quarta-feira, 26 de junho de 2024

Os gastos sociais e a “crise fiscal” sem fim

Os indicadores da economia brasileira têm melhorado recentemente, em alguns aspectos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgado em 29 de maio, o número de trabalhadores com carteira assinada chegou a 38,188 milhões, um recorde na série histórica da pesquisa, iniciada em 2012. No mesmo sentido, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostra que, entre desde janeiro de 2023 até abril último, foram gerados mais de 2,2 milhões de vagas com carteira de trabalho. Segundo a Pnad, a renda média dos trabalhadores cresceu 6,6% em 2023. Além disso, o rendimento médio mensal real domiciliar per capita – que inclui renda do emprego, outras fontes e programas sociais – chegou ao maior valor da série histórica da pesquisa: R$ 1.848. Esse resultado indica alta nominal de 11,5% em relação a 2022.

Um fator importante na qualidade de vida da população é o controle da inflação, ou seja, a variação de preços em percentuais menores. A inflação, medida pelo INPC-IBGE acumula 3,34% em 12 meses. Aqui é fundamental esclarecer: o fato de que os preços estão variando pouco não quer dizer que o custo de vida não seja elevado. Segundo o Dieese, o salário mínimo necessário para suprir as necessidades de uma família de 4 pessoas está em R$6.946,37, várias vezes o salário-mínimo oficial do país e muito acima do rendimento médio dos trabalhadores. É conhecido que o processo inflacionário nunca é neutro, ou seja, quem paga conta principal do aumento de preços são os trabalhadores e o segmento mais pobre da população. É a não compreensão da diferença entre variação de preços (que está baixa), com custo de vida (que é muito alto), que leva muitos a não acreditaram nos medidores da inflação.

Nesse processo de melhoria dos indicadores, um dado pouco disseminado pela grande mídia foi a divulgação feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), da previsão de que o Brasil se tornará, ainda em 2024, a oitava economia do mundo, ultrapassando a Itália. Essa informação é importante não tanto pelo dado em si, já que a projeção de crescimento para este ano é modesta (2,5%), mas por revelar a potencialidade que tem o Brasil para subir degraus nesse ranking, nos próximos anos. Afinal, o país sofreu um golpe de Estado, há oito anos, no qual um dos objetivos centrais foi justamente impedir o seu crescimento e, principalmente, o seu desenvolvimento socioeconômico.

É um fato de difícil percepção para o analista mais distraído, mas a função dos dois governos entreguistas que assumiram após o golpe de 2016 (Michel Temer e Jair Bolsonaro) foi justamente retardar o desenvolvimento nacional. O fato é que, mesmo após a experiência de dois governos, que tinham a mesma política econômica destrutiva e abertamente antinacional, a aplicação de um conjunto de medidas desenvolvimentistas, ainda que moderadas – exemplo, a Nova Política Industrial – rapidamente mobilizam forças que acionam o progresso do país. Essas conjunturas específicas são uma amostra do quanto o Brasil poderia avançar, se fosse libertado das correntes do subdesenvolvimento (que são muitas).

Nesse contexto de razoável melhoria dos indicadores econômicos, observa-se que ao longo das últimas semanas, vem crescendo em setores do mercado financeiro e da mídia corporativa, um ataque contra os gastos públicos de caráter social. Isto é, aqueles gastos que são fundamentais à maioria da população, como saúde, educação e aposentadoria. Esses setores, de forma orquestrada, têm defendido uma redução nos gastos públicos da área social. Como já ocorreu em outros períodos, algumas matérias na mídia corporativa comparam a previdência social a uma “bomba relógio”. Outras análises propõem o fim dos atuais pisos de gastos para a Saúde e a Educação e cortes nos gastos com a previdência.

A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, em audiência pública recente sobre o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025, na Comissão Mista de Orçamento, afirmou ser necessária uma análise da vinculação do reajuste do salário-mínimo com benefícios como BPC, abono salarial e seguro-desemprego. Não disse que a vinculação do salário-mínimo com o piso previdenciário não deveria ser mantida. Mas afirmou que, nos últimos dez anos, a vinculação do salário-mínimo com vários benefícios custou R$ 1,2 trilhão à União.

Claro que custou. Na sociedade contemporânea o que não custa dinheiro? O oxigênio, talvez. O problema é que esse debate mais esconde do que mostra. E esse é exatamente o objetivo. Por exemplo, não menciona em nenhum momento a importância desses gastos para atenuar a extrema concentração de renda, e para a própria alimentação do mercado consumidor interno, essencial para qualquer país. Na audiência com a ministra, alguns deputados até falaram da importância social e econômica da previdência e das vinculações constitucionais. Mas o que a imprensa corporativa divulgou em manchete no outro dia é: a vinculação de gastos no país representou uma despesa de R$ 1,2 trilhão nos últimos anos. Simone Tebet passou uma informação na audiência que praticamente desapareceu da cobertura da imprensa: o suposto déficit da previdência – suposto, porque parte de uma análise enganosa – de 9%, está mais ligado ao aumento dos benefícios sociais, ou seja, às isenções e contribuições para o INSS. Atentem para este dado que a ministra do planejamento levou para o Congresso: em 2023, o total das renúncias e demais subsídios foi de R$ 646,6 bilhões. O apontado “déficit” da Previdência foi de R$ 428 bilhões.

Essa discussão, que é feita de forma superficial e enviesada, tem dois objetivos interligados: insistir na tecla de redução dos gastos sociais (é a tal mentira repetida milhares de vezes) e gerar instabilidade no governo Lula, preparando o caldo para as eleições que se aproximam. Uma comprovação de que essa discussão tem objetivos inconfessáveis é que não se menciona o problema dos gastos bilionários a cada ano, com a dívida pública. Se pegarmos os gastos com a dívida em 10 anos, a exemplo do que fez a ministra com a vinculação dos gastos sociais ao salário-mínimo, certamente estarão na casa dos trilhões de reais (nos últimos 12 meses chega perto de um trilhão).

Segundo o Ministério da Fazenda, nos primeiros quatro meses de 2024, o Marco Fiscal vem sendo cumprido. O gasto do governo federal equivale a 19,1% do PIB, igual à média verificada entre 2015 a 2023, exceto em 2020, por causa da pandemia. A “crise fiscal”, claramente, está sendo fabricada com objetivos políticos, em um ano em que a previsão de déficit primário, por parte de todos os especialistas, é de zero. Além de desgastar o governo, esta campanha possibilita uma brutal e imediata recompensa financeira aos especuladores, que sincronizam a disseminação de boatos às suas operações. O plano é ousado: aproveitar um governo de esquerda, para liquidar conquistas de décadas da classe trabalhadora. É uma perfeita armadilha. Se o governo cede e retira benefícios da população em nome de um ajuste fiscal que é um “saco sem fundos”, esses setores atingem seu objetivo. Se o governo resiste ao assédio (inclusive de alguns ministros), isso serve como propaganda para ganhos eleitorais dos setores de direita.

A associação dos gastos com saúde, educação e bolsa família, ao déficit público, exerce ainda uma outra função fundamental, que é encobrir o problema central das contas nacionais: os gastos com a dívida pública, citados acima. A Lei Orçamentária (LOA) de 2024 prevê despesas de R$ 5,5 trilhões. No entanto, a parte é para o refinanciamento da dívida pública. Com esta rubrica, a previsão da LOA é que sejam gastos com a rolagem da dívida R$ 2,4 trilhões neste ano. Enquanto com a previdência social, segundo maior gasto do governo federal, deverão ser investidos R$ 935 bilhões neste ano, com a rolagem da dívida serão comprometidos nada menos que 44% do orçamento. O gasto com juros previsto na LOA é de R$ 436 bilhões (possivelmente será ultrapassado), mas a chamada rolagem da dívida, isto é o seu refinanciamento, vai comprometer o valor acima mencionado. Na rolagem da dívida, o governo emite novos títulos, paga os juros e resgates com o dinheiro captado e assume uma nova dívida com novos prazos e condições. O total dos títulos que continuam em aberto, ou seja, que ainda não foram resgatados, compõem o “estoque” da dívida, formado pelo conjunto de obrigações assumidos ao longo do tempo, inclusive, por governos anteriores.

A Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) atingiu 61,2% do PIB (R$6,8 trilhões) em abril. A Dívida Bruta do Setor Público (DBSP), – que compreende Governo Federal, INSS e governos estaduais e municipais – chegou a 76,0% do PIB (R$8,4 trilhões) em abril último. No acumulado em doze meses até abril deste ano, os juros nominais alcançaram R$776,3 bilhões (7,00% do PIB). Estes gastos com juros da dívida pública em 12 meses equivalem a mais de 83% dos gastos previstos com a previdência para 2024. Com uma diferença crucial: os gastos com a previdência social são fundamentais para cerca de 150 milhões de brasileiros (direta e indiretamente); os gastos com a dívida pública, é dinheiro jogado fora: vai para o bolso de especulares que não agregam nada à geração de valor no país. E com um detalhe nada trivial: como comprovam os estudos da Auditório da Dívida Pública, boa parte da dívida é ilegal, ou seja, seu pagamento é completamente irregular. Mas ninguém menciona os gastos com a dívida, é como se eles fossem uma “ordem divina”.

A dívida pública é um sistema de drenagem de recursos públicos do Brasil, legalizado e com total cobertura da grande imprensa. Uma breve análise do problema evidencia que o nó das contas públicas é a divida externa. Super ricos, com bilhões de reais no mercado financeiro, e que se beneficiam da segunda maior taxa de juros reais do planeta (em torno de 8%), são os mesmos que estão propondo o fim da política de reajuste do salário mínimo vinculado à evolução do PIB. O discurso de todos os conservadores da política e da economia é o mesmo: estão “preocupados com a situação fiscal do país”.

Economistas que, em momentos tenebrosos, ajudaram a colocar a economia nacional no buraco, dão entrevistas descaradas, nas quais reconhecem que a economia melhorou, que está havendo aumento dos investimentos, que o dólar vai cair devido às condições favoráveis da balança comercial, mas o governo estaria atrapalhando. Para esses, o governo não poderia criticar o fato de que o Banco Central brasileiro pratica a segunda maior taxa de juros reais do planeta, sem justificativas técnicas para isso. Para esses verdadeiros picaretas, o governo teria que aceitar, sem reclamar, as decisões “técnicas” da direita braba que comanda o Banco Central.

 

Fonte: José Álvaro de Lima Cardoso, em A Terra é Redonda

 

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