e Rússia, além dos países do entorno, gerando
estabilidade política, que é crucial", resume o especialista.
Além
disso, o professor avalia que a participação afegã no SPIEF reforça os laços
econômicos do país com as demais nações da Ásia Central e, com isso, ajuda na
recuperação econômica de Cabul.
"Isso
também sugere uma mudança para a cooperação regional, potencialmente reduzindo
a influência ocidental, que ainda considera o Talibã um grupo terrorista. Há o
aumento do papel de países como Rússia e China para questões de segurança e
econômicas na região", pontuou.
Brancoli
acrescenta que, frente ao histórico radical do grupo e de abrigar espaços
extremistas que podem trazer diversos riscos, a normalização das relações
diplomáticas do Afeganistão com outras nações ajuda a equilibrar o
"engajamento regional com medidas de segurança rigorosas para, de alguma
maneira, mitigar ameaças".
·
Como é a vida no Afeganistão hoje?
A
volta do Talibã ao poder aconteceu em meio ao crescimento da miséria no
Afeganistão, que conta com uma população de 41 milhões de pessoas. Desse total,
conforme a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 34 milhões está abaixo
da linha da pobreza, índice que dobrou entre 2020 e 2022, durante a conturbada
saída militar dos Estados Unidos. Apesar dos problemas sociais, o país
experimenta melhorias na segurança e diminuição de conflitos internos com
grupos ainda mais radicais que poderiam tomar o poder.
O
doutor em história social e mestre em estudos árabes pela Universidade de São
Paulo (USP), Gabriel Mathias Soares, resume à Sputnik Brasil que há uma
tentativa de normalização no país, o que pode contribuir para reduzir o alto
percentual de pobreza. "É óbvio que o Talibã também tem imposto algumas
limitações a questões que avançaram naquele período [da ocupação dos EUA],
principalmente na educação das mulheres. Mas existem algumas iniciativas para
tentar negociar isso, em que o grupo possa entender e aceitar", frisa.
O
especialista pontua também que, na questão econômica, o Afeganistão é essencial
na consolidação de novas rotas comerciais e conta com diversos recursos
minerais. "Com essa retirada dos Estados Unidos, foi sinalizado uma
espécie de nova configuração para a Ásia Central, sem essa ingerência
norte-americana, e que um dos eixos centrais é a relação com Rússia e China,
onde existe o projeto de Cinturões e vias, ou como alguns chamam de Novas Rotas
da Seda. A região é uma parte importantíssima dessa configuração que sai do
antigo eixo tradicional de longuíssima duração, dominantes especialmente a
partir do século XVIII e XIX, com a industrialização da Europa, e que,
certamente as relações intra-asiáticas começaram a ficar mais sujeitas à
ingerência europeia", explica.
Para
Soares, o Talibã começa a se mostrar disponível em estabelecer com seus
parceiros uma relação de cooperação e estabilidade maior do que ocorreu no
passado, o que poderia levar a uma maior integração regional, especialmente com
países como Paquistão, que recebeu a maior parte dos refugiados afegãos nos
últimos anos. "Existe um movimento de integração maior entre esses países
e certamente o fim da presença norte-americana na região ajudou nesse processo
de facilitar esse acordo [...]. E, claro, a relação oficial talvez possa vir
com concessões de ambos os lados. Talvez isso também abra um espaço para que
você tenha um regime talibã um pouco menos rígido, talvez. Não em toda a sua
extensão. É uma possibilidade. Mas, obviamente, não é nada garantido",
enfatiza.
·
Quem manda hoje no Afeganistão?
Dias
após a saída dos Estados Unidos em 2021, o Talibã anunciou a formação de um
gabinete de governo chefiado pelo mulá Hassan Akhund como primeiro-ministro e
Hibatullah Akhundzada, que é o líder supremo. Em uma rara aparição pública no
início de abril, Akhundzada criticou a comunidade internacional por
"querer dividir" a população do país. O professor de história
contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), Bernardo Kocher, disse
à Sputnik Brasil passados três anos da implantação, a situação aparenta
"ser diferente em termos de segurança internacional".
"As
necessidades econômicas, em meio a um conflito próximo aos países da Ásia
Central [a Ucrânia], cercada por dois vizinhos de grande porte econômico
[Federação da Rússia e China] apontam, por outro lado, para uma perspectiva de
necessária reintegração da economia afegã na participação das decisões e fluxos
de comércio regionais, mesmo que ainda existam severas ressalvas de seus
vizinhos. Estas, no entanto, estão sendo administradas, já estando em evidência
uma expectativa para tratar as relações com o país no curto prazo. Mesmo o
Tajiquistão, o mais crítico entre os países da Ásia central em relação ao
governo do Talibã, está se ajustando a esta nova realidade", declarou.
Apesar
disso, o especialista pontua que, no momento, não há uma normalização total.
"Apenas áreas selecionadas pelos interesses dos países da região serão
permitidas e incentivadas [para o fluxo comercial]. O Cazaquistão reatou
relações com o Afeganistão tendo como base este contexto, voltado para a
participação na reconstrução do país e atuando em áreas como transporte
ferroviário, infraestrutura, energia e agricultura. O país, focando uma
normalização futura da inserção da economia afegã na economia mundial, se
predispôs a ser uma espécie de intermediário/fiador deste processo",
acrescentou, ao lembrar que esse processo pode contribuir para superar a
duradoura crise humanitária que assola o Afeganistão.
¨
A violenta erradicação
do ópio no Afeganistão
Do
céu, o Afeganistão é um aluno excelente na erradicação do ópio. Mas nos campos
de papoulas, matéria-prima deste narcótico, os agricultores resistem às
unidades antidrogas dos talibãs, às vezes pagando com as suas vidas.
O
Afeganistão era o maior produtor mundial de ópio, mas sua produção caiu 95% em
2023, depois que o líder supremo talibã proibiu o cultivo de papoula em abril
de 2022, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
O
resultado, comemorado pela comunidade internacional, é espetacular do ponto de
vista da luta contra as drogas, mas catastrófico para os agricultores, cujos
rendimentos caíram 92%.
Na
semana passada, produtores da província de Badakhshan, no nordeste do país,
entraram em confronto com unidades antidrogas enviadas para destruir campos de
papoulas coincidindo com a colheita.
A
polícia relatou uma morte no distrito de Argo durante confrontos entre uma
unidade talibã e agricultores "manipulados por conspiradores". Na
segunda-feira, confirmou a morte de uma segunda pessoa no distrito de Darayim.
Em
Argo, "as pessoas atiraram pedras e troncos de madeira" e
"tentaram queimar veículos e equipamentos" para destruir colheitas,
disse um porta-voz da polícia.
Moradores
da região disseram à AFP que um agricultor foi morto por um talibã na semana
passada em Darayim e outro em Argo.
O
porta-voz do governo, Zabihullah Mujahid, lamentou os "acontecimentos
trágicos", mas lembrou na rede social X que o decreto de erradicação do
ópio inclui "todas as regiões, sem exceção".
-
"Morte ao Emirado" -
Nem
todos os produtores de papoula conseguiram dedicar-se a outros cultivos. Eles
afirmam que alguns agricultores conseguiram salvar seus campos graças às boas
relações com as autoridades talibãs.
Um
morador de Argo contou à AFP, sob anonimato, como agiram membros da unidade
antinarcóticos enviada para destruir as plantações. "Entraram nas casas
(...) arrombando as portas", conta o homem de 29 anos. "Depois
atiraram em quem resistiu (...), matando um deles e ferindo quatro".
Outro
agricultor de 45 anos, também sob condição de anonimato, disse que "as
forças de segurança invadiram as casas, insultando e espancando as
pessoas".
Um
terceiro morador disse que os talibãs entraram à força nas residências na
sexta-feira, dia sagrado da semana muçulmana.
Um
vídeo postado no X mostra dezenas de homens manifestando-se em Darayim, alguns
parecem carregar um cadáver. "Morte ao Emirado!", grita a multidão,
referindo-se ao nome oficial do país sob o domínio talibã: "Emirado
Islâmico do Afeganistão".
Em
outro vídeo gravado em Darayim, um dos manifestantes denuncia: "Semearam o
pânico, foram selvagens". "Não temos nada contra o governo",
acrescentou.
O
Executivo talibã anunciou o envio de uma comissão para "uma investigação
aprofundada" liderada pelo chefe do Estado-Maior dos exércitos, Fasihuddin
Fitrat, originário desta região de Badakhshan.
Segundo
mensagens publicadas nas redes sociais, os habitantes destes dois distritos,
Argo, com maioria uzbeque, e Darayim, com maioria tadjique, reclamaram que os
talibãs enviados para suas casas não falavam seu idioma.
-
Culturas alternativas -
Como
a proibição, disparou os preços do ópio em 124% em um ano, em março seus
produtores esperavam ganhar entre 800 e 1.000 dólares por quilo (4.000 a 5.000
reais).
Estes
enfrentamentos "poderiam indicar que agricultores carecem de recursos para
suas necessidades básicas e que culturas alternativas poderiam ajudar",
disse à AFP um funcionário do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime.
Batatas
ou feijões poderiam ser opções. Mas o governo talibã culpa a comunidade
internacional pela situação, que "deveria colaborar com o Emirado Islâmico
propondo soluções alternativas".
"Infelizmente
não houve colaboração", lamentou o porta-voz do governo à AFP em dezembro.
Fonte:
Sputnik Brasil/AFP
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