Lobby à
mesa: como a indústria age para manter ultraprocessados na dieta do brasileiro
“O
lobby do agronegócio tem sido o mais pesado de todos, e depois vem o da
indústria de alimentos”, confidenciou o secretário extraordinário da Reforma
Tributária, Bernard Appy, durante reunião com representantes da sociedade civil
em 2023, quando se iniciaram as conversas sobre a proposta de revisar a
política de impostos no Brasil. Desde então, os dois setores citados pelo
secretário têm trabalhado juntos em uma pauta comum: frear medidas que buscam
reduzir o consumo de ultraprocessados no país.
Eles
defendem que uma espécie de “terrorismo nutricional” estaria em curso e os
produtos industrializados do tipo, que incluem biscoitos, salgadinhos, macarrão
instantâneo, entre outros, estariam sendo “cancelados” injustamente. A
“ditadura do saudável” é vista como uma ameaça a empresas tradicionais cujos
produtos são ricos em açúcar, gorduras ou sódio, que, em excesso, trazem
prejuízos à saúde.
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Por que isso importa?
• Indústria usa discurso já contestado
pela ciência para subestimar danos à saúde provocados por alimentos
ultraprocessados e influencia decisões políticas como forma de evitar
desestímulos ao seu consumo.
Para
entender como funcionam as forças que operam nos bastidores do Congresso
Nacional e do governo federal, é necessário responder a três questões
fundamentais:
• Indústria quer ultraprocessados na
cesta básica e imposto zero na Reforma Tributária
A
pressão do agronegócio e da indústria de alimentos sobre o governo federal
surtiu efeito. Contrariando recomendação do Conselho Nacional de Saúde,
vinculado ao Ministério da Saúde (MS), e do Ministério de Desenvolvimento
Social (MDS), os ultraprocessados, com exceção das bebidas açucaradas, ficaram
de fora do imposto seletivo – dispositivo criado como forma de desincentivar o
consumo de produtos prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Mas o
empresariado quer mais: ampliar a lista de alimentos que vão pagar alíquota
reduzida ou zero.
“Nós
gostaríamos que os ultraprocessados fossem tributados, entrassem no imposto
seletivo, mas houve uma avaliação de governo que entendeu que, no momento, só
daria para contemplar as bebidas açucaradas, o que nós já consideramos um
avanço”, afirmou a secretária nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do
MDS, Lilian Rahal, em entrevista à Agência Pública.
Já
o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, justificou que
“o grosso dos alimentos ultraprocessados estão na alíquota cheia e já têm uma
diferença de tributação bastante importante [em relação aos itens da cesta
básica, que serão desonerados]”.
Desde
que a proposta do governo federal de regulamentação da Reforma Tributária
passou a tramitar na Câmara dos Deputados, em abril, o foco dos lobistas
voltou-se para o Legislativo, onde contam com importantes aliados.
Parlamentares, principalmente os das bancadas do agronegócio e empresarial, têm
ecoado o discurso da indústria.
“Ultraprocessado
não quer dizer que é totalmente ruim”, defendeu o deputado federal Joaquim
Passarinho (PL-PA), membro do grupo de trabalho da Reforma Tributária, que
analisa o projeto do Executivo, e presidente da Frente Parlamentar do
Empreendedorismo (FPE). No entanto, uma pesquisa do Núcleo de Pesquisas
Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP)
associa o consumo de ultraprocessados à morte de 57 mil pessoas por ano e há
vários estudos que comprovam os malefícios desses alimentos.
“Você
pode acabar com um produto, você pode acabar com uma marca, se você começar a
taxá-la”, argumentou o deputado, que recebeu recentemente em seu gabinete
representantes de fabricantes de refrigerantes. A Pepsico, segundo ele, teria
reclamado do fato de sua água de coco ter sido classificada como uma bebida com
adição de açúcar e, portanto, incluída no imposto seletivo, assim como os
refrigerantes açucarados – as bebidas com zero adição de açúcar não serão
taxadas pelo “imposto do pecado”.
Passarinho
ainda defendeu que a educação alimentar “vem de berço” e que o “refrigerante
não é o culpado da obesidade do Brasil”. Para embasar o argumento, durante
entrevista à Pública, tirou da bolsa um folheto fornecido pela Coca-Cola que
reproduz dados de um estudo que diminui o papel da alimentação na obesidade,
realizado por economistas da Fundação Getulio Vargas, contestado à época e
cujos financiadores não foram divulgados.
Ainda
que tenha reproduzido os argumentos da indústria de bebidas açucaradas, o
deputado afirmou que seu compromisso [no grupo de trabalho] seria apenas com a
inclusão das carnes vermelhas na cesta básica. Para o deputado, o que tem
ocorrido no Congresso é o “lobby oficial e legal”. “Eles têm o direito de
pedir, nós temos o direito de negar”, resumiu.
Na
última campanha, Passarinho recebeu R$ 50 mil de doação do empresário da
indústria da carne Roberto Resende Paulinelli, dono da Friguaçu e do
Frigorífico Rio Maria.
• Cesta básica, a atual “galinha dos
ovos de ouro”
A
pressão da indústria de alimentos e do agronegócio sobre o Congresso Nacional é
para incluir os ultraprocessados na cesta básica, o que os isentaria de
impostos. Atualmente, a proposta de isenção do governo federal é direcionada,
em sua maior parte, a produtos in natura ou minimamente processados, mas também
já contempla produtos como margarina, fórmulas infantis e massas alimentícias.
“Foi
mantido o critério de priorização de alimentos saudáveis”, assegurou Rodrigo
Orair, diretor de programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária e
um dos responsáveis pela formulação do projeto do governo. Ele avalia que a
decisão será “política”. “Quem vai decidir é o Parlamento. O que tem que saber
é a consequência dessas decisões”, afirmou em entrevista à Pública.
Lobistas
trabalham para ampliar a lista. Entre os alimentos defendidos estão as carnes,
incluindo as ultraprocessadas, como salsicha, mortadela e linguiça, citadas
pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) em audiência pública sobre
a Reforma Tributária no último dia 5 de junho na Câmara. “Carnes são essenciais
para o consumo das famílias brasileiras”, argumentou Marcel Caparoz,
representante do grupo na reunião.
“A
salsicha, que é a proteína mais barata que a população pobre tem acesso, não
deveria estar na cesta básica?”, concordou o presidente da Associação
Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), João Dornellas, que também
participou da audiência na Câmara. Em 2015, o alimento foi incluído pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) na lista do grupo 1 de produtos que causam
câncer, em que estão também tabaco, amianto e fumaça de diesel.
“Eu
acho absurdo a indústria colocar na mesa que quem é pobre tem que comer
qualquer coisa”, avaliou a nutricionista Ana Maria Maya, do Programa de
Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa de Consumidores
(Idec). “Isso coloca a população mais vulnerável em uma situação de maior
vulnerabilidade ainda, porque está favorecendo o consumo de alimentos que a
gente sabe que vão ter um impacto negativo na saúde”, concordou Ana Paula
Bortoletto, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e
Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/Usp).
• Quem detém a faca e o queijo
Nessa
etapa da regulamentação da Reforma Tributária, sete parlamentares escolhidos
pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidirão sobre os itens que
vão entrar na cesta básica. Eles compõem o grupo de trabalho cujas sugestões
seguirão para avaliação do plenário da Casa.
Quatro
dos sete deputados do grupo são da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA):
Augusto Coutinho (Republicanos-PE), Moses Rodrigues (União-CE), Claudio Cajado
(PP-BA) e Luiz Gastão (PSD-CE). Três deles, Cajado, Gastão e Joaquim
Passarinho, também fazem parte da Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE).
Gastão e Passarinho ainda pertencem à Frente Parlamentar do Comércio, Serviços
e Empreendedorismo (FCS). Completam o grupo Hildo Rocha (MDB-MA) e Reginaldo
Lopes (PT-MG).
Ao
lado de Passarinho, Cajado é um dos subscritores do Projeto de Lei Complementar
(PLP) 35/2024, proposto pela bancada do agronegócio, que busca adicionar à
lista da cesta básica “biscoitos, bolos e misturas próprias” e “molhos
preparados”, categorias que também incluem ultraprocessados. O projeto,
apresentado em reunião-almoço da FPA, foi um dos 13 protocolados por uma
coalizão de 24 frentes parlamentares sobre a reforma.
Em
entrevista à Pública, o deputado afirmou que não tem um lado na discussão, mas
que “se tivesse, não diria agora”. “Esse cabo de guerra, o que fica, o que pode
ser alterado, é fruto de um debate intenso”, acrescentou. O político disse que
assinou o PLP 35 a pedido de um colega, sem dar detalhes.
Já
o deputado Augusto Coutinho (Republicanos-PE) defendeu que “o setor de
alimentos é fundamental” e que “o agro é quem tem alavancado o nosso país”, mas
que “não tem ainda definição [sobre os ultraprocessados]”.
“Nós
estamos trabalhando dentro de uma harmonia muito grande, de todos os membros do
grupo, mas principalmente buscando consenso do que é possível para que a gente
possa fazer um texto conjunto”,
acrescentou Luiz Gastão. “Todas as reivindicações são lícitas”,
observou.
Como
a prática do lobby ainda não é regulamentada no Brasil, não há transparência
nem obrigatoriedade do registro dos contatos de lobistas com órgãos estatais e
parlamentares. No final de 2022, a Câmara aprovou, a toque de caixa, o Projeto
de Lei (PL) 1.202/2007, que aborda o tema. O texto aprovado pelos deputados
agora tramita no Senado. Porém, conforme mostrou a Pública, pode dificultar a
fiscalização de possíveis abusos.
• Concorrentes nas prateleiras,
parceiras no lobby: quem influencia a mesa do brasileiro
As
associações são importantes atores na articulação política. Quem representa as
empresas de bebidas açucaradas, por exemplo, é a Associação Brasileira de
Refrigerantes (Abir), presidida pelo diretor de relações governamentais da
Coca-Cola, Victor Bicca Neto. Ele também ocupa a vice-presidência do conselho
diretor da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), que, além da
Coca e da Pepsico, conta com 110 associados, como Unilever, Nestlé, Ambev,
Seara, Cargill, Garoto e McDonald’s.
A
Abia é presidida por João Dornellas, que lidera as articulações do setor, de
acordo com várias fontes ouvidas pela Pública. Ele trabalhou por quase 23 anos
na Nestlé e atualmente é membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Industrial do Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio (Mdic) e do
Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias de São Paulo
(Fiesp).
Dornellas
contou que “tem conversado com todos os parlamentares” e também com ministros e
secretários. “A gente tem sido bem recebido. Acho que, democraticamente, todo
mundo tem que defender o seu ponto de vista. A indústria defende o seu ponto de
vista e temos sido bastante ouvidos”, ressaltou em entrevista à reportagem.
Com
o objetivo de aumentar a influência sobre o texto da Reforma Tributária e
atrair apoio da opinião pública, quatro entidades que representam as maiores
empresas de alimentos e bebidas do país lançaram em abril a União Nacional da
Cadeia Produtiva de Alimentos e Bebidas (Uncab).
A
organização reúne, além da Abia e da Abir, as associações das indústrias de
chocolates, amendoim e balas (Abicab) e de biscoitos, massas, alimentos, pães e
bolos industrializados (Abimapi). “Mas por que nós criamos isso? Porque
exatamente nós temos interesse em ter um discurso muito parecido, muito
similar, porque todos nós produzimos alimento para o ser humano”, afirmou João
Dornellas. Com bom trânsito no Legislativo e no governo federal, ele foi o
escolhido para presidir a nova iniciativa.
Segundo
Dornellas, desde a fundação, outras entidades já se associaram à Uncab, como a
União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e a Associação Brasileira de
Proteína Animal (ABPA). “Nós defendemos que todo alimento pague menos imposto.
O alimento da feira livre, da quitanda e o do supermercado, todo alimento
deveria pagar menos imposto”, ressaltou.
De
acordo com a Abia, a indústria dos alimentos tem faturamento anual superior a
R$ 1 trilhão e responde por cerca de 10,8% do PIB nacional. Juntas, as empresas
do setor empregam 1,97 milhão de trabalhadores diretos.
• Brasil gasta R$ 8,2 milhões por dia
para tratar danos de ultraprocessados à saúde
O
consumo de ultraprocessados tem gerado custos à saúde pública brasileira.
Conforme destacou a diretora do Departamento de Análise Epidemiológica e
Vigilância de Doenças Não Transmissíveis do Ministério da Saúde, Letícia
Cardoso, em audiência na Câmara, o Brasil tem gastado R$ 3 bilhões ao ano com
internações no SUS e com tratamentos de doenças relacionadas a bebidas
ultraprocessadas.
A
Uncab informa em seu site que tem entre seus objetivos “desmistificar a ideia
de que a indústria de alimentos e bebidas é a vilã da alimentação nacional”. O
grupo contesta a classificação de alimentos “ultraprocessados” e utiliza o
termo “industrializados” no lugar.
O
coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde, Marcello Baird, aponta “que
não há dúvida dos malefícios causados pelos ultraprocessados”.“O termo
ultraprocessado surgiu pioneiramente aqui no Brasil em 2009, ele foi difundido
pelo mundo e agora, passados 15 anos, ele está bastante estabelecido já na
ciência”, acrescentou.
De
acordo com o guia alimentar para a população brasileira, os ultraprocessados
são “desbalanceados nutricionalmente” e “devem ser evitados”. O guia foi
publicado pelo Ministério da Saúde em 2014 após intensa pressão contrária da
mesma indústria que hoje busca convencer os parlamentares de que os produtos
“não são tão ruins assim”.
Para
o deputado Padre João (PT-MG), que tem articulado com a sociedade civil para
barrar os benefícios aos ultraprocessados, a indústria de alimentos precisa
mudar de estratégia. “Toda essa força-tarefa que eles fazem, eles poderiam
concentrar esses esforços para buscar uma alimentação saudável, produtos mais
saudáveis. Eles querem falar que a gente é contra a indústria. Não é contra,
não. Eles têm que ser responsáveis, consequentes, para promover a saúde das
pessoas”, afirmou à Pública.
• Uncab: influência antes mesmo de
“existir”
Um
coquetel realizado em Brasília na noite de 17 de abril de 2024 marcou o
lançamento da Uncab. “A indústria de alimentos e bebidas não alcoólicas está na
mesa e na vida dos brasileiros”, dizia o panfleto distribuído aos convidados,
com o mote da campanha da organização.
Entre
os presentes no evento estava o deputado federal Luiz Carlos Hauly (Pode-PR),
indicado por Arthur Lira para integrar um segundo grupo de trabalho da Reforma
Tributária que abordará temas como o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), novo
tributo estadual e municipal. Procurado, o parlamentar disse que participa de
muitos eventos por dia e não se lembra especificamente do realizado pela Uncab.
Antes
mesmo do lançamento, o nome da Uncab já aparecia na agenda de atores do governo
federal envolvidos no texto da regulamentação da Reforma Tributária. Em 13 de
março de 2024, representantes da organização foram recebidos pelo ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, e por Bernard Appy, mentor da proposta enviada ao
Congresso. Dirigentes das quatro associações que fundaram o grupo empresarial
participaram da reunião, entre eles Dornellas e Bicca Neto.
A
Pública solicitou a ata e gravações do encontro via Lei de Acesso à Informação
(LAI), mas o Ministério da Fazenda retornou apenas com o nome dos participantes
– informação que não havia sido requerida, uma vez que a agenda dos servidores
do alto escalão é pública. A Pública recorreu, mas ainda não obteve retorno.
Às
vésperas de o projeto de regulamentação da reforma ser enviado à Câmara dos
Deputados, representantes da Uncab também estiveram no Ministério da Saúde. No
dia 11 de abril de 2024, eles se reuniram com o secretário de Atenção Primária
à Saúde, Felipe Proenço de Oliveira, e com o chefe da Assessoria Especial de
Assuntos Parlamentares e Federativos da pasta, Chico D’Angelo. Não houve
gravação nem confecção de ata, conforme informou o ministério por meio de LAI.
Procurados,
os ministérios da Saúde e da Fazenda não responderam quais foram os assuntos
debatidos nas reuniões com a Uncab.
• O conceito de “comida de verdade” que
vai além da publicidade
Para
divulgar a nova iniciativa, a Uncab patrocinou conteúdos em grandes veículos de
notícia brasileiros, como o portal G1 Distrito Federal, do Grupo Globo, e o
jornal O Estado de S.Paulo. Os textos publicados foram identificados como
conteúdos publicitários e assinados pela organização.
Na
publicação patrocinada do Estadão, em 23 de abril, a Uncab informa que foi
criada para “questionar, por exemplo, o aumento de impostos e a não elevação da
carga tributária sobre alimentos e bebidas não alcoólicas”. “Estamos vivendo um
ano desafiador pela discussão da Reforma Tributária no Congresso. Lutar contra
o aumento de impostos significa defender o acesso democrático aos alimentos”,
diz no texto o presidente executivo da Abicab, Jaime Recena.
A
ideia defendida pela indústria, no entanto, vai na contramão do direito humano
à alimentação saudável, na avaliação de fontes ouvidas pela reportagem. “Nós
queremos acabar com a fome com comida de verdade, não é com qualquer comida, e
comida de verdade não inclui ultraprocessado”, afirmou a secretária nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional do MDS, Lilian Rahal.
Os
textos da Uncab publicados no Estadão e no G1 também criticam a classificação
dos alimentos pelo grau de processamento industrial. De acordo com uma
declaração de João Dornellas reproduzida nos dois conteúdos, o conceito de
ultraprocessado “não encontra consenso científico nacional ou internacional” e
seria “constrangedor que venham pedir aumento de imposto sobre qualquer tipo de
alimento”.
Ana
Maria Maya, do Idec, rebate o argumento do presidente da organização. “A gente
não está falando de taxar qualquer alimento, a gente está falando de taxar
produtos que adoecem as pessoas e o meio ambiente, que pioram os desastres
climáticos”, afirmou a nutricionista em entrevista à Pública.
Segundo
ela, é necessário “tornar mais acessível o que é comida de verdade, que
alimenta as pessoas de verdade; que é arroz, feijão, frutas e hortaliças; que é
a cultura alimentar das pessoas, que traz saúde para a mesa das pessoas”.
Ana
Paula Bortoletto, pesquisadora do Nupens/USP, acrescenta que é natural que o
conhecimento científico seja questionado, mas que as críticas da indústria
“costumam ser sem nenhum tipo de argumento ou comprovação científica, e vindo
de pesquisadores que têm conflitos de interesses com a indústria”.
• Empresas admitem que cultura de
alimentação saudável ameaça mercado tradicional
O
discurso “pelo bem social” da indústria muda de tom nos relatórios de risco
produzidos pelas empresas aos seus acionistas no mercado financeiro. De acordo
com os documentos, as companhias temem que mudanças para hábitos mais saudáveis
de vida e alimentação prejudiquem seus negócios.
“O
foco global contínuo na saúde e no bem-estar, incluindo o controle de peso, o
aumento da atenção que a mídia dedica ao papel do marketing de alimentos e a
cobertura negativa da mídia sobre os controles de qualidade e produtos da
Companhia, podem afetar negativamente a imagem da marca da Companhia ou levar a
regulamentações mais rígidas e um maior escrutínio das práticas de marketing de
alimentos”, apontou a BRF em relatório publicado no mês passado.
Associada
da Abia, a BRF é uma das maiores companhias de alimentos do mundo, com mais de
30 marcas em seu portfólio, entre elas Sadia, Perdigão e Qualy. O mesmo
documento cita a mudança na rotulagem de alimentos aprovada pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) após anos de pressão da indústria. A
nova regra obriga que produtos com níveis altos de sódio, açúcar adicionado e
gorduras saturadas apresentem alertas na parte frontal dos rótulos.
“Em
outros países da América Latina onde esses tipos de regulamentação relacionada
à saúde já estão em vigor, a Companhia notou que o volume de vendas de
alimentos processados foi afetado adversamente e o mesmo pode ocorrer no
mercado brasileiro”, aponta o relatório de risco da BRF.
A
JBS, empresa brasileira dona de marcas como Swift e Seara, também associadas da
Abia, alerta seus acionistas de que “mudanças nas preferências do consumidor
podem prejudicar o negócio da Companhia”.
“Percepções
negativas prolongadas em relação às implicações para a saúde de certos produtos
ou ingredientes alimentares ou perda de confiança no sistema de segurança
alimentar em geral, podem influenciar as preferências do consumidor e a
aceitação de alguns dos produtos e programas de marketing da Companhia”, diz a
JBS no relatório da empresa em maio passado.
Procuradas,
a BRF e a JBS não se manifestaram sobre o conteúdo de seus relatórios ou se
investiriam em projetos para colaborar com o consumo de produtos mais
saudáveis.
• Direito, desigualdade e desequilíbrio
Na
avaliação da pesquisadora Ana Paula Bortoletto, o “sistema alimentar” defendido
pela indústria, modelo no qual os ultraprocessados seriam colocados, “olha para
a alimentação muito mais como uma commodity do que como um direito”.
“[É
um sistema que] não valoriza as formas de trabalho e as relações sociais das
pessoas que trabalham, principalmente na produção agrícola, mas também em toda
a cadeia de produção e distribuição de alimentos. Não são apenas os produtos em
si, é toda uma lógica de estimular o consumo excessivo”, afirmou.
Um
levantamento feito pela ACT Promoção da Saúde mostra que, de 2006 a 2022, o
preço dos alimentos teve um aumento 70% maior que o da inflação geral (IPCA).
Ainda nesse contexto, de acordo com a coordenadora da Campanha sobre
Alimentação Saudável da organização, Marília Sobral Albiero, o preço médio dos
alimentos saudáveis ainda teve elevação quase três vezes superior ao de
ultraprocessados. “Você tem uma competição desleal e a gente sabe que o preço
impacta nas nossas decisões de compra”, ressaltou.
“No
sistema atual, a alimentação saudável tem um tratamento igual ou pior ao do
produto ultraprocessado”, acrescentou. Como exemplo, destacou que, hoje, em
alguns estados, nuggets e salsichas têm a mesma carga tributária do arroz e do
feijão.
Fonte:
Por Alice Maciel e Laura Scofield, da Agencia Pública
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