Violência
contra idosas: quando o trabalho doméstico vira escravidão
A
falta de um olhar para o trabalho do cuidado de pessoas de famílias
empregadoras ou doméstico, realizado por idosas que desempenharam funções
análogas à escravidão em áreas rurais, dificulta a identificação de violência
contra esta parcela de mulheres. A conclusão é da procuradora do Ministério
Público do Trabalho, Juliane Monetti, que atua na área de combate a este tipo
de trabalho há 15 anos.
Segundo
a procuradora, anteriormente era comum encontrar nas operações de fiscalização,
em áreas rurais, homens em condições análogas à escravidão. Mas, no caso de
mulheres, não havia resgates. De acordo Juliane Monetti, elas estavam
desempenhando funções na cozinha das próprias casas para alimentar os
trabalhadores da propriedade. Segundo a procuradora, a justificativa era de que
essas mulheres não estavam prestando serviços para as famílias e, por isso, não
eram incluídas na condição de trabalho análogo à escravidão.
“Um
trabalho exercido no âmbito doméstico também é um trabalho. Tem uma questão de
gênero muito forte, porque mulheres que estão trabalhando com as famílias e são
levadas pequenas para trabalhar de babá, depois viram faxineira, cozinheira e
no final da vida fica cuidando dos mais velhos, isso era muito naturalizado”,
explicou, indicando que, hoje, os casos de trabalho do cuidado já estão sendo
mais foco de atenção.
De
acordo com a procuradora, neste caso, a defesa das pessoas é dizer que a mulher
é como uma pessoa da família, mas, na verdade, “ela não está no inventário, não
vai ser herdeira, não foi para a escola, não tem uma profissão, não tem
liberdade para fazer uma viagem de férias. Essa pessoa está ali apenas para
servir fazendo o trabalho do cuidado. Acho que a sociedade amadureceu esse
olhar e passou a perceber que essas mulheres nessa condição, a maioria é de
idosas, é exploração do trabalho”, afirmou.
• Caso Maria de Moura
Uma
situação de violência contra idosos que chamou muita atenção quando foi
descoberta é a de Maria de Moura, de 87 anos. Em 2022, depois de uma operação
do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ) em conjunto com o
Ministério do Trabalho e Emprego, ela foi resgatada da casa de uma família,
para a qual, por 72 anos, desempenhou funções de doméstica. Os fiscais, que
chegaram ao local depois de uma denúncia, constataram que a idosa estava em
situação análoga à escravidão.
Ana
Luiza de Moura Lima, de 42 anos, sobrinha de Maria, disse que a história da tia
começa quando, aos 12 anos, ela foi trazida de Vassouras com o argumento de que
faria companhia à filha dos patrões dos pais de Maria que também estava se
mudando para o Rio. Eles trabalhavam na fazenda daquela família, no município
do centro-sul do estado do Rio. Com o passar dos anos, a promessa de que teria
uma vida igual à da menina não foi cumprida e, na verdade, Maria era doméstica
da casa, no bairro de Maria da Graça, na zona norte da capital fluminense, e
nem mesmo frequentou escolas.
“O
mesmo tratamento da menina, dariam para a minha tia. Escola, alimentação, eram
duas crianças. Minha avó, vendo, pelo menos, um filho ter educação, deixou a
minha tia vir. Minha tia, negra, longe da família e pobre ficava em casa
enquanto a outra ia estudar e, ali, aconteceu, virou empregada do lar. A minha
tia não tem escolaridade, muito mal sabe escrever o nome”, revelou Ana Luiza à
Agência Brasil.
A
menina cresceu, e quando casou se mudou para o bairro do Méier, também na zona
norte, levando Maria, que continuou com os trabalhos de doméstica e cuidando da
família da patroa. Ana Luiza suspeita que a tia era induzida a esconder a
condição de vida. “Sempre que a gente entrava no assunto carteira assinada,
benefícios, ela falava ‘isso é comigo, eles fazem tudo direitinho’. Nunca deu
espaço para a gente brigar por ela sobre isso”, relatou, acrescentando que o
patrão acuou a tia no carro, no momento em que ela estava sendo resgatada. “Uma
pessoa que fez isso na frente das autoridades, imagina o que fazia quando
estavam só ela e eles”.
Os
parentes ainda conseguiam ter algum tipo de contato com ela, que, quando era
mais nova, chegava a se encontrar esporadicamente com a mãe, em Vassouras, nas
vezes em que os patrões iam à fazenda e, quando podia ir sozinha, permanecia no
máximo por dois dias. No entanto, durante a pandemia, as dificuldades de falar
com a tia se agravaram, e ela nem atendia o celular.
“Na
pandemia, perdemos o contato total, e quando eu ligava, o telefone só tocava e
ninguém atendia”, disse acrescentando que isso aconteceu até o dia em que o
patrão, neto do casal que trouxe Maria para o Rio, atendeu, e ao ser
questionado por Ana Luiza sobre o que estava ocorrendo, respondeu que não
estava acontecendo nada.
Segundo
a sobrinha, quando a tia foi resgatada no Méier, ela apresentava sinais de
demência e de comprometimento da visão no olho direito, em consequência de uma
cirurgia de catarata malsucedida e com o outro já não enxergava. Foi assim que
a idosa chegou à casa da sobrinha, na Cidade de Deus, zona oeste do Rio, onde
passou a morar com a família. A idosa perdeu as forças nas pernas e atualmente
não consegue caminhar.
“Hoje
o meu sentimento é de revolta. Tenho hoje uma escrava viva dentro do meu lar.
Infelizmente é triste, mas essa é a realidade. Ela abdicou da vida dela,
trabalhou a vida toda para brancos. Uma negra que, desde lá de trás, trabalhou
para branco a vida toda. Ela recebeu todos os maus tratos que um escravo
recebia lá atrás dos patrões. Eles diziam que ela fazia parte da família. Isso
não acontecia, porque quando se faz parte da família, usa todos os cômodos da
casa, todos os veículos. Ela só era empregada, e sempre foi. Nós, os parentes,
não podíamos chegar lá sem avisar, porque a casa não era dela”, desabafou Ana
Luiza.
• Denúncia
A
procuradora do Ministério Público do Trabalho, Juliane Monetti, contou que a
família de dona Maria tentava contato, mas o patrão a repelia e não deixava.
Para estar com ela, tinha que ser na presença dele. Nem para falar no celular,
ele deixava. “Realmente era uma violência constante não só pela exploração do
trabalho, mas também a violência psicológica. A família [dela] foi denunciando
a um órgão e outro, até que chegou ao Ministério Público do Trabalho. Aí,
conseguimos fazer uma operação que resgatou a trabalhadora dessa condição de
violência. Essa é uma situação que a gente tem verificado, em casos de
exploração em trabalho doméstico que se repete”, informou em entrevista à
Agência Brasil.
A
procuradora identificou que o caso tem componentes de gênero e de idade, comuns
em condições em que a trabalhadora já convive com a família nessa situação de
trabalho doméstico há muitos anos. Situação que acaba se repetindo porque a
sociedade vai naturalizando.
“O
que é importante é que a gente divulgue os casos que existem para que as
pessoas percebam que isso é irregular, é ilegal, é um crime e que a sociedade
possa denunciar situações como essa. Quando você percebe que existe uma pessoa
convivendo com uma família e está ali apenas para prestar serviço e servir, os
direitos trabalhistas e a cidadania não são respeitados”, completou.
• Ressarcimento
Como
se trata de uma grave violação de direitos humanos, e foi configurado trabalho
análogo à escravidão, não incide a prescrição. Por isso, o MPT propôs uma ação
em que pede o pagamento das verbas trabalhistas de todo o período desde que foi
morar com a família. “Além disso, a gente também pede indenizações por danos
morais causados para a trabalhadora pela vida toda dedicada a este trabalho sem
dignidade, com desrespeito aos direitos mais básicos de cidadania e direitos
humanos. Mas, infelizmente, por maior que seja a indenização que ela venha a
receber, isso não repara uma vida toda nessa situação”, disse a procuradora do
MPT.
Depois
de denúncia do Ministério Público Federal, em março de 2024, a Justiça tornou
réus mãe e filho. Os dois eram patrões de dona Maria. “A gente está buscando os
direitos trabalhistas dela e toda essa documentação, toda a configuração do
crime, tudo isso foi encaminhado ao Ministério Público Federal, que entrou com
ação penal contra os réus. Eles estão respondendo na Justiça Federal como réus
pela exploração de crime de submissão de trabalhador à condição análoga à
escravidão”, completou Juliane Monetti.
Em
2017, a procuradora atuou em outro caso, no interior de Minas Gerais. Dessa
vez, uma senhora de 67 anos, que o cartão da aposentadoria ficava na mão da
patroa e, ainda, era obrigada a comprar a sua comida na venda do pai da
empregadora. Ela também não podia sair nos fins de semana, porque tinha que
cuidar dos netos da família. “Era uma senhora viúva que não tinha para onde ir
e acabou caindo nessa situação de exploração deste trabalho”, relatou,
defendendo a divulgação dos canais de denúncias para incentivar a sociedade a
fazer os registros.
Fonte:
Agencia Brasil
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