segunda-feira, 3 de junho de 2024

Por que educação pública não deve ser privatizada

SP deve lançar em novembro leilão para privatizar gestão de 33 escolas: Esse é o título de uma matéria do UOL, escrita pela Ana Paula Bimbati. Quem me enviou foi um professor do meu mestrado em políticas públicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele havia comentado sobre o assunto e honestamente me pegou de surpresa.

Já deixo bem claro a minha opinião: não vejo com bons olhos essa iniciativa. Não tenho absolutamente nada contra a parceria público-privada (PPP) e acredito que o saldo pode ser positivo em muitas situações, mas tenho enormes ressalvas com esse tipo de parceria na educação.

Qual o objetivo do plano? Segundo a própria secretaria paulista seria "liberar a direção da escola de tarefas burocráticas, permitindo maior dedicação às questões pedagógicas". Lindo, né? E, de fato, nasceu de uma problemática real que já relatei na coluna. Por que então estou problematizando? Bom, por que a solução precisa obrigatoriamente envolver o setor privado?

No Brasil, há uma narrativa de que o Estado é ineficiente, sempre corrupto e cheio de profissionais "mamando nas tetas do governo". Não sou ingênuo ou excessivamente idealista: há sim corrupção e profissionais não qualificados – como também ocorre no setor privado. Agora é de uma maldade sem tamanho generalizar e colocar todo o sistema e profissionais na mesma caixa. Temos instituições públicas de referência internacional e profissionais do setor altamente qualificados, éticos e comprometidos.

Morro de vergonha quando ouço os autointitulados liberais dizendo que o melhor dos cenários é Estado zero e que é assim nas maiores nações do mundo. Quem disse isso? A literatura econômica mostra justamente o contrário. Quase todos os maiores países do mundo têm tanta ou ainda mais participação do Estado do que o Brasil, inclusive os Estados Unidos. E outra: até os mais liberais economistas da história sempre sinalizaram que a educação deveria ser responsabilidade do Estado.

        Setor privado nem sempre é solução

O problema está na gestão. Meu professor tem nos provocado bastante sobre isso: Por que não se fala sobre capacitar os profissionais do setor público e investir no que já existe? Por que a solução está sempre no setor privado?

Bom, aqui o "buraco é mais embaixo". A narrativa de que o setor público é ineficiente e de que a solução está no setor privado integra uma estratégia que visa enfraquecer o primeiro e abrir margem para a entrada do segundo – este com agenda própria e quase nunca coesa com a que o Estado deveria assumir.

São Paulo não é o único com esse início de uma possível privatização em vigor. O Paraná começou em 2022, e atualmente testa o modelo de gestão privada em duas escolas. É coincidência? Não. Os dois têm em comum o secretário Renato Feder, que atuou no estado sulista antes de assumir a mesma posição no estado de maior importância econômica do Brasil.

Essa relação das secretarias de educação com o setor privado não é nova. Li um artigo de 2018 da Teise Garcia, professora no curso de pedagogia da Universidade de São Paulo, intitulado A gestão escolar no contexto da privatização da educação básica. Ela já identificava presença de atores privados na gestão educacional no período entre 2005-2015.

Quem está por trás de tudo isso? Bom, no geral, grandes fundações. Há uns dois anos, falei com um professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) que contou que há um evento anual do qual participam todos os secretários de educação do Brasil, cuja organização foi muitas vezes patrocinada por grandes fundações. Quem está por trás de uma delas é simplesmente um dos homens mais ricos do Brasil. Olhem o poder de entrada: simplesmente em todas as secretarias de educação do país e podem, como já acontece, influenciar o currículo e decisões de políticas públicas envolvendo a educação básica.

        Cuidado seletivo

Sou fundador de um projeto social nacional de educação que auxilia jovens da rede pública com o ingresso no ensino superior. É 100% sem fins lucrativos e composto integralmente por voluntários universitários. Já visitei colégios de dez estados para divulgar nosso trabalho e em alguns tive uma dificuldade incrivelmente absurda para visitar os colégios, mesmo via secretarias.

Eu ficava meio desapontado, mas no fundo até admirava a proteção para com as escolas e consequentemente para com os estudantes. Mas quando descobri sobre essa estreita ligação do setor privado com as secretarias, eu me senti bastante ingênuo. Essa resistência e bloqueio são bastante seletivos. Há muita resistência quando se trata de projetos sociais e pequenas ONGs, mas os grandes "tubarões" por trás de grandes fundações encontram um caminho totalmente aberto em muitas das secretarias de educação do Brasil.

Temo que, se esse avanço do setor privado nas secretarias continuar, ficaremos diante de um cenário sem volta. O interesse do setor não é apenas no subsídio governamental, mas também no acesso aos alunos – tanto político quanto monetário. Afinal, são milhões de clientes em potencial e milhares de possíveis líderes em potencial que futuramente podem ocupar cargos políticos e votar a favor de agendas das fundações que investiram neles.

Não quero incitar uma teoria da conspiração e não estou dizendo que o setor privado é do mal ou que os profissionais que o integram não têm nenhum tipo de boa intenção. Isso não é verdade, assim como é errado dizer que todos do setor público são profissionais ruins. Meu ponto é: os setores têm objetivos e naturezas diferentes.

Não podemos desejar que o setor público tenha a mesma eficiência do setor privado sem a devida adaptação. Precisamos proteger nossa educação pública, nossas secretarias e sobretudo nossos alunos. Tive a oportunidade de conhecer alguns profissionais de secretarias de educação altamente qualificados, assim como diretores de colégios. O que devemos é investir neles, em valorização e em qualificação.

        Milei e Bolsonaro: o desprezo pelas universidades públicas

Ganhou cinco prêmios Nobel, formou 16 presidentes e estava entre as 100 melhores universidades do mundo: essas são apenas algumas das conquistas da Universidade de Buenos Aires (UBA). Incrível, né? Mas isso não impediu Javier Milei, o polêmico presidente argentino, de descrever a universidade como "um espaço de doutrinação comunista e lavagem cerebral".

O ataque também afetou o orçamento das instituições públicas de ensino superior na Argentina. Atualmente, o país tem a maior inflação do mundo, cerca de 290 % anuais, mas foi liberado para a instituição o mesmo orçamento de 2023. Emiliano Yacobitti, o vice-reitor da UBA, disse em uma entrevista que o hospital universitário precisou até cancelar algumas cirurgias e que a instituição corre o risco de eventualmente não conseguir arcar mais com despesas operacionais básicas, como luz e água.

Tive a oportunidade de conversar com Estefanía Paola Cuello, advogada e professora de Teoria do Estado e História do Direito na Faculdade de Direito da UBA. "Sou contra as políticas de cortes levadas a cabo por Milei. As universidades favorecem a construção da identidade do país, uma vez que promovem e endossam a própria função do Estado. Atacar elas é atacar qualquer possibilidade de aproximação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade", afirmou.

Segundo ela, governos como o de Milei tendem à disciplina e à censura dos centros de pensamento. "Contudo, no caso particular da Argentina, o atual executivo está adotando um papel exageradamente ridículo e desnecessário na sua gestão pública. Milei transcende os discursos comuns na América Latina que lutam contra o ‘marxismo cultural'. Ao lado de Milei, Bukele parece moderado e Bolsonaro sério. Mas sua busca vai além de uma posição ideológica. É a busca pelo posicionamento digital através do desprezo por qualquer manifestação cultural séria. O presidente argentino busca ser uma estrela das redes sociais, uma réplica vulgar de Bukele".

O caso Argentino me lembra muito o caso brasileiro. A USP, a Unesp, a Unicamp, a UFRJ, a UFRGS, a UFBA, a UFMG e muitas outras instituições de ensino superior público brasileiro são referência mundial, mas isso não as impediu de serem alvo de perseguição do ex-presidente, Jair Bolsonaro. Ele e Milei compartilham, além de outras características, um aparente ódio pelo ensino superior público, classificando as universidades como supostos centros de esquerda e espaços de comunismo, que fazem lavagem cerebral.

A UFRJ, assim como a UBA, chegou bem próximo de fechar as portas simplesmente por correr o risco de não conseguir pagar as despesas de luz.

        Espaços plurais

A semelhança descrita acima não é coincidência e para entender melhor eu entrevistei Paolo Ricci, cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP). "Há certo consenso na literatura em chamar esses políticos de populistas. Em seus discursos, é uma constante a contraposição entre o povo, moralmente puro, e os "outros", a elite, vistos como corruptos e imorais fazendo amplo uso de uma linguagem emotiva. Na América Latina, a direita populista centra sua fala contra a esquerda taxada não apenas de ser corrupta, mas de ser comunista e socialista; uma caracterização extremamente marginal. Em geral, o que caracteriza um discurso populista é a simplificação de questões complexas dando a entender que os populistas possuem soluções para os problemas que os "outros" não conseguem enfrentar", afirmou.

Ele continua: "Um dos elementos destacados pelos estudiosos é o aspecto antipluralista dos populistas no sentido de se apresentar com os únicos que representam o povo. Aqui, portanto, temos que reconhecer um aspecto autoritário no populista, voltado para deslegitimar a ação do opositor em termos competitivos e representativos. Milei e Bolsonaro se enquadram nessa ideia. Se a literatura tem clareza sobre o populismo autoritário de Bolsonaro, Miliei ainda está sob avaliação, mas há fortes similaridades entre os dois".

O ataque às universidades, segundo ele, não é uma constante entre os governos populistas. Esses ataques no Brasil são "uma tentativa a mais de deslegitimar o PT e, mais em geral, a esquerda e suas pautas que encontram expressão no âmbito universitário, como as pautas identitárias".

Já na Argentina, segundo Cuello, "este movimento, talvez, tenha sido uma tentativa de se destacar pelo contraste e se opor diametralmente às políticas públicas características dos governos de Cristina Fernández de Kirchner e do peronismo em geral. Possivelmente, ele procurou atrair o eleitorado antiperonista e o emergente eleitorado libertário".

Além disso, os dois especialistas também concordam em um importante aspecto: não é verdade que há uma hegemonia esquerdista nas universidades públicas. Elas são, muito pelo contrário, espaços heterogêneos de correntes e posicionamentos.

Faço no mestrado em uma universidade pública e cursei a graduação em outra, ambas estão entre as melhores do país. São centros de excelência e que não "doutrinam" seus alunos, mas sim os provocam para despertar o próprio senso crítico.

Graças à formação que recebemos, conseguimos, inclusive, perceber o quanto governantes como os aqui descritos se maquiam com uma narrativa pró-povo, anticorrupção e a favor da liberdade, quando na verdade são antidemocracia e não se preocupam nem um pouco com próprio povo.

Muitos deles, talvez não coincidentemente, não estudaram em uma universidade pública. Se dedicassem o mesmo tempo que gastam falando mal delas as visitando, saberiam o que realmente acontece lá e talvez teriam posicionamentos diferentes e mais respeitosos com instituições que, inclusive, impulsionam o desenvolvimento do país.

 

Fonte: Por Vinicius De Andrade, para Deutsche Welle      

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