terça-feira, 25 de junho de 2024

Ações, reflexões e a recriação do Rio Grande do Sul

No último mês acompanhamos estarrecidos o maior desastre climático da história do Brasil: 600 mil pessoas fora de suas casas, 80 mil em abrigos, mais de cem trechos de estradas e pontes destruídos, milhares de escolas, postos de saúde, comércios, indústrias e até mesmo nosso aeroporto internacional com perspectivas de ficar fechado por, no mínimo, seis meses.

Tais fatos têm nos mobilizado a agir em diferentes espaços. Milhares de pessoas sem condições de acessar alimentos ou água passaram a depender da distribuição de doações e de cozinhas solidárias. Milhares de casas e bairros têm sido limpos a partir de incontáveis mutirões de limpeza e outros ainda precisarão de uma grande mobilização de recursos e de mão de obra para suas reconstruções. Uma série de obras como o replantio de milhões de árvores, a recuperação de solos e lavouras, a construção de diques e desvios de cursos d’água precisarão ser executadas no médio prazo.

Um desastre dessa magnitude nos coloca, desde o primeiro instante, frente a um gigantesco desafio: em vez de sucumbirmos perante a força da natureza e da nossa falta de preparação prévia para lidar com tais situações, devemos arregaçar as mangas a fim de começarmos imediatamente a reconstruir nosso estado. Tal urgência parece estar alinhada às famosas frases de Karl Marx: “Até agora os filósofos se preocuparam em interpretar o mundo de várias formas. O que importa é transformá-lo”.

Marx, angustiado pelas muitas injustiças que percebia em seu tempo, parece deixar subentendido que a reflexão e a ação são contraditórias, isto é, não apenas etapas independentes, mas escolhas que se repelem mutuamente. Consideramos, contudo, que essa interpretação de Marx comunica um erro fundamental. Para nós, a ação está em continuidade com a reflexão e vice-versa. O ponto aqui é claramente normativo. Devemos agir a partir das reflexões e devemos refletir para agir. Se é certo que, em algumas situações extremas e de urgência, parece não existir tempo para ponderar, é igualmente certo que agimos melhor quando baseamos nossas ações em considerações refletidas que nos permitem evitar erros passados, prever melhor o futuro e organizar de forma mais sólida as estruturas de uma sociedade mais justa.

É com esse espírito que foi idealizado pelo Departamento de Filosofia da UFSM o ciclo de palestras online Clima e Sociedade, com apoio da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), dos programas de pós-graduação em Filosofia da UFPel, UFRGS, UCS, PUCRS, UFSM, Unisinos, do programa de pós-graduação em Ensino de Humanidades e Linguagens (PPGMEHL) da UFN e do IFRS. Nesse ciclo, cerca de setenta pensadores do Brasil e do exterior associados aos mais diferentes campos de estudos e práticas estarão propondo, ao longo de três meses, uma série de palestras, discussões e debates sobre distintas questões filosóficas, políticas, sociais, ambientais, artísticas, econômicas etc. associadas ao desastre supracitado. Tal iniciativa tem como um de seus propósitos socorrer os atingidos por meio da destinação de todo o valor líquido arrecadado pela venda a pessoas atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Trata-se, pois, também de uma ação de solidariedade.

Em paralelo a isso, ainda que sem ignorar que o presente momento chama para a ação, o presente ciclo de palestras também serve como defesa de que essas ações sejam realizadas de forma refletida. A partir dessa lógica, esperamos que nosso Estado não seja apenas reconstruído, mas recriado sob outras bases. Em outras palavras, esperamos que essa aproximação entre ações e reflexões nos permita recriar nossa sociedade, nos permita reconstruir de forma refletida melhores relações sociais, tornando, em certo sentido, real aquilo que o projeto do atual governo Joe Biden ao menos apresentou como sua intenção: “Build Back Better”, isto é, “Reconstruir Melhor”.

Até aqui, defendemos a importância de construirmos um ciclo virtuoso entre ações e reflexões. Nas três seções a seguir, apresentamos, de forma mais concreta e propositiva, algumas reflexões originadas pelas observações das muitas ações associadas a diferentes formas de enfrentamento do desastre mencionado. Para tal, em primeiro lugar, provocamos alguns debates relacionados a como temos nos organizado (e como deveríamos nos organizar) socialmente em situações extremas. Além disso, propomos a reflexão sobre o papel da ciência e da racionalidade pública em tais momentos de crise. Finalmente, introduzimos a discussão sobre a importância e os perigos das emoções e do engajamento público em situações como essas.

•           O Estado e a sociedade civil no enfrentamento de desastres

Vivemos em um país (até então) pouco afetado por desastres naturais, tais quais furacões e terremotos. Além disso, somos um povo que não costuma projetar o longo prazo (sobre esse segundo ponto, vale a leitura de O valor do amanhã, de Eduardo Giannetti). Finalmente, nossa jovem democracia parece ainda pouco preparada para dar guarida a movimentos políticos que transcendam interesses partidários de curto prazo e que permitam a real colaboração entre os diferentes entes federativos (cidades, estados e União), bem como entre os diferentes setores da sociedade civil organizada (empresas, instituições, ONGs). Não é raro vermos a aparição – e até a defesa escancarada – de um antagonismo rasteiro onde universidades são colocadas como concorrentes das empresas, ONGs como contrárias ao desenvolvimento econômico, órgãos de controle como empecilhos para o progresso nacional.

Principalmente em momentos de crise, esses – e talvez outros – fatores somados criam uma sensação de não apenas vivermos um vácuo de lideranças políticas, ou ao menos um despreparo dessas lideranças para agir em tais situações, mas também uma cisão fundamental no tecido social que gera uma série de dificuldades para o diálogo e a cooperação entre diferentes entidades e setores. Nesses momentos, frases como “É o povo pelo povo!” apontam na direção da defesa, por vezes de uma maneira até ingênua, do Estado mínimo e da anarquia. Diante da ineficiência e morosidade do Estado e da necessidade de atuação urgente para salvar vidas, surgiu um sentimento perigoso de que não precisamos de Estado algum. Nesse sentido, é comum ouvirmos o louvor ao voluntariado colocado como contrário a uma rede organizada e robusta de serviços públicos, o apelo a doações e à caridade no lugar de uma defesa pela cobrança de impostos e pela sua justa redistribuição. O trabalho voluntário e as doações (que, vale dizer, devem ter o seu lugar) surgem como soluções mágicas e, mais ainda, como substitutos e não como complementos da ação estatal.

A provocação que fica é: essa postura aponta o caminho que, entre outras coisas, garantirá a reconstrução das casas, do trabalho e das vidas dos milhares de atingidos? Além disso, por que e em que sentido a necessidade do voluntariado e a honesta solidariedade em uma crise de tamanha proporção precisam ser colocados como contrários à necessária atuação do Estado?

Por sua vez, a provocação serve como um chamado a um segundo momento no enfrentamento da crise gigantesca que ainda estamos vivendo. É claro que o voluntariado e as redes de solidariedade foram fundamentais para salvar vidas no momento mais agudo da crise e é claro que ainda continuam sendo necessárias nesse momento. Mas agora é chegado também o momento de nos dedicarmos a pensar a reconstrução do Rio Grande do Sul a partir de bases mais sólidas e maduras em que as pessoas, a sociedade civil organizada e o Estado precisam cooperar. Sem dúvida, cada um dentro de seus limites e expertises, mas tendo como objetivo o bem comum. Ou ficaremos gritando palavras de ordem e repassando memes, apenas para continuar a guerra cultural e reafirmar nossas próprias convicções políticas, enquanto as pessoas permanecem sem água potável e as crianças sem escolas? É certo que a atuação da sociedade civil pode (e deve) contribuir para a recriação do nosso estado. Contudo, também é certo que sem a presença forte do Estado não iremos avançar. Finalmente, associado a esse último ponto, é igualmente certo que se apostarmos na fragmentação do tecido social e não na cooperação horizontal e ativa de todos os agentes, não promoveremos essa tão necessária reconstrução/recriação.

•           A ciência e a racionalidade pública no enfrentamento de desastres

Como outra solução óbvia, ouvimos o apelo em favor da razão, da ciência, da escuta aos especialistas. Sobre esse ponto, é interessante notar que, nos últimos anos, os defensores dessa visão parecem estar na mesma trincheira dos que defendem o respeito à tradição milenar dos povos originários. Certamente há pontos de contato entre essas duas visões, mas, ao menos em relação a tal alinhamento, sobra uma pergunta de difícil resposta: Como conjugar ciência e saberes ancestrais? Elaborando um pouco mais a pergunta: Como conjugar a valorização à ciência e a celebração de algumas cosmovisões não calcadas em princípios consagrados pelo método científico como, por exemplo, aqueles que fundamentam as práticas de muitos povos indígenas que operam a partir da celebração de mitos e que entendem elementos da natureza como divindades? Por certo, muito já se pensou sobre a compatibilização entre a fé e a ciência, mas o que nos causa uma certa estranheza é o apelo que alguns fazem à ciência quando tal defesa é conveniente para criticar a fé daqueles que têm visões opostas, e o apelo a fé nos saberes ancestrais quando tal tese serve para se opor a práticas que agridem algo considerado sagrado como a natureza.

Uma segunda provocação a muitos dos atuais defensores da ciência está ligada à mudança de suas posturas, outrora bastante críticas, em relação ao fazer científico. Até o início dos anos 2000, era bastante comum serem ouvidas, ao menos entre boa parte dos estudantes das Ciências Humanas, fortes críticas direcionadas aos “poderosos” que faziam uso do discurso científico para impor suas visões de mundo. Não raro, a ciência, a razão, a verdade e a objetividade eram vistas como construções sociais que serviam para legitimar o status quo, para proteger uma casta de privilegiados. A razão e a ciência costumavam ser contrapostas às emoções e identificadas como símbolos de uma forma de agir no mundo que valorizava o individualismo, as faltas de empatia e de preocupação com o próximo. Como explicar essa ampla defesa da ciência por parte de muitos progressistas que a criticavam? Uma crítica mais recente com relação à noção de objetividade científica mira não na busca pela objetividade em si, pedra de toque do método científico, mas na possível omissão de pressupostos que estariam escondidos na prática científica. Será possível manter uma crítica aos métodos científicos que se pretendem objetivos quando escondem pressupostos, por exemplo, misóginos e racistas, sem descredibilizar totalmente a ciência?

Por fim, uma terceira dimensão de desafio, agora tanto aos cientistas quanto aos jornalistas profissionais. Nos últimos anos, assim como os cientistas, os jornalistas e os grandes meios de comunicação também deixaram de ocupar a posição de vilões nos discursos progressistas. Negacionistas e influenciadores que fazem uso das redes sociais e compartilham “notícias” de origens duvidosas, para dizer o mínimo, são os novos vilões. Concordamos, sem dúvida, que devemos defender a ciência e o jornalismo sério, que é preciso calcar o debate público na busca pela informação confiável e pelo escrutínio honesto. No entanto, agora olhando para a forma com que os cientistas e jornalistas (não) dialogam, deixamos duas perguntas também com tom de provocação: Será que os cientistas, de fato, se esforçam para participar do debate público e para traduzir suas investigações à população? Há um movimento entre os cientistas de valorização daqueles que buscam promover a divulgação científica? Ou esses são vistos como pensadores menores, que, no limite, não têm lugar naquele espaço acadêmico? Por outro lado, voltando a provocação aos jornalistas e aos meios de comunicação tradicionais, podemos perguntar: Será que os meios de comunicação realmente se esforçam para fundamentar suas notícias em evidências científicas? Mesmo nesses meios de comunicação tradicionais, não parece haver mais espaço às notícias sensacionalistas do que às notícias baseadas em evidências científicas?

•           As emoções e o engajamento público no enfrentamento de desastres

Por fim, não há dúvida de que a dor dos gaúchos produziu um gigantesco sentimento de solidariedade pelo Brasil (e somos muito gratos por isso). Contudo, ainda que muita ajuda tenha resultado desse sentimento, devemos nos preparar para o futuro próximo, para o momento em que deixaremos de ser manchete. Teremos força e união para recriar uma sociedade a fim de mitigar as mazelas sociais ainda mais escancaradas por esse desastre? Essa união virá da cultivação de um sentimento de pertencimento? Aqui no Sul, esse sentimento muitas vezes também marca um distanciamento, para dizer o mínimo, do restante do país. Como fortalecer a solidariedade interna sem deixar de valorizar e se preocupar com os outros cidadãos do Brasil e do mundo? Em outras palavras, como cultivar um sentimento de pertencimento virtuoso que, por um lado, estimule a solidariedade interna, mas por outro, não gere repulsa a quem é de fora. Em uma nova tentativa de reconstruir essa ideia: como desenvolver o espírito de comunidade sem estimular a xenofobia?

Soma-se a isso a nossa completa incapacidade de encontrar saídas inteligentes para a ligeireza dos afetos e das emoções mobilizadas pelas redes sociais. O ódio político, o nojo pelo diferente, a indignação e a raiva imediatas perante aquilo que nos parece injusto ou inevitável muitas vezes nos coloca em uma situação de oposição e de fechamento epistêmico a outras perspectivas e soluções. Não queremos dizer que, por exemplo, diante do racismo ou da violência de gênero, deveríamos ser lenientes, não se trata disso. Porém, se trata de manter a mentalidade arejada a fim de permitir que outros afetos mobilizados a partir da reflexão atenta e da empatia possam surgir. Sucumbir à dinâmica das redes, ou seja, trazer sua superficialidade para todos os âmbitos de nossa vida pode ser fatal em um momento de crise como esse que estamos vivendo. Em algum momento, e este é o momento, é preciso dar lugar a outros afetos como o pertencimento, a solidariedade sincera, a cooperação e a resiliência. Seremos capazes de promover engajamento a partir desse tipo de emoção pública? Seremos capazes de guardar algumas diferenças e sentar à mesa para negociar, planejar e agir?

•           Michael Sandel e o engajamento público

Michael Sandel, talvez o mais aclamado filósofo político da atualidade, abriu nosso ciclo de palestras, que seguirá até meados de setembro, com uma brilhante roda de conversa. Nessa roda, Sandel usou uma linda estratégia: dar protagonismo a três representantes de comunidades periféricas (a Negra Jaque, a Bruna e o Victor) e, a partir de seus entendimentos sobre o desastre climático mencionado, elaborar importantes reflexões sobre como entender esse momento e, por óbvio, indicar caminhos para superá-lo.

Tal postura do professor Sandel, que nessa roda de conversa teve até mais destaque do que as ideias inovadoras por ele defendidas ao longo de sua profícua carreira, vai realmente ao encontro da essência de seu entendimento sobre para onde devemos apontar enquanto sociedade. Segundo ele, só evoluiremos socialmente a partir de uma maior convivência mútua, isto é, a partir do fortalecimento de uma vida realmente comunitária. Foi um pequeno exemplo desse diálogo transversal, dessa troca de saberes, que a conversa mencionada por ele simbolizou. Que os fatos de nós da classe média (certamente a grande maioria dos leitores deste artigo) termos levado comida, dado carinho, entrado nas casas, tocado, conhecido a realidade daquela parcela da população normalmente esquecida tenham servido para furar as bolhas que nos separavam! Que esse espírito de comunidade emerja definitivamente e siga navegando pelas águas calmas da busca pela justiça social!

 

Fonte: Por Gabriel Goldmeier e Mitieli Seixas da Silva, no Le Monde

 

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