Jodi Dean:
‘Precisamos de camaradagem’
Por
muito tempo, a retórica individualista do "autocuidado" eclipsou
nosso senso de trabalho coletivo em busca de objetivos comuns. A camaradagem
tem a ver com nossa responsabilidade uns pelos outros - e nos torna melhores e
mais fortes do que jamais poderíamos ser sozinhos.
Constantemente
nos dizem que nossos problemas podem ser resolvidos com imaginação, grandes
idéias e criatividade. Parece que novas idéias criativas não apenas resolverão
a crise climática, mas também eliminarão desigualdades extremas e até
triunfarão sobre o ódio racial. Estranhamente, esse apelo para “pensar grande”
e ser “imaginativo” une todo mundo, desde as grandes empresas de tecnologia a
ativistas socialistas, passando por políticos ordinários e adeptos do
“comunismo de luxo totalmente automatizado”.
Essa
aparente unidade nos impede de ver quão graves são os conflitos subjacentes em
torno do capitalismo, das fronteiras, migração e recursos. Divisões escapam à
visão, ocultadas pela fantasia de que poderia haver alguma ideia grande o
suficiente, criativa o suficiente e imaginativa o suficiente a ponto de
resolver todos os nossos problemas – e instantaneamente, pelo visto.
Assim
é a ilusão que dirige o apelo à imaginação. Mas, na realidade, enfrentamos
conflitos fundamentais sobre o futuro de nossas sociedades e do mundo. A
mudança social não é indolor. Precisamos aceitar a realidade do antagonismo,
saber de que lado estamos e lutar para fortalecer esse lado. Não precisamos
convencer todo mundo. O que precisamos é convencer pessoas suficientes a se
engajarem na luta, e vencer.
Grandes
ideias não são nada sem quadros militantes para lutar por elas. No entanto,
grande parte da esquerda contemporânea não conseguiu desenvolver e sustentar
uma base de lutadores fortes, comprometidos e organizados. A disciplina do
trabalho coletivo em nome de um objetivo compartilhado foi substituída por uma
retórica individualista de conforto e autocuidado.
Essa
retórica e as práticas correspondentes respondem a um problema real – a
escassez de organizações políticas que tenham sentido para seus membros e
apoiem suas necessidades. Na ausência de tais organizações, alguns ativistas de
esquerda tratam as mídias sociais como uma saída política. Mas, dado o modo de
indignação ininterrupta nas redes, ficar online como forma de ser politicamente
ativo na esquerda pode ser uma experiência profundamente masoquista.
Os
que deveriam estar do nosso lado são os que mais nos atacam. A mesma coisa
acontece quando se formam grupos em torno de questões momentâneas para planejar
ações conjuntas. Acostumados aos ataques e abusos dos fanáticos de direita
mobilizados pelo capitalismo, nos ofendemos fácil e somos lentos em confiar uns
nos outros. Apelar para o autocuidado aborda o sintoma, mas não a causa de
nossa incapacidade política. Pois ignora o que realmente está faltando – uma
relação política construída com base na solidariedade.
A
história das organizações socialistas e comunistas nos dá uma figura que
encarna essa relação – o camarada. Como um modo de endereçar, pertencimento e
destinatário de expectativas, o camarada designa a relação entre aqueles que
estão do mesmo lado de uma luta política. Indo além da ideia de política como
uma mera questão de convicção individual, o camarada aponta para as
expectativas de solidariedade necessárias para construir uma capacidade
política compartilhada. Por causa das expectativas de nossos camaradas,
comparecemos às reuniões que de outra forma perderíamos, realizamos trabalhos
políticos que poderíamos procrastinar e tentamos cumprir nossas
responsabilidades uns com os outros. Experimentamos a alegria da luta
comprometida, de aprender pela prática. Superamos aqueles medos que podem nos
dominar se formos forçados a enfrentá-los sozinhos. Nossos camaradas nos tornam
melhores, mais fortes, para jamais nos sentirmos sozinhos.
• Ódio racial em julgamento
Tomemos
um exemplo da história do Partido Comunista dos EUA: um júri interno realizado
no Harlem em 1931. O partido levou August Yokinen, um trabalhador finlandês, a
julgamento por preconceito racial, por defender a superioridade branca e
avançar pontos de vista prejudiciais à classe trabalhadora. Cerca de 1500
trabalhadores, negros e brancos, participaram do julgamento do partido,
realizado no Harlem Casino, um dos maiores auditórios da região. Clarence
Hathaway, o editor branco do jornal Daily Worker, apresentou o caso de
acusação. Richard B. Moore, um dos oradores negros mais respeitados do partido,
liderou a defesa de Yokinen. Um júri de quatorze trabalhadores, sete negros e
sete brancos, proferiu o veredicto.
Yokinen
era um dos três membros brancos do partido que estavam trabalhando na
bilheteria do baile de dança do Clube Finlandês dos Trabalhadores do Harlem.
Vários trabalhadores negros chegaram para o baile e só foram admitidos com
relutância. Tendo conseguido entrar, foram tratados com tanta hostilidade que
logo foram embora. Nenhum dos membros brancos do partido os acolheu ou os
defendeu.
Durante
a investigação do incidente pelo partido, os camaradas de Yokinen admitiram seu
erro. Mas Yokinen tentou justificar seu comportamento, explicando que ele
achava que os trabalhadores negros iriam para a piscina e que ele não queria
tomar banho com pessoas negras.
Quando
chegou o momento do julgamento do partido, Yokinen já havia reconhecido sua
culpa e prometido retificá-la com trabalho concreto em favor da luta pela
libertação do povo negro. A questão que restava perante o júri era então se
Yokinen deveria ser expulso do partido por seu racismo e “chauvinismo branco”
ou ser colocado em um período de suspensão supervisionada.
Os
argumentos de Hathaway de acusação enfatizaram que Yokinen não apenas falhou em
agir de acordo com as expectativas igualitárias do Partido Comunista, mas que
esse mesmo fracasso o colocou do lado de linchadores e proprietários. Até a
menor expressão de superioridade racial branca mina a solidariedade de classe e
fortalece a burguesia. Quando Yokinen falhou em manter o compromisso do partido
com a igualdade racial, ele deu aos trabalhadores negros boas razões para não
esperar nada além de traição – do partido e de qualquer trabalhador branco.
Hathaway
lembrou ao júri que, como a luta pelos direitos iguais dos negros era
indispensável à luta proletária, o Partido Comunista tinha que provar – com
ações – que estava comprometido em eliminar todos os vestígios de chauvinismo
branco. Expulsar Yokinen demonstraria esse compromisso. Mas Hathaway também
ofereceu a Yokinen um caminho de volta ao partido. Se Yokinen lutasse
ativamente contra a supremacia branca, vendendo o jornal negro Liberator e
relatando seu julgamento no Clube dos Trabalhadores Finlandeses, ele então
poderia solicitar readmissão ao partido.
A
defesa de Moore procurou mudar o foco para o inimigo real, a classe
capitalista. Argumentou que foram os proprietários e a burguesia os que
espalharam o veneno do ódio racial – auxiliados por sindicatos e oportunistas
no movimento socialista. O argumento de Moore não era que Yokinen não deveria
ser responsabilizado. Era que ninguém era inocente. É o imperialismo
capitalista, como estrutura, que espalha a ideologia corrupta da superioridade
branca.
Moore
voltou sua crítica ao Partido Comunista, perguntando se o próprio partido havia
feito o trabalho educacional necessário para enfrentar o ódio racial. Tinha
desenvolvido programas para o movimento dos trabalhadores para explicar a
importância da luta contra o linchamento? Havia feito o esforço colossal
necessário para erradicar o preconceito? Moore declarou que a resposta era
“não”. O partido era cúmplice do crime de Yokinen. Moore concluiu assim que a
autocrítica, não a expulsão, era o melhor caminho. A autocrítica permitiria ao
partido provar seu compromisso por meio de suas ações. Um benefício adicional,
argumentou Moore, era que a autocrítica salvaria Yokinen para a luta, um fator
crucial quando cada trabalhador precisa estar envolvido no esforço de derrubar
o sistema.
Em
seu resumo, Moore lembrou ao júri a seriedade de uma expulsão do Partido
Comunista. “Prefiro que minha cabeça seja arrancada do corpo por capitalistas
linchadores do que ser expulso da Internacional Comunista”, disse. Ele quis
dizer que ser separado do partido, separado dos camaradas e privado de sua
camaradagem, é um destino pior que a morte. É o tipo de morte social em que um
trabalhador se torna um forasteiro de seu próprio movimento, tão ruim quanto os
próprios capitalistas.
Moore
concluiu que Yokinen deveria ser condenado, mas mais importante é condenar o
capitalismo pela miséria, preconceito, terror e linchamento que gera. O partido
precisava redimir e educar o camarada, para lhe dar uma chance de se provar a
si mesmo. O partido também teria que se envolver em uma luta implacável contra
o chauvinismo branco e tudo mais que ameaçasse a unidade de classe.
O
júri considerou Yokinen culpado – nada surpreendente, uma vez que ele já havia
admitido sua culpa. E concordaram em expulsá-lo, mas ficaram divididos sobre se
a expulsão deveria durar seis ou doze meses. Eles acataram as sugestões da
promotoria sobre as maneiras pelas quais Yokinen poderia corrigir seus erros,
vendendo o Liberator e lutando contra o chauvinismo branco. Ao final, apesar de
Yokinen ter sido expulso, ele permaneceu um camarada. O julgamento resultou em
uma decisão que afirmou seu papel na luta de classes, um papel focado na
construção da unidade entre trabalhadores brancos e negros. O partido não o
limou e forneceu-lhe um caminho de volta.
No
dia seguinte ao julgamento, Yokinen foi preso e retido para deportação. A
International Labor Defense (IDL – Defensoria Internacional do Trabalho),
ligada à Internacional Comunista, o defendeu durante suas audiências de
deportação.
• Do mesmo lado
O
julgamento de Yokinen ensina uma série de lições que os socialistas
contemporâneos fariam bem em reaprender: lições sobre camaradagem. O primeiro
conjunto de lições é sobre estar do mesmo lado. A acusação e a defesa
compartilhavam os mesmos princípios e objetivos: a unidade da classe
trabalhadora, a abolição da supremacia branca, a necessidade de igualdade
racial na vida cotidiana, a revolução proletária. Princípios comuns permitiram
discernir e nomear o inimigo comum – capitalistas e proprietários defendendo a
supremacia branca e a lei do linchamento. Qualquer um que aceitasse esses
princípios era um camarada, mesmo quando errava. O fato de serem camaradas
significava que eram valiosos para a luta. Eles só precisavam ser ensinados,
treinados. A revolução precisa de tantos recrutas quanto possível.
O
segundo conjunto de lições segue o valor da autocrítica coletiva. Se um de
nossos camaradas errar, nós compartilhamos a responsabilidade por isso. O que
poderíamos ter feito para evitar o erro? Que tipo de instrução ou orientação
poderíamos ter fornecido? Estamos todos imersos na ideologia racista do
capitalismo o tempo todo. Precisamos nos apoiar na luta contra isso. Devemos
condenar ações que reforcem a supremacia branca e condenar ainda mais
fortemente o sistema que a reproduz.
Finalmente,
o terceiro conjunto de lições envolve o caminho de volta. Em contraste com o
identitarismo tóxico, que Mark Fisher apelidou de “castelo dos vampiros”, e a
cultura perniciosa de “cancelamento” que circula entre os esquerdistas das
mídias sociais, no caso Yokinen, o Partido Comunista buscava unidade. Buscou
práticas que construíssem essa unidade, e não práticas que a desfizessem. Mesmo
alguém expulso do partido não estava completamente condenado. De fato, quando
teve que enfrentar o poder agressivo do Estado imperialista, o partido assumiu
a frente em sua defesa. Yokinen ainda estava do mesmo lado que os comunistas.
Ainda era um camarada. Yokinen aceitou a decisão do partido sobre o trabalho
que precisava realizar para combater a supremacia branca e construir a unidade
da classe trabalhadora. O que estava em jogo não era o moralismo – a
necessidade de um “pedido de desculpas” – ou um julgamento individualista sobre
sua atitude. O que importava era fazer o trabalho que a luta revolucionária
exige.
• Disciplina
Para
muitos na esquerda contemporânea, disciplina é uma palavra ruim. Não vêem
apenas a disciplina como uma ameaça à liberdade individual, mas são céticos em
relação à participação política intensa de qualquer tipo. Enxergando a
disciplina camarada apenas como restrição e não como uma decisão de desenvolver
capacidade coletiva, substituem a concretude da luta política pela fantasia de
que a política possa ser individual. Essa substituição ignora o fato de que a
camaradagem é uma escolha voluntária – tanto para quem se une, como para o
partido. Também ignora a qualidade libertadora da disciplina, pois quando temos
camaradas somos liberados da obrigação de ser, conhecer e fazer tudo por conta
própria; em vez disso, existe um coletivo maior com uma linha, programa e
conjunto de tarefas e objetivos que nos reúne. Somos liberados do cinismo que
posa de maturidade pelo otimismo prático que o trabalho fiel gera. A disciplina
fornece o suporte que nos liberta para cometer erros, aprender e crescer.
Quando erramos – e cada um de nós certamente errará – nossos camaradas estarão
lá para nos levantar, sacudir a poeira e nos colocar no caminho acertado. Não
estamos abandonados para caminhar a sós.
Os
esquerdistas não-filiados e não-organizados permanecem frequentemente
fascinados pela ilusão de que as, assim chamadas, “pessoas comuns” irão criar,
espontaneamente, novas formas de vida que conduzirão a um futuro glorioso. Essa
ilusão falha em reconhecer as privações e carências debilitantes que quarenta
anos de neoliberalismo infligiram à massa da população. Se fosse verdade que
austeridade, dívida, colapso de infraestruturas institucionais e fuga de
capitais poderiam permitir o surgimento espontâneo de formas igualitárias de
vida, não veríamos as enormes desigualdades econômicas, a intensificação da
violência racializada, o declínio da expectativa de vida e a morte lenta, a
falta de água não potável, a militarização do policiamento e da vigilância, bairros
urbanos e suburbanos desolados que hoje formam o cenário comum.
Exaustão
de recursos naturais também inclui a exaustão de recursos humanos. Muitas vezes
as pessoas querem fazer algo, mas não sabem o que fazer ou como fazer. Elas
podem estar isoladas em locais de trabalho não-sindicalizados, sobrecarregados
por vários empregos de horário flexível, cuidando de amigos e familiares. A
organização disciplinada – a disciplina de camaradas comprometidos com a luta
comum por um futuro igualitário emancipatório – pode ajudar aqui. Às vezes,
queremos e precisamos de alguém para nos orientar o que fazer, porque estamos
cansados demais para descobrir sozinhos. Às vezes, quando nos é dada uma tarefa
como camarada, sentimos que nossos pequenos esforços têm maior significado e
propósito, talvez até um significado histórico mundial na luta milenar do povo
contra a opressão. Às vezes, apenas o fato de saber que temos camaradas que
compartilham nossos compromissos, nossas alegrias e nossos esforços para
aprender com as derrotas torna o trabalho político possível onde não era antes.
Fonte
Blog da Boitempo
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