Quando a Amazônia começou a morrer
O general Ernesto
Geisel foi o presidente da república que teve a mais demorada permanência
contínua na Amazônia. Em dezembro de 1973, ele percorreu oito mil quilômetros.
Durante seis dias na região, esteve em algumas das principais cidades,
inspecionou obras públicas (todas elas executadas pelo governo federal),
conversou com 600 pessoas, ouviu palestras e carregou centenas de quilos de
papéis que lhe entregaram, com estudos científicos e técnicos sobre o
desenvolvimento regional.
Formalmente, ele ainda
nem era o presidente da república. Em plena ditadura, porém, a sua eleição pelo
Congresso Nacional era um detalhe, já que era o candidato oficial do regime
militar. O parlamento iria apenas carimbar sua nomeação.
O homem forte na tropa
era o seu irmão, o general Orlando Geisel, que podia ter sido o candidato, mas
optou pelo irmão mais novo. Ernesto era até então presidente da Petrobrás,
cargo que assumiu em função da presunção de possuir conhecimento aprofundado do
setor de energia, sobretudo o de gás e óleo. Era tido mesmo como um dos mais
qualificados generais do Exército, um autêntico intelectual, a despeito das
decisões equivocadas que viria a adotar no seu mandato presidencial.
O general acreditava
que a ocupação da maior fronteira de recursos naturais do planeta exigia um
planejamento rigoroso, competente e centralizado em Brasília. No poder, deu
força de lei ao plano de desenvolvimento quinquenal que sua equipe prepararia.
Dela participaram até notórios esquerdistas ou mesmo comunistas, sob o controle
decisivo do mais importante ministro civil do governo. Era exatamente o chefe
do planejamento, o economista paraibano João Paulo dos Reis Velloso, um
pensador liberal capitalista, até hoje na ativa.
Geisel deu prioridade
à Amazônia no justo momento em que a região iria ser incorporada de vez – e
profundamente – como fornecedora de matérias primas e insumos básicos às
economias nacional e internacional. Essa importância resultava do fato que iria
revolucionar a então vigente divisão internacional do trabalho.
Derrotadas mais uma
vez no confronto militar com Israel, as nações árabes decidiram recorrer a uma
nova arma política: o preço do petróleo. A Opep, cartel do qual participavam os
maiores produtores, elevou o preço do barril cinco vezes, encarecendo enormemente
– e de súbito – o custo da energia.
O país mais atingido
por essa medida foi o Japão, que era o maior competidor comerciais e econômico
dos Estados Unidos. As 41 empresas, que garantiam o suprimento de toda demanda
industrial interna por alumínio, se tornaram inviáveis. Teriam que ser fechadas.
O Japão, como outros países mais desenvolvido, enormes consumidores de energia,
teriam que se transferir para outras regiões, onde a energia fosse abundante e
mais barata. Um desses destinos era a Amazônia. Ela deveria ser devassada logo.
Dois meses antes da
viagem de Geisel, chegou a Belém para uma excursão em busca de informações uma
equipe integrada pelo presidente da siderúrgica Sumitomo, a terceira maior
siderúrgica do Japão, acompanhado pelo chefe do departamento de matérias primas
da empresa. No ano seguinte começaram as pesquisas para a identificação de
fintes de energia e de minérios destinados ao Japão.
Em 1976, o já
presidente Geisel foi a Tóquio assinar os acordos e tratados que fariam os dois
governos implantar no Pará a quarta maior hidrelétrica do mundo, em Tucuruí, no
rio Tocantins, e a 8ª maior fábrica de alumínio primário, a atividade
industrial que mais consome energia. O Brasil daria total colaboração a essas
duas iniciativas, que colocariam a Amazônia no circuito das maiores unidades
capitalistas do mundo. Definitivamente.
Na visita de 1973,
quando os jornalistas pediram a sua opinião sobre a maior controvérsia então
travada, em torno da decisão sobre por onde exportar o melhor minério de ferro
do planeta, identificado apenas seis anos antes, em Carajás, no centro do Pará,
o candidato militar evitou a intenção de colocá-lo em confronto com o general
presidente, Garrastazu Médici, que viria a decidir pelo escoamento através do
Maranhão e não do Pará.
Geisel declarou que
cumpriria a decisão do governo Médici. Qualquer que ela fosse. Enfatizou:
“Quando se procura uma solução que vise ao interesse nacional. Não se pode
ficar olhando para os interesses regionais. Nesta hora, devemos esquecer todas
as fronteiras do Estado, pensando apenas no que é melhor para o país”.
A partir de então, o
melhor para a Amazônia seria determinado, de forma autoritária, a partir do
Palácio do Planalto, em Brasília. O melhor para o governo federal,
centralizador como nunca antes, seria fazer da Amazônia uma usina de dólares,
graças à exportação de matérias primas intensivas em energia. Naquele final do
primeiro choque do petróleo, seria a Ásia, principalmente o Japão. Agora, a
China.
Para isso, o que a Amazônia era ou significava chegou ao fim, Fim que se
aproxima a cada novo ano de destruição, principalmente das suas florestas.
¨ Mercados globais e seus efeitos sobre a exploração de recursos
na Pan-Amazônia
O capital de
investimento flui quando os preços estão altos, mas as empresas reduzem os
investimentos quando esses preços caem. No entanto, as empresas não costumam
abandonar os projetos que já estão em andamento; em parte, isso é uma
resistência natural à baixa de um investimento existente, mas empresários
experientes também sabem que os mercados são cíclicos. Se as empresas
desejam “lucrar” quando os preços estão altos, elas devem ter capacidade
instalada para aumentar a produção quando o preço for o correto.
Os preços dos minerais
industriais estavam em níveis historicamente baixos antes de 2000, mas
aumentaram drasticamente nas duas décadas seguintes, quando a China iniciou sua
construção de infraestrutura sem precedentes, passando de uma economia
emergente para uma superpotência global. A demanda por minerais
industriais foi espelhada pelo aumento da demanda por petróleo e gás em uma
época em que os suprimentos eram limitados pela guerra e pela geopolítica.
Coincidentemente, o
preço do ouro quadruplicou devido às políticas fiscais e monetárias nos Estados
Unidos, parcialmente resultantes da crise de crédito de 2008. Essa combinação
de condições de mercado favoreceu a expansão do setor mineral na Pan-Amazônia,
que viu as receitas aumentarem em 500% entre 2000 e 2013.
Após a queda dos
preços das commodities em 2014, a maioria das empresas restringiu suas
estratégias de investimento. As empresas chinesas foram a exceção; elas
estavam com muito dinheiro e responderam a uma filosofia de gestão que
considera o interesse estratégico do Estado. Desde então, elas reduziram os
investimentos, provavelmente devido à redução da demanda chinesa associada a
políticas para desacelerar o desenvolvimento da infraestrutura.
Como os mercados de
commodities minerais são voláteis, as empresas modelam a viabilidade de um
projeto baseando-se em um preço que está abaixo do valor médio de mercado
calculado ao longo de pelo menos uma década. Por exemplo, os projetos de ouro
são modelados segundo um preço internacional de cerca de US$ 1.200 por onça
troy, que é apenas setenta por cento de seu preço em janeiro de 2023. As
empresas petrolíferas já presumiram que o preço de longo prazo do petróleo era
de cerca de US$ 100 por barril, mas, após o colapso dos preços do petróleo em
2015, elas reduziram essa referência para US$ 50, o que representa cerca de
cinquenta por cento do custo de produção de um campo de petróleo existente no
Equador.
Entre 2020 e 2022, o
preço do petróleo caiu para uma baixa notável de US$ 30 devido à recessão
global causada pela COVID-19, mas se recuperou para US$ 130 após a invasão
russa na Ucrânia.
A partir de janeiro de
2023, outro boom de commodities parece estar em andamento. Em parte, isso se
deve à guerra na Ucrânia e às dimensões e à duração (ainda desconhecidas) do
regime de sanções imposto à Rússia pelos Estados Unidos, pela União Europeia e
por seus aliados no Pacífico Asiático. Esse boom de commodities será
diferente, no entanto, devido à crescente demanda por determinados minerais
estratégicos necessários para fabricar os componentes e a infraestrutura
exigidos pela transição energética dos combustíveis fósseis para a energia
renovável. Esses minerais existem na Pan-Amazônia em quantidades globalmente
significativas e haverá uma pressão econômica significativa para desenvolver
esses recursos.
·
A realidade do risco político
Diferentemente dos
direitos minerais nas economias avançadas, os recursos subterrâneos em todos os
países da América Latina pertencem ao Estado, independentemente do proprietário
da terra. Isso inclui propriedades privadas, mas também propriedades e territórios
comunitários que foram cedidos pelo Estado a grupos indígenas e comunidades
tradicionais. Consequentemente, a relação entre o Estado e a empresa
privada define a responsabilidade legal que é dividida entre o Estado e o
operador, bem como a distribuição dos custos e benefícios que acompanham o
desenvolvimento da mineração e dos campos de petróleo. Os proprietários de
terras podem não ter direitos legais sobre os benefícios econômicos, mas têm o
poder de interromper um desenvolvimento por meio de protestos civis, o que
explica a criação de esquemas de royalties para favorecer as comunidades
locais.
Os setores
extrativistas são de “capital intensivo”, um termo usado para descrever
empresas que exigem uma grande aplicação inicial de capital financeiro antes da
geração de renda em dinheiro. As minas industriais podem exigir mais de um
bilhão de dólares para serem desenvolvidas; mais de uma década, às vezes duas,
separam a descoberta de um depósito mineral e sua eventual exploração. O
desenvolvimento de petróleo e gás é ainda mais caro, devido ao custo de
pesquisas sísmicas e poços exploratórios – muitos dos quais fracassam – que
precedem a decisão de desenvolver um campo.
O próprio tempo é um
fator de risco porque tempo é dinheiro; é um clichê porque é verdade. Um atraso
pode transformar um investimento promissor em um empreendimento medíocre,
enquanto uma calamidade ambiental ou uma revolução política pode se transformar
em um desastre financeiro. Os empreendimentos bem-sucedidos são bem-sucedidos
porque seus proponentes identificam e gerenciam com eficácia as várias formas
de risco que podem colocar em perigo seus investimentos.
O crescimento das
receitas do setor extrativista na década de 2000 aumentou o risco político que
reflete o histórico de turbulência política da América Latina. A região passou
por um boom de investimentos após a privatização de empresas estatais na década
de 1990, o que catalisou o aumento de novos projetos que amadureceram na década
de 2000 e possibilitou o crescimento fenomenal das receitas do governo durante
o boom das commodities.
A onda de políticas
neoliberais levou a uma reação negativa na Bolívia e no Equador, mas,
apesar da retórica dos governos de esquerda, o desenvolvimento e a exploração
de minérios continuaram sendo, em grande parte, domínio do setor
privado. Somente a Venezuela excluiu o investimento do setor privado, e
sua economia de recursos naturais, incluindo hidrocarbonetos e minerais
industriais, é atualmente apenas uma fração do tamanho que tinha na década de
1990. A eleição peruana de 2021 destacou o potencial de risco
político com a eleição de um candidato socialista que (brevemente) expressou o
desejo de nacionalizar setores estratégicos. Sua destituição do cargo em
dezembro de 2022 levou a protestos generalizados que ameaçaram desestabilizar
ainda mais o país.
·
Partes interessadas e interesses adquiridos
As receitas geradas
pela exploração de minerais industriais e hidrocarbonetos fluem para os
balanços patrimoniais de empresas com acionistas em seis continentes, incluindo
várias que estão entre as maiores entidades corporativas do planeta. Suas
operações são apoiadas por uma infinidade de empresas locais e nacionais, seja
como contratadas ou como fornecedoras de insumos e serviços essenciais. Juntas,
essas corporações multinacionais e seus parceiros domésticos criam dezenas de
milhares de empregos que abrangem desde o espectro social do trabalhador comum
até o engenheiro especializado. Os escritórios corporativos nas capitais
regionais e nacionais geralmente empregam membros das elites sociais e
políticas. Como as empresas em todo o mundo, elas exercem influência
comprando publicidade nos principais meios de comunicação, participando de
câmaras de comércio e fazendo lobby junto aos legisladores
para que formulem políticas que beneficiem seu setor.
Os governos estão
predispostos a apoiar os setores de mineração e hidrocarbonetos porque eles são
voltados para a exportação e geram receitas para o Estado. Com pouquíssimas
exceções, as empresas de mineração podem contar com o apoio dos ministérios das
finanças que estão em sintonia (obcecados) com a necessidade de manter um
balanço de pagamentos positivo. A mesma lógica vale para a produção de petróleo
e gás, mas é reforçada pela produção doméstica que alivia a necessidade de
importação de energia. Os ministérios da Fazenda estão entre os ministérios
mais influentes do governo, em parte por causa de seus conhecimentos técnicos,
mas também por causa de suas estreitas relações com os bancos multilaterais de
desenvolvimento que veem o setor extrativista como um componente essencial da
economia global. Além disso, os empréstimos baseados no setor extrativista
atraem os funcionários dos bancos de desenvolvimento, que são avaliados por sua
capacidade de fechar negócios e gerar receita de juros para a instituição.
Uma das tarefas mais
importantes das agências multilaterais de desenvolvimento é organizar e
financiar estratégias nacionais de desenvolvimento; essas estratégias orientam
as carteiras de empréstimos e refletem as prioridades de desenvolvimento de
longo prazo dos governos.
Nas últimas duas
décadas, a orientação filosófica desses documentos evoluiu gradualmente para
incorporar os conceitos de sustentabilidade; no entanto, eles mantêm os
componentes principais dos modelos econômicos convencionais. Os planos
estratégicos nacionais geralmente buscam agregar valor às commodities de
recursos naturais e são acompanhados de iniciativas para transformar
commodities em bens industriais. Isso requer energia, às vezes muita energia, o
que promoveu a expansão da energia hidrelétrica e da bioenergia.
No século XX, as
estratégias de desenvolvimento emanavam, em grande parte, de agências
nacionais, mas atualmente elas também estão sendo geradas por governos
regionais, onde as autoridades eleitas são menos comprometidas com o
desenvolvimento sustentável e continuam sendo uma força poderosa para promover
a expansão do setor extrativista.
As elites locais
tendem a ter uma orientação filosófica baseada em modelos de negócios
convencionais e, embora muitos façam afirmações retóricas sobre
sustentabilidade e conservação, simultaneamente apoiam o setor extrativista.
Os setores
extrativistas também se beneficiam de uma troca de conhecimentos técnicos entre
as empresas privadas e os ministérios do governo. Embora possam estar
vinculados à ética profissional, os funcionários do governo geralmente
compartilham com seus colegas corporativos uma visão que reflete suas próprias
ambições pessoais. Eles acreditam que um setor mineral robusto e lucrativo é de
interesse nacional. Muitos estão comprometidos com os conceitos de
sustentabilidade e estão convencidos de que suas ações para promover as
melhores práticas são benéficas para o setor e para a nação.
As partes envolvidas
na economia convencional são poderosas e bem conectadas, mas precisam enfrentar
um movimento contrário que se opõe ao desenvolvimento contínuo do setor
extrativista. Organizados como organizações não governamentais (ONGs), os
defensores do meio ambiente atuam em âmbito global, nacional e local. Alguns
são adeptos de guerras de relações públicas e se opõem rotineiramente a todos
os tipos de desenvolvimento mineral, enquanto outros buscam reformar o setor
promovendo práticas recomendadas nos setores ambiental e social.
Ambos os grupos
dependem de informações fornecidas por acadêmicos especializados em identificar
e quantificar os impactos ambientais e sociais que influenciam um processo
regulatório conhecido como avaliação de impacto ambiental (EIA).
Os críticos afirmam
que esse processo é tendencioso em favor das empresas e das partes interessadas
governamentais; uma opinião compartilhada pelas comunidades locais que,
compreensivelmente, são reticentes em aceitar uma alteração maciça em sua
paisagem local. As partes interessadas mais recalcitrantes são as comunidades
indígenas que habitam a paisagem do projeto há décadas, séculos ou há muito
mais tempo.
Os grupos indígenas
sabem, por experiência própria, que os benefícios da extração mineral são de
curto prazo e que os danos serão permanentes. Também sabem que a maior parte
dos recursos econômicos, inclusive a receita de royalties e impostos, fluirá
para governos locais e regionais que raramente são controlados por sua
comunidade. No passado recente, eles foram totalmente despojados de suas
terras, seja por terem sido deslocados da própria concessão mineral ou por uma
enxurrada de imigrantes que foram atraídos por programas governamentais para se
estabelecerem nas terras adjacentes à mina (por exemplo, em Parauapebas, Pará,
Brasil) ou ao longo das estradas de acesso construídas para atender aos campos
de petróleo (por exemplo, em Succumbios, Equador).
Os grupos indígenas
tornaram-se adeptos da defesa de seus direitos. Por sorte, eles possuem uma
arma jurídica extremamente poderosa chamada “Consentimento Livre, Prévio e
Informado”. Conhecido pela sigla FPIC, esse princípio está consagrado em
um tratado internacional que obriga os governos e as empresas a se reunirem com
as comunidades afetadas e explicar, em linguagem acessível, as dimensões do
desenvolvimento proposto. O projeto só pode prosseguir se conseguem o
consentimento para sua execução. Como o tratado foi ratificado pelas
legislaturas nacionais, seus elementos são aplicáveis de acordo com os códigos
civis, administrativos e penais da nação signatária. Essencialmente, as
comunidades indígenas obtiveram poder de vetar de fato o desenvolvimento de qualquer
recurso mineral localizado abaixo ou adjacente às suas terras territoriais.
Fonte: Amazônia
Real/Mongabay
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