quarta-feira, 19 de junho de 2024

Por que aliança fortalecida entre Putin e Kim Jong Un preocupa tanto os EUA

A visita oficial do presidente russo Vladimir Putin à Coreia do Norte está sendo acompanhada com bastante atenção pela comunidade internacional, sobretudo pelos Estados Unidos.

Há anos, autoridades americanas vêm tentando isolar a Coreia do Norte com sanções internacionais, devido ao programa de armas nucleares do país. E desde 2022, a Rússia vem sendo alvo de esforços semelhantes, por causa da invasão da Ucrânia.

Agora autoridades americanas temem a aproximação estratégica entre os dois países.

Há diversos pontos que preocupam os EUA.

Um deles é a cooperação militar — teme-se que a Rússia possa estar comprando armamentos da Coreia do Norte, que possui uma indústria bélica. Por causa das sanções americanas, a Coreia do Norte não consegue vender muitas das suas armas a outros países.

Já há indícios de armamentos norte-coreanos sendo usados na guerra na Ucrânia. Com a Rússia como compradora, a Coreia do Norte estaria se fortalecendo economicamente.

Mais do que isso, na visão dos americanos existe um risco para o sistema internacional. Caso haja compra de armas, a Rússia estaria violando resoluções que ela própria aprovou no Conselho de Segurança da ONU, proibindo negociações desse tipo com os norte-coreanos.

Os EUA têm alertado sobre um possível acordo de armas entre os dois países há algum tempo.

Tanto Coreia do Norte como Rússia negam que haja compra de armas — apesar de evidências apresentadas por especialistas bélicos de presença de armas norte-coreanas na Ucrânia.

Outra preocupação dos americanos — e em especial da Coreia do Sul, maior rival de Pyongyang — é sobre o que os norte-coreanos receberiam em retorno por sua cooperação com os russos.

Há sinais de que a Rússia estaria enviando petróleo e alimentos para a Coreia do Norte. No entanto, o temor maior do Ocidente é que os russos ajudem os norte-coreanos no desenvolvimento dos seus programas militares e nucleares.

·        Aproximação estratégica

A aproximação entre Coreia do Norte e Rússia faz bastante sentido do ponto de vista estratégico.

Moscou precisa de armas — especificamente munições e cartuchos de artilharia — para a guerra na Ucrânia. E Pyongyang tem ambas em abundância.

Por outro lado, a Coreia do Norte, vítima de sanções, precisa desesperadamente de dinheiro e comida. Depois do fracasso das negociações com os Estados Unidos em 2019, o país está mais isolado do que nunca.

Isso abre caminho para ligações estreitas entre Pyongyang e Moscou — e preocupa os Estados Unidos.

Com a Rússia sob pressão para obter armas norte-coreanas, Kim Jong Un pode cobrar um preço elevado.

Para americanos e sul-coreanos, o pedido mais preocupante que Kim pode fazer é por tecnologia russa ou know how de armas avançadas, que ajudem no seu programa de armas nucleares.

A Coreia do Norte ainda está tendo dificuldades para desenvolver armas estratégicas essenciais, principalmente um satélite espião e um submarino com armas nucleares.

Mas as autoridades na Coreia do Sul acreditam que a cooperação com a Rússia neste nível seria improvável, pois pode acabar por ser estrategicamente perigosa para Moscou.

Yang Uk, pesquisador do Instituto Asiático de Estudos Políticos, observa que mesmo que a Rússia não venda armas à Coreia do Norte em troca, ainda poderá financiar o seu programa nuclear.

"Se a Rússia pagar em petróleo e alimentos, poderá reativar a economia da Coreia do Norte, o que, por sua vez, poderá também fortalecer o sistema de armas da Coreia do Norte. É uma fonte extra de recursos que eles não tinham", disse Yang Uk à BBC em setembro do ano passado, quando Putin e Kim se encontraram na Rússia.

"Durante 15 anos construímos uma rede de sanções contra a Coreia do Norte, para impedi-la de desenvolver e comercializar armas de destruição em massa. Agora a Rússia, um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, poderia causar o colapso de todo este sistema", afirmou Yang Uk.

À medida que as sanções foram aumentando, a Coreia do Norte foi ficando cada vez mais dependente da China. No ano passado, Pequim recusou-se a punir a Coreia do Norte, em votação no Conselho de Segurança da ONU, pelos seus testes de armas de médio e longo alcance. Isso permitiu que a Coreia do Norte desenvolvesse o seu arsenal nuclear sem consequências graves.

A Coreia do Norte proporciona a Pequim um distanciamento entre a China e as forças dos EUA estacionadas na Coreia do Sul, o que significa que vale a pena manter Pyongyang como aliado.

Mas Pyongyang sempre se sentiu desconfortável por depender demais apenas da China. Com a Rússia em busca de aliados, isso dá a Kim a oportunidade de diversificar a sua rede de apoio.

E com a Rússia tão desesperada, o líder norte-coreano pode sentir que consegue obter concessões ainda maiores de Moscou do que de Pequim.

·        Armas norte-coreanas na Ucrânia

Apesar de toda a conversa recente sobre a preparação de Kim Jong Un para iniciar uma guerra nuclear, a ameaça mais imediata é a capacidade da Coreia do Norte de alimentar as guerras existentes e a instabilidade global.

Este ano, especialistas em balística detectaram pela primeira vez armas norte-coreanas sendo usadas na guerra na Ucrânia.

Militares ucranianos afirmam que dezenas de mísseis norte-coreanos foram disparados pela Rússia contra o seu território, matando pelo menos 24 pessoas e ferindo mais de 70.

“Nunca pensei que veria mísseis balísticos norte-coreanos serem usados ​​para matar pessoas em solo europeu, disse Joseph Byrne, especialista em Coreia do Norte do think tank britânico de defesa Royal United Services Institute (RUSI).

Ele e a sua equipe têm monitorado o envio de armas norte-coreanas para a Rússia desde a reunião entre Kim e Putin, em Moscou em setembro do ano passado.

Usando imagens de satélite, eles conseguiram observar quatro navios de carga russos viajando de um lado para outro entre a Coreia do Norte e um porto militar russo, carregados com centenas de contêineres.

No total, a RUSI estima que tenham sido enviados 7 mil contêineres com mais de um milhão de munições e foguetes — que podem ser disparados de caminhões em grandes rajadas.

As suas avaliações são apoiadas por informações dos EUA, Reino Unido e Coreia do Sul. Rússia e Coreia do Norte negam que estejam comercializando armas.

"Esses projéteis e foguetes são alguns dos itens mais procurados no mundo hoje e estão permitindo que a Rússia continue atacando cidades ucranianas em um momento em que os EUA e a Europa hesitam em contribuir com armas [para a Ucrânia]", diz Byrne.

O uso de mísseis balísticos no campo de batalha é o que mais preocupa Byrne e os seus colegas, pelo que revelam sobre o programa de armas da Coreia do Norte.

Desde a década de 1980, a Coreia do Norte tem vendido as suas armas no exterior, principalmente a países do Norte de África e do Oriente Médio, incluindo a Líbia, a Síria e o Irã. Eles tendem a ser mísseis antigos, de estilo soviético, de baixa qualidade.

Há evidências de que os combatentes do Hamas provavelmente usaram algumas das antigas granadas lançadas por foguetes, fabricados por Pyongyang, no seu ataque a Israel em 7 de outubro passado.

Mas um míssil disparado no dia 2 de janeiro pela Rússia na Ucrânia que foi desmanchado por especialistas era diferente das armas norte-coreanas normalmente encontradas pelo mundo. Aparentemente se tratava de um míssil de curto alcance mais sofisticado de Pyongyang - o Hwasong 11 - capaz de viajar até 700 km.

Embora os ucranianos tenham minimizado a sua precisão, Jeffrey Lewis, especialista em armas norte-coreanas e não-proliferação no Instituto Middlebury de Estudos Internacionais, diz que elas não são muito inferiores aos mísseis russos.

A vantagem destes mísseis é que são extremamente baratos, diz Lewis. E aparentemente os russos estão se aproveitando disso para usá-los em grande escala.

Isto levanta então a questão de quantos destes mísseis os norte-coreanos podem produzir. O governo sul-coreano observou recentemente que a Coreia do Norte enviou 6,7 mil contêineres de munições para a Rússia — o que indica que as fábricas de armas de Pyongyang estão funcionando a todo vapor.

·        Sanções do Ocidente sob ameaça

Ao comprar as armas de Pyongyang, Moscou estaria violando as mesmas sanções que votou como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

No início deste ano, a Rússia usou seu voto para encerrar um painel da ONU que monitorava as violações das sanções impostas pelo Ocidente contra a Coreia do Norte.

“Estamos testemunhando o desmoronamento em tempo real das sanções da ONU contra a Coreia do Norte, o que dá a Pyongyang muito espaço para respirar”, diz Byrne.

Tudo isto tem implicações que vão muito além da guerra na Ucrânia.

“Os verdadeiros vencedores aqui são os norte-coreanos”, disse Byrne. “Eles ajudaram os russos de uma forma significativa e isso lhes trouxe muitas vantagens”.

Em março, a RUSI documentou grandes quantidades de petróleo sendo enviadas da Rússia para a Coreia do Norte, além de vagões cheios do que se acredita ser arroz e farinha atravessando a fronteira terrestre entre os países.

Este acordo, estimado em centenas de milhões de dólares, impulsiona não só a economia de Pyongyang, mas também o seu exército.

A Rússia também poderia fornecer à Coreia do Norte as matérias-primas para continuar fabricando os seus mísseis, ou mesmo equipamento militar, como aviões de combate, e até mesmo a assistência técnica para melhorar as suas armas nucleares.

Além disso, o Norte está tendo a oportunidade de testar pela primeira vez os seus mais recentes mísseis em um cenário de guerra real. Com esses dados, será possível melhorá-los.

 

¨      Por que Kim anseia tanto pela ida de Putin à Coreia do Norte

No momento em que Vladimir Putin ruma em direção à Coreia do Norte, aonde chega nesta terça-feira (18/06) para uma visita de dois dias, tanto Moscou quanto Pyongyang esperam que as conversas do líder russo com o ditador norte-coreano Kim Jong-un reforcem o relacionamento entre os dois países, nações consideradas párias por grande parte do mundo.

Espera-se que as conversas produzam uma série de iniciativas econômicas e militares. Os analistas alertam que alguns dos acordos – especialmente aqueles sobre a troca de armas e tecnologia avançada de mísseis e satélites – provavelmente serão mantidos em segredo.

Além desses pactos, no entanto, os dois lados estão igualmente ansiosos para fazer uma grande demonstração de estadismo. Kim Jong-un está desesperado para aprimorar suas credenciais como um importante líder mundial, e as imagens de satélite da capital norte-coreana mostram preparativos suntuosos para a chegada de Putin ao centro de Pyongyang.

Putin, por sua vez, quer demonstrar que a Rússia ainda tem amigos e aliados e que ele está livre para viajar para o exterior, apesar das sanções da ONU e do  

mandado internacional de prisão emitido contra ele pelo Tribunal Penal Internacional por causa do sequestro de crianças ucranianas pelas tropas russas.

·        A "vitória" de Kim ao receber Putin

"A lista de países dispostos a receber Putin está mais curta do que nunca, mas para Kim Jong-un, essa visita é uma vitória", disse Leif-Eric Easley, professor de estudos internacionais da Universidade Ewha Womans, na Coreia do Sul. "O encontro não apenas melhora o status da Coreia do Norte entre os países que se opõem à ordem internacional liderada pelos EUA, mas também ajuda a reforçar a legitimidade interna de Kim."

"Moscou e Pyongyang provavelmente continuarão a negar que cometem violações da lei internacional, mas mudaram notavelmente passando de esconder suas atividades ilícitas para ostentar sua cooperação", disse ele à DW.

"A visita de Putin é, em parte, para agradecer à Coreia do Norte por agir como um 'arsenal para a autocracia' em apoio à sua invasão ilegal da Ucrânia", acrescentou Easley. "Depois que Kim Jong-un viajou para a Rússia para as duas cúpulas bilaterais anteriores, essa visita de reciprocidade é politicamente importante, porque permite que a propaganda de Pyongyang retrate Kim como um líder mundial."

·        Moscou e Pyongyang unidos contra os EUA

Mesmo antes de aterrissar em Pyongyang, Putin anunciou a criação de novos sistemas não especificados para comércio e pagamentos internacionais. A Rússia foi efetivamente excluída das estruturas de cooperação internacional lideradas pelo Ocidente devido às sanções impostas pela guerra na Ucrânia. Da mesma forma, a Coreia do Norte não tem conseguido acessar bancos e outras instalações comerciais como punição por seus programas de armas nucleares e mísseis.

Em um artigo publicado no jornal Rodong Sinmun da Coreia do Norte na manhã desta terça-feira (18/06), Putin disse que a relação entre os dois países é "baseada nos princípios de igualdade, respeito mútuo e confiança".

Ele também expressou sua gratidão à Coreia do Norte pelo apoio de Pyongyang à "operação militar especial" na Ucrânia e disse que os Estados Unidos estão "fazendo tudo o que podem para impor ao mundo a chamada 'ordem baseada em regras', que é essencialmente nada mais do que uma ditadura neocolonial global baseada em um 'padrão duplo'".

·        A "força de vontade" de Putin

Um editorial que acompanha o jornal elogiou Putin como "um político extraordinário", que está "fortalecendo o poder nacional [da Rússia] com suas habilidades refinadas e forte vontade".

Yakov Zinberg, professor de relações internacionais nascido na Rússia da Universidade Kokushikan, do Japão, vê a visita de Putin a Pyongyang como "ameaçadora".

"Essa é uma ameaça calculada à aliança de segurança entre os EUA, a Coreia do Sul e o Japão na região e foi projetada para enviar a mensagem de que ele não apenas é forte em reagir à Otan na Europa, mas que também está sendo forte ao reagir no Extremo Oriente", disse ele.

Zinberg prevê que Kim se comprometerá a fornecer à Rússia mais projéteis de artilharia, além dos milhões de tiros que os analistas acreditam já terem sido enviados para as linhas de frente na Ucrânia. Em troca, Putin continuará a oferecer suporte tecnológico para os projetos nucleares, de mísseis e espaciais norte-coreanos.

A Rússia e a Coreia do Norte negam estar havendo transferência da munição e qualquer cooperação ilegal em tecnologia militar e de satélites.

·        Apoio militar russo à Coreia do Norte?

Lim Eun-jung, professora associada de estudos internacionais da Universidade Nacional de Kongju, na Coreia do Sul, acrescenta que Kim fez a "escolha estratégica" de apoiar a Rússia desde o início da invasão da Ucrânia, em parte para reduzir sua dependência da China para obter apoio político no cenário mundial.

"Kim foi ao Cosmódromo de Vostochny, no extremo oriente russo, em setembro do ano passado, e parece que conseguiu obter mais tecnologia russa avançada", disse ela à DW. "Prevejo que ele busque o mesmo novamente nesse encontro, mas ele também pode pedir um compromisso militar firme de Putin e, se ele conseguir isso por escrito, isso colocaria a Coreia do Norte em uma posição muito forte."

·        Troca de recursos naturais por mão de obra

É provável que Putin também concorde em fornecer os recursos naturais que a economia norte-coreana deseja, incluindo petróleo e gás. Enquanto isso, espera-se que Kim concorde em enviar mais trabalhadores para a Rússia para compensar o déficit causado pelo recrutamento militar.

Lim disse que Kim está, sem dúvida, tirando o máximo proveito do acordo, observando que até mesmo os amigos de Kim na China poderiam fazer objeções à aproximação da Coreia do Norte com a Rússia.

"Essa é uma grande preocupação em Seul, Tóquio e Washington, mas também em Pequim", disse ela.

No entanto, Easley sugere que é provável que existam falhas não muito abaixo da superfície do que é efetivamente uma aliança de conveniência.

"O alinhamento de tais Estados é uma ameaça ao comércio e à paz globais", disse ele. "No entanto, esses Estados não compartilham instituições e valores de aliança duradouros; eles estão apenas fracamente unidos pela resistência à aplicação de leis e normas internacionais."

"Além das democracias ricas, muitos outros governos têm interesses permanentes no comércio e na diplomacia baseados em regras", concluiu Easley. "Eles devem aplicar sanções com urgência, para ajudar a garantir que a visão Putin-Kim das relações internacionais fracasse."

 

Fonte: Deutsche Welle/BBC News Mundo

 

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