terça-feira, 18 de junho de 2024

Grace Blakeley: ‘A verdadeira democracia é incompatível com o capitalismo’

É cada vez mais difícil ignorar o fato de que a democracia ao redor do mundo está em declínio.

Por um lado, muitos dos Estados mais poderosos do mundo – da China à Arábia Saudita – são governados por administrações autoritárias que parecem estar ganhando cada vez mais força. Por outro lado, o respeito às normas democráticas liberais – como o direito de protesto e a independência do poder judicial – está em declínio nos governos estabelecidos. E muitos estados que pareciam estar no caminho da democracia — como a Hungria e a Turquia — estão presos em uma espécie de purgatório “democrático iliberal”.

No total, cerca de 72% da população mundial vive sob alguma forma de regime autoritário, de acordo com alguns especialistas. Os investigadores da Freedom House afirmam que cerca de 38% da população mundial vive em países que podem ser caracterizados como “não livres”. O acadêmico liberal Larry Diamond chamou o retrocesso da democracia ao redor do mundo de “recessão democrática”.

A erosão da democracia tem sido particularmente difícil de conceitualizar para os liberais. Afinal de contas, as coisas não deveriam ser assim.

A queda do Muro de Berlim deveria ter finalmente colocado um fim a todas as questões pendentes sobre a compatibilidade entre a democracia e o capitalismo. Este último iria inevitavelmente expandir-se, trazendo consigo os direitos e as liberdades que muitos no mundo rico tinham acabado de tomar como garantidos. O resto do mundo estava destinado a convergir para o modelo pioneiro do Ocidente.

Teóricos liberais e os decisores políticos apresentaram uma série de argumentos para explicar a aparente contradição entre a expansão do capitalismo e o retrocesso da democracia.

Aqueles à direita do espectro político atribuem o problema aos “inimigos da democracia” estrangeiros. Para estes pioneiros da nova Guerra Fria, Xi Jinping e Vladimir Putin – embora, curiosamente, não Mohammed bin Salman ou Viktor Orbán – são os culpados pela lavagem cerebral dos povos ocidentais amantes da democracia com propaganda autoritária.

Os centristas tendem a afirmar que a verdadeira questão são os “extremistas de ambos os lados”, argumentando que socialistas democráticos como Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, que nunca chegaram sequer perto de alcançar o poder de Estado, partilham tanta culpa pelo retrocesso democrático como antigos líderes mundiais da direita populista como Boris Johnson e Donald Trump.

Todas as avaliações do problema são, obviamente, inteiramente individualistas. Muitos liberais acreditam genuinamente que o maior desafio à democracia atual são alguns”vilões” corrompendo um sistema que, de outra forma, funcionaria bem.

Estes argumentos são, obviamente, completamente absurdos. O apoio à democracia não está em declínio porque os eleitores estão sofrendo uma lavagem cerebral pela propaganda inimiga no TikTok. O apoio à democracia está em declínio porque a democracia simplesmente não está funcionando da maneira que nos disseram que funcionaria.

Em primeiro lugar, a combinação de capitalismo e democracia deveria trazer prosperidade e progresso para todas as nações que os adotassem. Por um breve período após a queda do Muro de Berlim, quando a globalização entrou em ritmo acelerado, essa parecia uma história crível.

A crise financeira pôs fim a esta ilusão coletiva no Norte Global. Os membros da geração que atingiu a maioridade durante a crise de 2008 tiveram de se adaptar à realidade de que é improvável que sejam mais prósperos do que seus pais.

Mas mesmo antes da crise financeira, a crise asiática do final da década de 1990 mostrou a muitos no mundo em desenvolvimento que a abertura dos mercados ao capital internacional poderia ser uma receita para o desastre. Alguma combinação de autoritarismo e controles de mercado parecia a resposta natural.

Em segundo lugar, o progresso trazido pela democracia e pelo capitalismo deveria gerar ainda mais democracia. Freios e contrapesos colocariam fim à corrupção. Uma população educada escolheria os líderes “certos”. E, em vez de fazer campanhas baseadas em ideologias ultrapassadas, esses líderes competiriam por votos apelando ao “eleitor mediano”, trazendo moderação a sociedades anteriormente divididas.

Em vez disso, a corrupção está em ascensão, a ideologia está de volta e as pessoas continuam escolhendo os líderes “errados”. Talvez a criação de sociedades tão estratificadas, em que a classe dominante mal consegue compreender as preocupações dos eleitores comuns, não tenha sido uma receita tão infalível para a democracia, afinal.

Alguns comentaristas um pouco mais ponderados aceitam que esta leitura incrivelmente simplista pode não captar toda a história. Em uma nova série de podcasts para o Financial TimesMartin Wolf parece genuinamente preocupado com o futuro da democracia — e aceita uma pequena parte da culpa para si e para seus colegas.

O problema, parece acreditar Wolf, é que os neoliberais, em todo o seu zelo pelo fim da história, espalharam os mercados livres longe demais e rápido demais. A terapia de choque dos anos 1990 não foi acompanhada de medidas para aliviar as tensões sociais e econômicas que vieram com ela.

O argumento faz lembrar o apresentado pelo teórico político progressista Karl Polanyi, que acreditava que os mercados livres capitalistas se espalharam rapidamente demais para que as sociedades pudessem se adaptar. Aqueles cujas vidas e ideais foram ameaçados pelo surgimento desse novo e corajoso mundo reagiriam contra a invasão da “sociedade de mercado” — muitas vezes apoiando homens fortes autoritários para fazê-lo.

Liberais progressistas como Wolf tendem a acreditar que a solução para o problema virá em alguma forma de capitalismo regulado. Frequentemente, esses comentaristas são keynesianos que defendem um retorno ao consenso social-democrata do período pós-guerra.

Mas esse tipo de nostalgia não é mais saudável do que aquela manifestada pelos fãs de Trump que anseiam por um retorno a um mundo antes da disseminação da “ideologia de gênero”. Afinal, há uma razão pela qual o consenso keynesiano se desintegrou.

Assim que o crescimento econômico desacelerou, a batalha latente entre trabalhadores e patrões, que vinha borbulhando abaixo da superfície, de repente explodiu para a principal corrente política. Sem lucros excessivos extraídos do resto do mundo para manter esse conflito sob controle, restou apenas uma escolha para a classe dominante: guerra total contra os trabalhadores.

Por esse motivo, apesar de ser absurdamente óbvio que democracias capitalistas precisam de medidas para reduzir a desigualdade enquanto enfrentam a crise climática, a visão capitalista progressista para o futuro não tem nenhuma chance de ser implementada.

Resta apenas uma conclusão a ser tirada — que o capitalismo e a democracia nunca foram realmente tão compatíveis desde o início.

 

¨      Um Estado forte para uma democracia forte. Por Luiz Carlos Bresser-Pereira

Para as sociedades capitalistas, o paradigma desejável e possível é o de um Estado forte, capaz, para uma democracia igualmente forte. A ideia de um Estado forte parece estar em contradição com uma democracia forte, mas não é isso o que mostra a realidade. A Suiça e a Finlândia são exemplos de países nos quais esse ideal está próximo de ser alcançado, mas esta afirmação requer definir o que é uma democracia forte e um Estado capaz.

O Estado é o sistema constitucional-legal e a organização que o garante, enquanto o Estado-nação é a sociedade político-territorial soberana formada por uma nação, um Estado e um território. Um Estado é capaz quando a Constituição e demais leis do país são cumpridas. Algo que não depende apenas do poder de polícia do Estado, mas também e principalmente da coesão da sociedade em torno do Estado.

Em outras palavras, depende de toda a sociedade entender que a lei é necessária para a vida da sociedade, e de que cada cidadão considere seu dever denunciar aqueles que agem contra ela. Ao agir assim, ele não será um “dedo-duro”, mas um cidadão que cumpre o seu dever. No plano econômico, é capaz o Estado que tem o poder efetivo de tributar – de aumentar impostos quando isto é necessário para assegurar o equilíbrio fiscal.

A nação é a forma de sociedade de cada Estado; ela compartilha uma origem, uma história e objetivos comuns, estes explícitos ou implícitos no sistema jurídico. Uma “boa” sociedade é aquela que é relativamente coesa. Nunca é plenamente coesa, porque há a luta de classes e um número infinito de conflitos entre os cidadãos, mas esta luta ou estes conflitos não são radicais, não implicam uma relação de vida ou morte – e, portanto, podem coexistir com uma nação ou uma sociedade civil (outro nome da sociedade de cada Estado) relativamente coesa.

A democracia forte, por sua vez, é a democracia consolidada. É a democracia existente em um país ou Estado-nação que completou sua revolução capitalista – já formou seu Estado-nação e realizou a sua revolução industrial. E, por isso, a nova classe dominante burguesa já não precisa do controle direto do Estado para se apropriar do excedente econômico (ela pode realizá-lo no mercado através do lucro).

É o regime político no qual as novas e amplas classe média e classe trabalhadora que nasceram da revolução capitalista preferem a democracia. Na prática, uma democracia forte é aquela que soube resistir às pressões antidemocráticas do neoliberalismo e, depois, do seu bebê maligno – o nacional-populismo de direita.

Embora a democracia seja o melhor regime político para um país que completou sua revolução capitalista, essa mesma democracia enfraquecerá o Estado dos países que ainda não a realizaram. E poderá igualmente enfraquecer os Estados de países de renda média, que já realizaram sua revolução capitalista, como é o caso do Brasil, ao ser essa democracia caracterizada por uma polarização que a torna incapaz de fazer compromissos necessários para realizar as reformas institucionais. O império sabe disso, e usa a democracia para garantir a sua dominação sobre os países da periferia do capitalismo.

A prioridade dos países de renda média é, portanto, fortalecer o seu Estado, porque assim estarão fortalecendo sua democracia; é tornar sua nação mais coesa; é livrá-la do conflito entre os liberais que se submetem ao império e os que buscam soluções nacionais para os problemas.

Não existe um caminho claro para alcançar maior coesão nacional. Porém, o simples fato de as elites sociais – não apenas as econômicas, mas também as políticas, intelectuais e organizacionais – saberem da necessidade dessa maior coesão já é um passo nessa direção.

O Brasil é um “Estado-nação-quase-estagnado” há 44 anos, cresce mais lentamente que os países ricos e mesmo que as demais nações em desenvolvimento – não realiza, portanto, o esperado alcançamento (“catching up“). Precisa, portanto, dramaticamente fortalecer a sua nação e o seu Estado para deixar de ficar para trás – como tem ficado neste quase meio século.

 

Fonte: Tradução de Sofia Schurig para Jacobin Brasil/A Terra é Redonda

 

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