Os gastos
sociais e a “crise fiscal” sem fim
Os
indicadores da economia brasileira têm melhorado recentemente, em alguns
aspectos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
Contínua, divulgado em 29 de maio, o número de trabalhadores com carteira
assinada chegou a 38,188 milhões, um recorde na série histórica da pesquisa,
iniciada em 2012. No mesmo sentido, o Cadastro Geral de Empregados e
Desempregados (Caged) mostra que, entre desde janeiro de 2023 até abril último,
foram gerados mais de 2,2 milhões de vagas com carteira de trabalho. Segundo a
Pnad, a renda média dos trabalhadores cresceu 6,6% em 2023. Além disso, o
rendimento médio mensal real domiciliar per capita – que inclui renda do
emprego, outras fontes e programas sociais – chegou ao maior valor da série
histórica da pesquisa: R$ 1.848. Esse resultado indica alta nominal de 11,5% em
relação a 2022.
Um
fator importante na qualidade de vida da população é o controle da inflação, ou
seja, a variação de preços em percentuais menores. A inflação, medida pelo
INPC-IBGE acumula 3,34% em 12 meses. Aqui é fundamental esclarecer: o fato de
que os preços estão variando pouco não quer dizer que o custo de vida não seja
elevado. Segundo o Dieese, o salário mínimo necessário para suprir as
necessidades de uma família de 4 pessoas está em R$6.946,37, várias vezes o
salário-mínimo oficial do país e muito acima do rendimento médio dos
trabalhadores. É conhecido que o processo inflacionário nunca é neutro, ou
seja, quem paga conta principal do aumento de preços são os trabalhadores e o
segmento mais pobre da população. É a não compreensão da diferença entre
variação de preços (que está baixa), com custo de vida (que é muito alto), que
leva muitos a não acreditaram nos medidores da inflação.
Nesse
processo de melhoria dos indicadores, um dado pouco disseminado pela grande
mídia foi a divulgação feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), da
previsão de que o Brasil se tornará, ainda em 2024, a oitava economia do mundo,
ultrapassando a Itália. Essa informação é importante não tanto pelo dado em si,
já que a projeção de crescimento para este ano é modesta (2,5%), mas por
revelar a potencialidade que tem o Brasil para subir degraus nesse ranking, nos
próximos anos. Afinal, o país sofreu um golpe de Estado, há oito anos, no qual
um dos objetivos centrais foi justamente impedir o seu crescimento e,
principalmente, o seu desenvolvimento socioeconômico.
É
um fato de difícil percepção para o analista mais distraído, mas a função dos
dois governos entreguistas que assumiram após o golpe de 2016 (Michel Temer e
Jair Bolsonaro) foi justamente retardar o desenvolvimento nacional. O fato é
que, mesmo após a experiência de dois governos, que tinham a mesma política
econômica destrutiva e abertamente antinacional, a aplicação de um conjunto de
medidas desenvolvimentistas, ainda que moderadas – exemplo, a Nova Política
Industrial – rapidamente mobilizam forças que acionam o progresso do país.
Essas conjunturas específicas são uma amostra do quanto o Brasil poderia
avançar, se fosse libertado das correntes do subdesenvolvimento (que são
muitas).
Nesse
contexto de razoável melhoria dos indicadores econômicos, observa-se que ao
longo das últimas semanas, vem crescendo em setores do mercado financeiro e da
mídia corporativa, um ataque contra os gastos públicos de caráter social. Isto
é, aqueles gastos que são fundamentais à maioria da população, como saúde,
educação e aposentadoria. Esses setores, de forma orquestrada, têm defendido
uma redução nos gastos públicos da área social. Como já ocorreu em outros
períodos, algumas matérias na mídia corporativa comparam a previdência social a
uma “bomba relógio”. Outras análises propõem o fim dos atuais pisos de gastos
para a Saúde e a Educação e cortes nos gastos com a previdência.
A
ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, em audiência pública
recente sobre o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025, na Comissão
Mista de Orçamento, afirmou ser necessária uma análise da vinculação do
reajuste do salário-mínimo com benefícios como BPC, abono salarial e
seguro-desemprego. Não disse que a vinculação do salário-mínimo com o piso
previdenciário não deveria ser mantida. Mas afirmou que, nos últimos dez anos,
a vinculação do salário-mínimo com vários benefícios custou R$ 1,2 trilhão à
União.
Claro
que custou. Na sociedade contemporânea o que não custa dinheiro? O oxigênio,
talvez. O problema é que esse debate mais esconde do que mostra. E esse é
exatamente o objetivo. Por exemplo, não menciona em nenhum momento a
importância desses gastos para atenuar a extrema concentração de renda, e para
a própria alimentação do mercado consumidor interno, essencial para qualquer
país. Na audiência com a ministra, alguns deputados até falaram da importância
social e econômica da previdência e das vinculações constitucionais. Mas o que
a imprensa corporativa divulgou em manchete no outro dia é: a vinculação de
gastos no país representou uma despesa de R$ 1,2 trilhão nos últimos anos.
Simone Tebet passou uma informação na audiência que praticamente desapareceu da
cobertura da imprensa: o suposto déficit da previdência – suposto, porque parte
de uma análise enganosa – de 9%, está mais ligado ao aumento dos benefícios
sociais, ou seja, às isenções e contribuições para o INSS. Atentem para este
dado que a ministra do planejamento levou para o Congresso: em 2023, o total
das renúncias e demais subsídios foi de R$ 646,6 bilhões. O apontado “déficit”
da Previdência foi de R$ 428 bilhões.
Essa
discussão, que é feita de forma superficial e enviesada, tem dois objetivos
interligados: insistir na tecla de redução dos gastos sociais (é a tal mentira
repetida milhares de vezes) e gerar instabilidade no governo Lula, preparando o
caldo para as eleições que se aproximam. Uma comprovação de que essa discussão
tem objetivos inconfessáveis é que não se menciona o problema dos gastos
bilionários a cada ano, com a dívida pública. Se pegarmos os gastos com a
dívida em 10 anos, a exemplo do que fez a ministra com a vinculação dos gastos
sociais ao salário-mínimo, certamente estarão na casa dos trilhões de reais
(nos últimos 12 meses chega perto de um trilhão).
Segundo
o Ministério da Fazenda, nos primeiros quatro meses de 2024, o Marco Fiscal vem
sendo cumprido. O gasto do governo federal equivale a 19,1% do PIB, igual à
média verificada entre 2015 a 2023, exceto em 2020, por causa da pandemia. A
“crise fiscal”, claramente, está sendo fabricada com objetivos políticos, em um
ano em que a previsão de déficit primário, por parte de todos os especialistas,
é de zero. Além de desgastar o governo, esta campanha possibilita uma brutal e
imediata recompensa financeira aos especuladores, que sincronizam a
disseminação de boatos às suas operações. O plano é ousado: aproveitar um
governo de esquerda, para liquidar conquistas de décadas da classe
trabalhadora. É uma perfeita armadilha. Se o governo cede e retira benefícios
da população em nome de um ajuste fiscal que é um “saco sem fundos”, esses
setores atingem seu objetivo. Se o governo resiste ao assédio (inclusive de
alguns ministros), isso serve como propaganda para ganhos eleitorais dos
setores de direita.
A
associação dos gastos com saúde, educação e bolsa família, ao déficit público,
exerce ainda uma outra função fundamental, que é encobrir o problema central
das contas nacionais: os gastos com a dívida pública, citados acima. A Lei
Orçamentária (LOA) de 2024 prevê despesas de R$ 5,5 trilhões. No entanto, a
parte é para o refinanciamento da dívida pública. Com esta rubrica, a previsão
da LOA é que sejam gastos com a rolagem da dívida R$ 2,4 trilhões neste ano.
Enquanto com a previdência social, segundo maior gasto do governo federal,
deverão ser investidos R$ 935 bilhões neste ano, com a rolagem da dívida serão
comprometidos nada menos que 44% do orçamento. O gasto com juros previsto na
LOA é de R$ 436 bilhões (possivelmente será ultrapassado), mas a chamada
rolagem da dívida, isto é o seu refinanciamento, vai comprometer o valor acima
mencionado. Na rolagem da dívida, o governo emite novos títulos, paga os juros
e resgates com o dinheiro captado e assume uma nova dívida com novos prazos e
condições. O total dos títulos que continuam em aberto, ou seja, que ainda não
foram resgatados, compõem o “estoque” da dívida, formado pelo conjunto de
obrigações assumidos ao longo do tempo, inclusive, por governos anteriores.
A
Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) atingiu 61,2% do PIB (R$6,8 trilhões) em
abril. A Dívida Bruta do Setor Público (DBSP), – que compreende Governo
Federal, INSS e governos estaduais e municipais – chegou a 76,0% do PIB (R$8,4
trilhões) em abril último. No acumulado em doze meses até abril deste ano, os
juros nominais alcançaram R$776,3 bilhões (7,00% do PIB). Estes gastos com
juros da dívida pública em 12 meses equivalem a mais de 83% dos gastos
previstos com a previdência para 2024. Com uma diferença crucial: os gastos com
a previdência social são fundamentais para cerca de 150 milhões de brasileiros
(direta e indiretamente); os gastos com a dívida pública, é dinheiro jogado
fora: vai para o bolso de especulares que não agregam nada à geração de valor
no país. E com um detalhe nada trivial: como comprovam os estudos da Auditório
da Dívida Pública, boa parte da dívida é ilegal, ou seja, seu pagamento é
completamente irregular. Mas ninguém menciona os gastos com a dívida, é como se
eles fossem uma “ordem divina”.
A
dívida pública é um sistema de drenagem de recursos públicos do Brasil,
legalizado e com total cobertura da grande imprensa. Uma breve análise do
problema evidencia que o nó das contas públicas é a divida externa. Super
ricos, com bilhões de reais no mercado financeiro, e que se beneficiam da
segunda maior taxa de juros reais do planeta (em torno de 8%), são os mesmos
que estão propondo o fim da política de reajuste do salário mínimo vinculado à
evolução do PIB. O discurso de todos os conservadores da política e da economia
é o mesmo: estão “preocupados com a situação fiscal do país”.
Economistas
que, em momentos tenebrosos, ajudaram a colocar a economia nacional no buraco,
dão entrevistas descaradas, nas quais reconhecem que a economia melhorou, que
está havendo aumento dos investimentos, que o dólar vai cair devido às
condições favoráveis da balança comercial, mas o governo estaria atrapalhando.
Para esses, o governo não poderia criticar o fato de que o Banco Central
brasileiro pratica a segunda maior taxa de juros reais do planeta, sem
justificativas técnicas para isso. Para esses verdadeiros picaretas, o governo
teria que aceitar, sem reclamar, as decisões “técnicas” da direita braba que
comanda o Banco Central.
Fonte:
José Álvaro de Lima Cardoso, em A Terra é Redonda
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