segunda-feira, 24 de junho de 2024

Fabiana de Moraes: ‘Deputados, vocês não tem vergonha do PL do Estupro?’

EU TINHA SEIS ANOS de idade quando fui abusada sexualmente pela primeira vez. Era um homem da minha própria família e que tinha a confiança de todas as pessoas ao redor.

Aconteceu mais de uma vez: ele tirava a roupa, ficava somente de cuecas, me colocava na cama e passava a mão por todo meu corpo, se detendo nas partes íntimas. Se masturbava. Anos depois, eu soube que ele fazia o mesmo com outra criança da família com a qual eu não tinha, naquele momento,  contato.

Eu não fazia ideia do que era aquilo, nem o que significava o volume entre suas pernas. Eu tinha uma boneca de plástico, a cara bem redonda, chamada Dafne. Eu gostava de ver na TV os desenhos do Scooby Doo. Gostava do Mickey Mouse também. Eu tinha uma camisola branca com borboletas azuis.

Minha mãe e meu pai passavam o dia (e às vezes a noite) no trabalho e precisavam delegar os cuidados das crianças a outras pessoas, gente, repito, que tinha a confiança de todo mundo.

Era uma pessoa que performava amor e cuidado comigo quando estava na frente de outros adultos, o que lhe blindava. Ele falava nesse tom de amor e cuidado quando me levava para a cama.

Faço 50 anos daqui a alguns meses. E nunca, nunca, consegui verbalizar o que aconteceu para os meus pais. O meu coração volta a ter seis anos, e relembrar aqueles momentos traz à tona parte da confusão, da humilhação, da agressão, do medo e do nojo que me invadiam.

A sensação de ser suja. A sensação de ser indigna. A sensação, ao olhar os outros parentes, de ser uma espécie de traidora. Mas era mesmo correto sentir tudo isso, uma vez que aquela pessoa dizia que me amava? Então, calava.

Agora, escrevendo, ainda reverbera aqui parte desses sentimentos: nenhum deles está relacionado a uma infância sem violência, e essa infância eu jamais poderei ter. Mas repito para mim, como profilaxia para a alma, que quem deve ter vergonha não sou eu. Não sou eu. Não sou eu.

Estou falando agora e abertamente – e de pé, e fortalecida – desses abusos com um endereçamento muito preciso.  Eu envio esse texto a todos e todas parlamentares da lista abaixo.

A lista de quem propôs o Projeto de Lei 1904/2024, no qual uma criança vítima de estupro, caso interrompa a gravidez após a 22 semana, pode ser acusada de homicídio.

No qual uma pessoa também maior de idade pode ser criminalizada pela mesma razão, mesmo vítima de violência, mesmo se a gestação representar risco de morte, mesmo se o feto tiver anencefalia fetal.

Quero que as pessoas da lista abaixo saibam um pouco o que sente uma criança abusada dentro da própria casa e por uma pessoa de confiança, como acontece com a vasta maioria dos casos de abusos e estupros nesse país: a cada 10 casos de violência contra menores, oito são cometidos por parente próximo.

É por isso que tenho certeza: esse texto não é só meu, mas segue escrito por milhões de crianças de ontem, de agora, de amanhã. Assim, me dirijo a vocês,

•           1. Abilio Brunini – PL/MT

•           2. Bia Kicis – PL/DF

•           3. Bibo Nunes – PL/RS

•           4. Capitão Alden – PL/BA

•           5. Carla Zambelli – PL/SP

•           6. Cezinha de Madureira – PSD/SP

•           7. Cristiane Lopes – UNIÃO/RO

•           8. Dayany Bittencourt – UNIÃO/CE

•           9. Delegado Palumbo – MDB/SP

•           10. Delegado Paulo Bilynskyj – PL/SP

•           11. Delegado Ramagem – PL/RJ

•           12. Dr. Frederico – PRD/MG

•           13. Dr. Luiz Ovando – PP/MS

•           14. Eduardo Bolsonaro – PL/SP

•           15. Eli Borges – PL/TO

•           16. Ely Santos – REPUBLIC/SP

•           17. Evair Vieira de Melo – PP/ES

•           18. Filipe Martins – PL/TO

•           19. Franciane Bayer – REPUBLIC/RS

•           20. Fred Linhares – REPUBLIC/DF

•           21. Gilvan da Federal – PL/ES

•           22. Greyce Elias – AVANTE/MG

•           23. Junio Amaral – PL/MG

•           24. Julia Zanatta – PL/SC

•           25. Lêda Borges – PSDB/GO

•           26. Mario Frias – PL/SP

•           27. Nikolas Ferreira – PL/MG

•           28. Pastor Eurico – PL/PE

•           29. Pezenti – MDB/SC

•           30. Renilce Nicodemos – MDB/PA

•           31. Simone Marquetto – MDB/SP

•           32. Sóstenes Cavalcante – PL/RJ

Quero acrescentar outro nome extremamente importante na lista:  o do presidente da câmara dos deputados, Arthur Lira (PL/AL) que pautou o pedido de tramitação em urgência e comandou a sessão-relâmpago na qual o PL 1904/24 foi aprovado em apenas 23 segundos para entrar na lista de votação do Congresso.

<><> Pergunto: vocês não têm vergonha?

Desejo honestamente que seus filhos e filhas, netos e netas, sobrinhas e sobrinhos, nunca passem pelo horror de ter uma pessoa manipulando seus corpos de criança. Um cínico que parece amar e proteger enquanto, na verdade, se esfrega em meninas e meninos, muitas vezes até gozar.

Desejo que nunca se sintam, do alto de seus seis, sete, doze anos, pessoas sujas, indignas, traidoras.

Desejo que nunca nem cheguem perto do que passaram 61,2% das vítimas de estupro no Brasil em 2021,  todas crianças entre 0 a 13 anos. Em 2022, foram quase 41 mil vítimas de 0 a 13 anos. Quase sete mil delas tinham entre 0 e 4 anos. Onze mil, entre 5 e 9 anos.

Em 2023, somente nos quatro primeiros meses do ano,  17.500 violações sexuais contra crianças ou adolescentes foram registradas pelo Disque 100, um aumento de quase 70% em relação ao mesmo período de 2022 (Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania). Seis em cada dez vítimas de violência sexual no Brasil têm no máximo 13 anos.

Muitas delas não tiveram, como eu, a sorte de não engravidar: comecei a menstruar com apenas 11 anos, mas felizmente o abusador já havia mudado para outro estado, bem longe de mim, e deixado de frequentar quase diariamente a minha casa.

Mas várias crianças engravidam e, apesar de terem o direito legal de interromper a gravidez, já enfrentaram até mesmo uma ministra (a hoje senadora Damares Alves, Republicanos) que tentou impedir o procedimento em uma menina de 11 anos. 

Agora, com a repercussão negativa da proposta, vocês se articulam para “deixar o assunto esfriar” e voltarem à tona após as eleições municipais. Não querem perder votos e estão pensando unicamente – não que isso seja uma novidade – em vocês.

Essa estratégia mostra bem o tipo de atenção e amor que vocês realmente têm para com crianças e mulheres que dizem defender. Vocês me lembram exatamente o homem que me abusou e que me tratava com respeito somente enquanto estava na frente de outras pessoas.

•           Pergunto: vocês não têm vergonha?

Agora, a senhora deputada federal Renilce Nicodemos (MDB/PA)  apresentou um requerimento à Mesa Diretora da Câmara para que a sua assinatura seja retirada do projeto de lei.

Disse, convenientemente após as manifestações contra o PL que começaram a pipocar em todo país, que o projeto não está “de acordo com o meu pensar e a forma com a qual eu defendo crianças e mulheres”.

Em um país com média anual de 822 mil estupros, um a cada dois minutos segundo o IPEA,  pergunto que medidas e projetos a deputada e seus colegas de parlamento já apresentaram para apoiar essas vítimas.

Que medidas levantaram para garantir seus acessos a serviços médicos e terapêuticos.  Que medidas  tomaram para promover que famílias e principalmente mães pobres tenham a oportunidade de deixar filhas e filhos em espaços seguros como creches ocupadas por profissionais capacitadas/os.

•           Pergunto: vocês não têm vergonha?

Faço a mesma indagação para o Conselho Federal de Medicina, cuja guerra contra as mulheres já foi denunciada pelo Intercept Brasil nesse excelente texto de Bruna de Lara.

O presidente da entidade, José Hiran da Silva Gallo, afirmou recentemente no Senado Federal, após uma grotesca apresentação de uma atriz simulando um feto, que a autonomia das mulheres deve ser limitada quando se fala na interrupção legal da gravidez após a 22 semana.

O caso é que essa autonomia já é limitada bem antes disso, e não é por obtusidade, e sim por oportunismo, que essa realidade é ignorada pela entidade.  

Sabendo que há décadas meninas, mulheres e pessoas que gestam já passam por limitações ao procurar os serviços médicos, a que tipo de impedimento o presidente se refere?

Será que ele lembra do caso de uma criança de 10 anos, moradora de Israelândia, interior de Goiás, que vinha sendo estuprada desde os 7 anos de idade por dois vizinhos, um de 65 anos e outro de 52? Sua família só descobriu a gravidez depois que a menina desmaiou em casa e foi levada para um hospital.

Os pais denunciaram os criminosos e procuraram postos e hospitais para o aborto legal, mas um padre, o bispo da região e até o promotor de justiça fizeram de tudo para a vítima não ter acesso a um direito garantido por lei. Esse absurdo aconteceu em 1998. Caso o presidente do CFM tenha esquecido, deixo aqui o link para refrescar sua memória (https://oglobo.globo.com/blogs/blog-do-acervo/post/2024/06/a)

Os pais dessa menina e principalmente a própria, hoje com 36 anos, podem falar com propriedade sobre o que é ter a  autonomia limitada. Ela, tenho certeza, nunca vai esquecer dos cheiros daqueles homens.

Do sentimento de nojo de si, da confusão entre amor e abuso, da autoestima em ruínas que resulta do corpo violado. O que vocês estão fazendo, em nome de constranger e “testar” um governo (como disse o autor do projeto, o pastor Sóstenes Cavalcante), é nefasto.

•           Pergunto: vocês não têm vergonha?

Termino citando um dos primeiros livros que li, quando me alfabetizei aos seis anos. Era a época em que eu via Scooby-Doo, brincava com Dafne e gostava de me sentir uma espécie de princesa com minha camisola branca de borboletas azuis.

Na época em que era abusada, tinha uma bíblia pequena e com a capa cinza na minha casa, e eu achava entre fascinante e assustador o que estava escrito ali. Mas até hoje recordo que vibrei com a insurgência de Cristo:

Jesus entrou no templo e expulsou todos os que ali estavam comprando e vendendo. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas/e lhes disse: “Está escrito: ‘a minha casa será chamada casa de oração; mas vocês estão fazendo dela um covil de ladrões'” (Mateus 21:12-13).

Criança não é mãe. Estuprador não é pai. E estamos atentas ao que vocês farão após as eleições municipais. Esse assunto não vai esfriar.

*

Em tempo:

Chegou a hora de a imprensa parar de chamar meramente de  “pauta de costumes” medidas que tratam da vida e morte de milhões de pessoas desse país. Ninguém está falando como se comportar à mesa ou no espaço coletivo.

Não se trata de uma discussão sobre escolher guardanapo de tecido ou papel. Nas pautas sociais discutidas no legislativo estão decisões sobre se vamos comer mais ou menos veneno, se vamos proteger crianças e jovens de medidas que podem os excluir, se vamos, enfim, permitir que uma pessoa violentada seja criminalizada e ainda tenha sua pena maior do que aquele que a agrediu.

RELEMBRE

<><> Aborto de menina estuprada virou briga com cidade toda e igreja há 25 anos

Há 25 anos, uma família enfrentou uma cidade, igrejas e a Justiça ao buscar um aborto legal para uma criança que engravidou após ter sido estuprada por vizinhos.

•           O que aconteceu

Caso aconteceu em setembro de 1998, na cidade de Israelândia, localizada a 200km de Goiânia. A família só descobriu que a criança de 10 anos estava grávida após ela desmaiar e ser levada ao hospital, onde exames constataram a gravidez.

A garota vinha sendo estuprada desde os 7 anos, por dois vizinhos da família, um de 65 e outro de 52 anos. Assim que descobriram a situação, os pais denunciaram os criminosos e decidiram submeter a filha a um aborto.

A cidade em que eles viviam, no interior de Goiás, tinha cerca de 3 mil habitantes — e grande parte deles se mobilizou contra a decisão da família. Segundo o jornal O Globo, assim que a notícia se espalhou, a família passou a sofrer assédio moral de vizinhos, que chegaram a organizar uma romaria na porta da casa deles pra protestar contra o aborto.

<><> Igreja também tentou interferir

Ainda de acordo com a publicação, o bispo da região mandou rezar uma missa pela vida do feto e disse durante uma celebração que o aborto naquele caso seria como jogar uma criança no lixo, enquanto o padre da paróquia local chegou a perguntar ao pai da vítima se ele teria coragem de cortar o pescoço da filha, comparando as duas situações.

Um promotor de Justiça também tentou trabalhar para impedir a vítima de ter acesso ao aborto -- um direito garantido por lei. Justificando com laudos médicos que a gestação colocava a garota em risco, um juiz da comarca local emitiu um parecer favorável à cirurgia. Depois disso, um promotor público apresentou recurso -- que o Tribunal de Justiça de Goiás rejeitou.

A lei brasileira permite o aborto em três casos: gestação após estupro, risco de morte para a mãe e fetos anencefálicos. Não há restrição de tempo para o procedimento em nenhum dos casos.

O assédio e as dificuldades não fizeram a família da criança mudar de ideia. Então, eles foram a São Paulo para realizar o procedimento no Hospital Jabaquara. Houve protestos na porta do prédio e uma médica se disse contra a cirurgia.

<><> "Ela tem direito legal de interromper essa gravidez"

Na época, o ginecologista Jorge Andalaft Neto, médico que integrava a comissão do Programa de Abortamento Legal do módulo 12 do PAS (Programa de Atendimento à Saúde), disse à Folha de S.Paulo: “A família já foi informada da decisão e optou pelo aborto. Essa era uma gravidez indesejada, tanto pela família quanto pela menina. Ela tem direito legal de interromper essa gravidez.”

Somente em 3 de outubro a criança foi submetida a uma microcesariana com anestesia geral. Na época, a gravidez já tinha atingido 18 semanas. "Estou aliviada", descreveu a mãe da vítima. "O pesadelo acabou", afirmou o pai.

 

Fonte: The Intercept/UOL

 

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