quarta-feira, 26 de junho de 2024

MSF: resolução da ONU falha em cessar conflitos em El Fasher, no Sudão, e civis seguem encurralados

Mais de 10 dias desde que o Conselho de Segurança da ONU pediu o fim dos confrontos em El Fasher, Médicos Sem Fronteiras (MSF) – uma das poucas organizações humanitárias internacionais ainda presentes na cidade – alerta que os hospitais continuam sendo atacados e que nenhuma ajuda humanitária externa pode chegar à região devido à intensidade da violência.

Na noite de sexta-feira, 21 de junho, um bombardeio das Forças de Apoio Rápido atingiu a farmácia do Hospital Saudita, apoiado por MSF, em El Fasher. Uma farmacêutica foi morta enquanto estava em seu turno de trabalho. Embora o hospital permaneça aberto e ainda esteja tratando pacientes, a instalação foi danificada e está funcionando apenas parcialmente.

Estamos vendo um ciclo de ofensivas e contra-ataques em que os hospitais não estão sendo poupados e as partes em conflito estão falhando em suas responsabilidades de proteger os civis”, afirma Michel-Olivier Lacharité, coordenador de emergência de MSF.

Mais suprimentos são urgentemente necessários para continuar o tratamento de pessoas feridas. Há temores de um novo ataque, por conta dos contínuos confrontos nas proximidades. Na sexta-feira, 21 de junho, uma pessoa foi morta a apenas 200 metros do hospital, outra pessoa foi morta perto da acomodação onde fica a equipe de MSF. O número total de feridos na sexta-feira não é conhecido.

“Em El Fasher, estamos vendo um ciclo de ofensivas e contra-ataques em que os hospitais não estão sendo poupados e as partes em conflito estão falhando em suas responsabilidades de proteger os civis”, diz o coordenador de emergência de MSF. “Desde o início dos confrontos, há seis semanas, mais de 260 pessoas foram mortas e mais de 1.630 ficaram feridas – incluindo mulheres e crianças.”

“Não sabemos se os hospitais estão sendo deliberadamente visados, mas sua proteção é um imperativo que deve ser respeitado. Os civis estão encurralados e não podem sair. Suas vidas precisam ser protegidas, e as pessoas devem poder receber tratamento”, defende Lacharité. Instamos as partes em conflito a permitir o acesso seguro para que possamos continuar a fornecer assistência vital às pessoas em El Fasher e no acampamento de Zamzam, onde ainda há uma crise catastrófica de desnutrição”, completa.

Esta é a segunda vez que o Hospital Saudita é impactado desde o início dos conflitos e a oitava vez que um hospital é atingido na cidade nas últimas seis semanas. Há duas semanas, o Ministério da Saúde foi forçado a fechar o Hospital do Sul após a instalação ter sido atacada pela quinta vez. Antes disso, o hospital pediátrico foi forçado a fechar devido a danos causados por um ataque aéreo das Forças Armadas Sudanesas.

Como resultado desses incidentes, o Hospital Saudita – que antes era uma maternidade especializada – tornou-se o único centro de saúde da cidade com capacidade cirúrgica e para tratar pessoas feridas. Agora, a viabilidade de manter o hospital de portas abertas também está em risco.

“Precisamos urgentemente levar mais suprimentos e profissionais para poder responder a esta crise, mas os confrontos estão nos impedindo de entrar na região”, alerta Lacharité. “Além de proteger civis e hospitais, instamos as partes em conflito a permitir o acesso seguro para que possamos continuar a fornecer assistência vital às pessoas em El Fasher e no acampamento de Zamzam, onde ainda há uma crise catastrófica de desnutrição e para onde um número desconhecido de pessoas fugiu desde o início dos conflitos.”

 

¨      No Sudão, os “civis estão na linha de fogo. Nenhum lugar é seguro para eles”

Combates que se dividem em linhas étnicas na área sudanesa de El Fasher e arredores levantam “profunda preocupação” das Nações Unidas. O potencial é que esta realidade possa causar mais sofrimento aos civis.

Nesta terça-feira, o Conselho de Segurança discutiu a situação do país africano que registrou 18 milhões de desalojados pelo conflito iniciado em 15 de abril de 2023.

<><> Risco de perder a vida devido à fome

Uma avaliação realizada em território sudanês identificou mais de 18 milhões de vítimas de desnutrição aguda. Destas, cerca de 5 milhões de pessoas estão em risco de perder a vida devido à fome.

A capital de El Fasher, Darfur, registra bombardeios aéreos e lançamentos em áreas densamente povoadas. Uma contagem feita em dois meses até meados de junho revelou que pelo menos 192 civis perdem a vida nesses atos.

Estima-se que várias dezenas de civis, incluindo mulheres e crianças, foram mortos nos últimos dias. A secretária-geral assistente para a África, Martha Pobee disse que os “civis estão na linha de fogo. Nenhum lugar é seguro para eles.”

A representante afirmou que ocorrem graves violações do direito internacional humanitário e dos direitos humanos. Os atos incluem execuções sumárias de civis, a prisão e detenção incomunicável de centenas de indivíduos em condições precárias, bem como a violência sexual generalizada relacionada ao conflito.

<><> Forças de Apoio Rápido 

De acordo com as Nações Unidas, grande parte dos crimes é cometida por Forças de Apoio Rápido, RSF, que confrontam o Exército desde o ano passado.

Para ela, a comunidade internacional carece urgentemente de ações significativas para garantir a responsabilização por essas violações e as “vítimas merecem justiça”.

Mais de 1,8 milhões de sudaneses fugiram para países vizinhos

Ela lamentou que os esforços da mediação ainda não garantam um cessar-fogo nem um diálogo direto sustentado entre as partes às quais pediu mais diálogo e que deixem “jogos destrutivos de culpa e busquem todas as oportunidades pela paz.”

Com 1,5 milhão de habitantes, Darfur abriga aproximadamente 800 mil deslocados internos. Combates pesados na cidade levam a “baixas civis significativas, danificaram casas e causaram deslocamento em massa.”

<><> Operações de prevenção à fome 

Os mais de 1,8 milhões fugindo para países vizinhos destacam “a longa e perigosa jornada de Cartum até o Egito, Quênia ou Uganda”. Muitas vezes, eles atravessam vários países tentando escapar do conflito. 

A maioria dos desalojados saiu sem nada e viajou por várias semanas em busca de segurança, revelou a representante. O plano humanitário de US$ 2,2 bilhões somente obteve 17% dos fundos para este ano. 

 

¨      Por que o mundo ignora a guerra civil no Sudão? Por Cathrin Schaer

A lista de atrocidades ocorridas na guerra civil do Sudão é extensa e aumenta cada vez mais.

Uma maternidade bombardeada cujo teto desabou sobre bebês que lá estavam. Ataques a campos de refugiados, execuções em massa, ruas cheias de cadáveres, bloqueios à ajuda humanitária, abusos sexuais sistemáticos e outros crimes de guerra. Desde o início da nova guerra civil no país no nordeste africano, há cerca de um ano, estima-se que 16.000 pessoas tenham morrido.

A guerra no Sudão gerou uma das crises de deslocamento de pessoas mais graves em todo o mundo, com pouco menos de 10 milhões sendo forçadas a deixarem seus locais de moradia em busca de segurança.

Na semana passada, a Organização Internacional para a Migração das Nações Unidas (OIM) relatou que, entre os milhões de sudaneses que tiveram de se deslocar, 70% tentam sobreviver em lugares onde há risco de fome.

Apesar dos apelos recentes do Conselho de Segurança da ONU por um cessar-fogo temporário, todas a entidades de ajuda que acompanham a crise no país dizem que a situação não apresenta sinais de melhora.

·        Como a guerra começou

Desde de abril de 2023, dois grupos militares travam uma disputa pelo poder no Sudão: as Forças Armadas Sudanesas (FAS) e as Forças de Apoio Rápido (FAR). O conflito teve início após uma série de desavenças entre os dois grupos sobre o compartilhamento do poder, que se seguiram ao golpe militar do final de 2021.

As FAS, lideradas pelo general Abdel Fattah Burhanl operam como um Exército regular e possuem em torno de 200.000 soldados. As FAR, que possuem entre 70.000 e 100.000 membros sob a liderança do general Mohammed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, atua de maneira semelhante a uma guerrilha.

Recentemente, as FAR conquistaram alguns territórios na região de Darfur, no oeste do país. Em abril, o grupo tomou o controle da cidade de Mellit, considerada como de importância estratégica, e impôs um cerco à metrópole de El Fasher, para onde estima-se que mais de 1,5 milhão de pessoas tenham fugido em busca de abrigo.

"Eles [os combatentes] não são patriotas", disse na semana passada Adam Rojal, porta-voz dos refugiados e desabrigados em Darfur, à emissora Voz da América. "Eles lutam somente em seus interesses próprios. O único derrotado é a sociedade sudanesa. As pessoas perderam tudo", afirmou. "Palavras não são capazes de descrever o quão séria é essa crise."

·        "Silêncio imperdoável"

Apesar da intensificação do nível de violência e das privações, muitas organizações de ajuda e de direitos humanos acusam o resto do mundo de ignorar o conflito.

Em abril, quando completou-se um ano no início do conflito, uma conferência internacional de doadores arrecadou 2,1 bilhões de dólares (R$ 12 bilhões) em ajuda humanitária para o Sudão.

Contudo, no final de maio, a ONU relatou ter recebido apenas 16% dos 2,7 bilhões de dólares necessários.

"Não se pode evitar, ao vermos o nível de atenção a crises como Gaza e Ucrânia, imaginar o que apenas 5% dessa energia poderia atingir em um contexto como o do Sudão, e quantos milhares, dezenas de milhares de vidas poderiam ter sido salvas", afirmou Allan Boswell, especialista da International Crisis Group à revista Foreign Policy no final de maio.

Em março, a embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, fez o mesmo questionamento em um artigo publicado no The New York Times intitulado "O silêncio imperdoável sobre o Sudão".

A guerra civil, segundo afirmou, "transformou o Sudão num inferno vivo". "Mas, mesmo após os grupos de ajuda qualificarem a crise humanitária com estando entre as mais graves do mundo, pouca atenção ou ajuda foi enviada ao povo sudanês."

·        Motivos da falta de atenção ao Sudão

Em meados de abril, a subsecretária-geral para comunicações globais da ONU, Melissa Fleming, explorou essa questão em um artigo de sua autoria.

Para ela, é possível que um motivo dessa falta de atenção para com o Sudão seja o chamado "amortecimento psíquico". "O termo se refere ao triste fato de que as pessoas se sentem mais apáticas em relação à tragédia, enquanto aumenta o número de vítimas", explicou.

As outras crises que ocorrem simultaneamente também podem causar um efeito amortecedor, diz Fleming, o que vale para desde as mudanças climáticas até os conflitos na Faixa de Gaza e na Ucrânia.

Isso também pode estar relacionado com a natureza do conflito no Sudão. Estudos demonstram que as guerras civis anteriores – especialmente aquelas vistas como questões internas em países distantes – recebem menos atenção do que as crises onde uma nação ataca a outra.

"Eu basicamente venho me confrontando com essa questão desde que comecei a trabalhar com os temas sudaneses, em 1997", afirmou à DW Roman Deckert, um especialista independente em Sudão, sobre a falta de atenção ao país. "Assim como para tantas outras coisas na vida, a resposta é uma combinação de fatores", observou.

Ele disse que um desses fatores é a complexidade da situação, na qual nenhum dos lados é obviamente bom ou mau. Outro fator pode ser potencialmente, ou até subconscientemente, o racismo ou eurocentrismo profundamente enraizado, onde pessoas de fora podem compreender de maneira incorreta o conflito como algo "não civilizado" ou "típico".

Deckert, que trabalha para uma organização voltada para o desenvolvimento de mídia em Berlim, lembra que quando ele começou a estudar o Sudão, a guerra que ocorria nos países da antiga Iugoslávia recebia atenção maior do que a crise gerada pela fome em Darfur.

"Uma jornalista [alemã] que falava a respeito disso em uma conferência disse que as paisagens [na Iugoslávia] eram parecidas com as da Europa Central. As pessoas se parecem com nós; as casas se parecem com as nossas. Assim, no sentimos mais próximos e as pessoas podem se identificar com mais facilidade", observou. "Talvez, hoje em dia, isso se compare à Ucrânia."

·        Mais atenção pode ajudar

Outro fator que torna mais difícil a situação no Sudão é o envolvimento de atores internacionais, alguns dos quais, os países ocidentais consideram como aliados e parceiros comerciais importantes, explicou Deckert.

A Arábia Saudita e o Egito são conhecidos apoiadores das FAS, enquanto os Emirados Árabes Unidos apoiam as FAR. "Esta é uma verdade inconveniente [para os aliados ocidentais]", analisou.

Mas, é também por isso que a dedicação de mais atenção ao Sudão pode ajudar, sugeriu o especialista. Governos sensíveis à opinião pública deveriam ser pressionados para utilizar sua força diplomática sobre os atores externos que mantém a guerra em andamento a guerra no Sudão.

O maior foco no Sudão também pode ajudar as entidades humanitárias que enfrentam dificuldades para trabalhar no país.

Em um estudo de 2021, uma equipe de jornalistas investigativos entrevistou autoridades de alto escalão nos maiores países doadores. Ao mesmo tempo em que as decisões anuais sobre o financiamento da ajuda que foram feitas antes não tenham necessariamente sido afetadas, "a maioria dos burocratas acredita que as coberturas jornalísticas nacionais imediatas podem contribuir para aumentar o nível de ajuda humanitária de emergência direcionadas a uma crise", disseram os pesquisadores.

 

Fonte: MSF Imprensa/ONU News/Deutsche Welle 

 

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