Por que o
Nordeste está na dianteira da luta climática?
Por
séculos, as únicas tragédias provocadas pelo clima no Brasil eram as “secas do
Nordeste”, como diziam as manchetes dos jornais e os noticiários da televisão.
As imagens de crianças famintas, migração em massa e gado morto construíram o
estereótipo da região como um peso para o resto do país. As elites locais
reforçavam esse estigma com seus líderes políticos sempre exigindo mais verbas
do Governo Federal.
Por
isso, soou assustadora a projeção de que o Nordeste brasileiro será uma das
três regiões do planeta que mais irá sofrer com secas prolongadas e aumento do
calor provocado pelo aquecimento global – as outras duas são o sul da Europa e
da Austrália.
Os
efeitos das mudanças climáticas já são percebidos, mas o cenário não é de
tragédia. Para entender o que está acontecendo, entre o final de maio e os
primeiros dias de junho, equipes da Marco Zero visitaram comunidades na Bahia,
Ceará e Paraíba em parceria com a Rede de Assistência Técnica e Extensão Rural
de Agroecologia (Rede Ater NE).
O
resultado dessas viagens será apresentado na série de reportagens A reinvenção
do Nordeste. Nas próximas semanas vamos contar como a sociedade civil se
articulou de maneira inédita na história do país para construir soluções
capazes de, ao mesmo tempo, gerar renda, produzir alimentos e conservar o
ambiente.
“A
vida aqui melhorou 100%. Economicamente nem se fala, mas melhorou mesmo porque
estamos mais organizados e, agora, temos mais conhecimento da realidade”. A
afirmação do agricultor Antônio José da Silva, conhecido pelos vizinhos como
Antônio Cadete, de 61 anos, parece desconectada dos efeitos das mudanças
climáticas no semiárido,
a
exemplo da mais longa seca da sua história de 2012 a 2018; maior irregularidade
das chuvas; calor até três graus acima da média histórica durante o verão e
registro de um extenso território que passou para a condição de aridez.
Todos
esses impactos no clima da região estão projetadas nos relatórios do IPCC,
sigla em inglês do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas,
instância da Organização das Nações Unidas (ONU) que faz avaliações científicas
sobre a mudança do clima.
Ao
descrever as mudanças vividas pelos agricultores e agricultoras da comunidade
onde vive, no município de Solânea, na Paraíba, Antônio Cadete respalda aqueles
que dizem que, ao contrário do que está acontecendo na maior parte do Brasil, o
semiárido “saiu na frente” no enfrentamento das mudanças climáticas. É o caso
do ex-coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o músico e
teólogo Roberto Malvezzi, assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) e da própria CPT. Malvezzi crava que isso só foi possível graças “à
sociedade civil que, em 20 ou 30 anos, fez aquilo que o Estado brasileiro não
foi capaz de fazer em 500 anos”.
É
bem verdade que o ponto de vista de Cadete não é aplicável integralmente à uma
porção tão diversificada do território nacional, mas ajuda a traduzir os
resultados de um processo que teve início na década de 1990, quando movimentos
sociais e comunidades de agricultores abandonaram a lógica de “combate à seca”,
que norteava as políticas públicas desde o Brasil Império, e a substituiu pelo
paradigma da “convivência com o semiárido”. Essa expressão, aliás, foi usada
pela primeira vez pelo economista Celso Furtado, em 1959, durante o processo de
criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
Para
conviver com o semiárido é preciso entender que as secas são eventos naturais,
cíclicos, portanto não é possível “combatê-las”. A partir disso, se constrói
uma nova relação do sertanejo com o ambiente natural, reduzindo a degradação e
devastação da Caatinga, como explica o site da Associação Caatinga, uma
organização não governamental que administra uma reserva natural no sertão do
Ceará.
Do
ponto de vista dos governos, a convivência exige políticas públicas a partir de
novos métodos. De acordo com o site da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), é preciso entender o conceito “sob a ótica do
desenvolvimento regional, transformando ameaças em oportunidades”.
• O tamanho do problema
Cientistas
e centros de pesquisas brasileiros sem vínculos com as Nações Unidas atestam
repetidamente o que o IPCC projetou. Na Universidade Federal de Alagoas (UFAL),
o meteorologista Humberto Barbosa, do Laboratório de Análise e Processamento de
Imagens de Satélites (Lapis) publicou artigo científico no Journal of Arid
Environments com dados que alterariam o mapa do semiárido brasileiro. De acordo
com Barbosa, 725 mil km2do semiárido brasileiro passaram da condição subúmida
seca ou úmida para semiárido no intervalo de apenas três décadas, de 1990 a
2022: “isso significa que 55% da região agreste se tornou semiárida, com
estiagens de cinco a seis meses por ano”.
O
estudo de Barbosa sugere também que as terras áridas brasileiras são ainda mais
vastas que os 5.700 km2 no norte da Bahia, conforme anunciado pelo Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e Centro Nacional de Monitoramento e
Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) no final do ano passado. Para o
meteorologista da UFAL, “282 mil km2do semiárido brasileiro já se tornaram
áridos. Isso corresponde a mais de 8% das terras da região que já enfrentam
pelo menos 10 meses de estiagem”.
As
conclusões de Barbosa não diferem muito dos números do Inpe/Cemaden, adotados
como oficiais pelo governo brasileiro. Essas instituições consideram que o
semiárido foi de 570 mil km2 no período 1960-1990 para quase 800 mil km2 entre
1990-2020, o equivalente a 9,4% do território nacional.
Quem
atua na região, traduz o cenário com dados menos abrangentes, mas que refletem
a realidade local. O Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada
(IRPAA), organização não governamental fundada em 1990, uma das 12 que formam a
Rede Ater Nordeste de Agroecologia, acompanha as chuvas na região desde 1994.
Usando dados da Embrapa Semiárido, constata a curva descendente da média anual
de precipitação pluviométrica. É com essas informações que o IRPAA trabalha
junto às famílias agricultoras do norte da Bahia, como se verá nessa série de
reportagens.
A
partir de informações como essas, em março deste ano, a equipe do IRPAA
publicou documento constatando que “aridez no Brasil não é novidade, pois desde
1992 o volume médio de chuvas é inferior a 600 mm/ano, com evapotranspiração
potencial na casa dos 3.000 mm/ano, o que lhe confere em determinados
intervalos de tempo, índices de aridez inferior à 0,2 (categoria árida)”.
As
estiagens recorrentes e prolongadas fragilizam a cobertura vegetal, o que
acelera a degradação do solo e, em consequência, o processo de desertificação.
O mestre em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (USP), Bruno
Proença Pacheco Pimenta, calculou a perda de saúde da vegetação da caatinga e
dos cultivos agrícolas da região, projetando cenários para os anos de 2040 e
2070. Em seu estudo, Pacheco Pimenta considerou o aumento da temperatura média
da região e a ocorrência de secas extremas ou ocasionais.
• Combinação de fatores
Será
que, para enfrentar um fenômeno de dimensões planetárias, bastaria a aplicação
do conceito de convivência para explicar a melhoria da vida das pessoas em
centenas de comunidades? Não é só isso, como enfatiza Luciano Silveira,
integrante do grupo gestor da Rede Ater NE: “´é uma combinação de fatores”.
Tornou-se
lugar comum associar a adoção de tecnologias “alternativas”, principalmente as
cisternas de placas, como chave para explicar a melhoria da qualidade de vida
no semiárido. Silveira assegura que o fenômeno é mais complexo. “Passa pela
biodiversidade do que é cultivado sem depender de perímetros irrigados, de
sementes transgênicas ou de rebanhos geneticamente melhorado em condições
artificiais. Passa também pelo conhecimento compartilhado, na contramão da
apropriação privada dos recursos da natureza, pela democratização do acesso à
terra e àgua e pela gestão coletiva de insumos e equipamentos”, explica.
Os
conceitos de agricultura orgânica e agroecologia surgem entre os anos 1925 e
1930 com o botânico inglês Albert Howard, que trabalhou e pesquisou o tipo de
agricultura praticada pelos camponeses na Índia, no qual ressaltava a
importância da utilização da matéria orgânica e da manutenção da vida biológica
do solo.
A
agroecologia é prática agrícola que incorpora questões sociais, culturais,
políticas, ambientais, éticas e energéticas. É um conceito que abrange todo o
ecossistema, e não apenas a produção e o consumo de alimentos. Em oposição às
monoculturas e ao emprego de transgênicos, dos fertilizantes industriais e dos
agrotóxicos, a agroecologia tem como objetivo beneficiar a biodiversidade e o
desenvolvimento sustentável da sociedade e da natureza.
Silveira,
que é um dos coordenadores da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia,
organização que atua na região da serra da Borborema, na Paraíba, reforça não
ser novidade o fato de que a ecologia do semiárido estar condicionada ao clima.
“A novidade é a exacerbação disso”, completa. Alinhado ao que diz Malvezzi, ele
defende que a sociedade civil organizada soube valorizar a experiência e o
conhecimento de quem vive na região. “Isso produziu um conjunto de inovações
que potencializaram a capacidade de conviver com o semiárido”.
A
construção de mais de um milhão de cisternas de placas de concreto criou,
segundo Silveira e Malvezzi, uma malha hídrica descentralizada, democratizando
o acesso à captação d’água, contrariando o paradigma das grandes obras
decididas de cima para baixo. “Isso possibilitou que a sociedade se encontrasse
com as potencialidades do bioma em um novo padrão de produção agrícola: a
agroecologia”, explica o gestor da Rede Ater NE.
O
paraibano Antônio Cadete, o agricultor de Solânea que deu a surpreendente
resposta sobre a melhoria da vida em meio ao clima cada vez mais extremo, é
enfático ao afirmar que o principal fator das mudanças não foi a cisterna: “Foi
o conhecimento da natureza que, hoje, nós temos, a troca de experiências com
outros agricultores. Os técnicos falavam em agroecologia, mas a gente achava
que era uma coisa estranha e distante, mas aí entendemos que já fazia parte da
nossa vida, que nossos pais e avós já conheciam”.
Malvezzi
conta que, para chegar às cisternas, ao encontro com o bioma e ao
reconhecimento dos saberes do povo da região, a sociedade avançou “na base de
experiência e erro. Trouxeram algaroba do Peru nos anos 1940, criaram ema,
bancos públicos financiaram fazendeiros que importaram gado europeu, até camelo
tentaram introduzir. Foi quando os pesquisadores da Embrapa e das universidades
disseram ‘peraí, temos que estudar a caatinga’.”
Para
o assessor da CNBB, a contribuição da ciência precisa ser reconhecida. “A parte
técnica foi importante porque era preciso entender como a caatinga sobrevive às
secas? Como os animais da caatinga sobrevivem às secas? Você precisa aprender a
se prevenir no tempo da chuva, ter água para o tempo que não vai ter chuva,
produzir ração para o tempo da seca. Os povos que vivem no gelo têm desafios
semelhantes, armazenando aquilo que se produz, guardando também para os animais
sobreviverem”.
• Governo Federal anuncia conservação
da caatinga
A
Marco Zero procurou os ministérios do Desenvolvimento Agrário e do Meio
Ambiente para saber quais os planos do Governo Federal para a região. Até o
momento de publicação desta reportagem de abertura da série especial, não houve
resposta às nossas demandas. Se houver, publicaremos a seguir em outra matéria.
No
entanto, no dia 10 de junho, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, esteve
em Juazeiro, na Bahia, e em Petrolina, Pernambuco, na Missão Climática pela
Caatinga para lançar uma campanha nacional de enfrentamento à desertificação em
companhia do secretário-executivo da Convenção de Combate à Desertificação da
ONU (UNCCD, na sigla em inglês), Ibrahim Thiaw.
Marina
Silva disse que “as melhores políticas públicas vêm da sociedade, o programa Um
Milhão de Cisternas veio da sociedade, o Sistema Únido de Saúde veio a
sociedade, dos sanitaristas, as políticas ambientais vêm do movimento
ambientalista e da academia”.
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Durante o evento, o ministério reforçou as iniciativas do Governo Federal para
a conservação e recuperação da Caatinga:
1.
O Fundo para o Meio Ambiente Global destinará R$ 30,2 milhões para o projeto
Conecta Caatinga (gestão integrada da paisagem para o enfrentamento da mudança
do clima).
2.
Fundo do Marco Global para a Biodiversidade aprovou R$ 50 milhões para o
projeto “Arca: Áreas Protegidas da Caatinga” (expansão e consolidação do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e o envolvimento das
comunidades locais na Bahia, em Pernambuco e no Piauí).
3.
ICMBio, por sua vez, anunciou a seleção de 12 propostas prioritárias para
criação de novas Unidades de Conservação até 2026. Estão em análise a ampliação
do Parque Nacional da Serra das Confusões (PI), a Floresta Nacional de Açu
(RN), o Refúgio de Vida Silvestre do Soldadinho do Araripe (CE).
4.
Lançamento do livro Manejo Florestal da Caatinga, que consolida resultados de
40 anos de experimentação da sociedade civil e de pesquisadores com o manejo
sustentável do bioma.
5.
Criação da Rede de Pesquisadoras e Pesquisadores no Combate à Desertificação e
Mitigação das Secas, para apoiar a implementação da Política Nacional de
Combate à Desertificação.
Fonte:
Marco Zero Conteúdo
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