Extrema-direita
brasileira deflagra perseguição a cientistas que pesquisam desinformação
A
disseminação de fake news praticada pela extrema-direita no Brasil, disfarçada
de “liberdade de expressão”, agora tem uma nova missão: a pressão – ou até
mesmo lawfare – contra pesquisadores e instituições que trabalham
cientificamente no combate à desinformação.
Apesar
da tentativa de intimidação sistemática àqueles que se baseiam na ciência,
semelhante à utilizada nos Estados Unidos contra pesquisadores que criticam o
sionismo, o resultado parece ir na direção contrária do que os extremistas
queriam: fortalece ainda mais a área da pesquisa e a valorização desses
profissionais.
A
visão é do professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Disputas e Soberanias
Informacionais (INCT-DSI), Afonso Albuquerque, convidado do programa TVGGN 20
Horas, com o jornalista Luis Nassif [confira o link abaixo].
“A
coisa opera naquele bullying de chamar para prestar contas, mas é importante
discutir uma cobertura judicial a quem atua para preservar o direito à
liberdade de expressão, porque o ataque vai além disso. É movido por setores
cuja lógica de atuação é, a priori, anticientífica, é contra a ciência. Mas a
tendência desses ataques é legitimar esses pesquisadores e mostrar que estão
fazendo um trabalho sério”, expõe Albuquerque.
A
“perseguição legal” contra estudiosos, de acordo com o professor da UFF,
costuma imitar as táticas norte-americanas sem considerar as diferenças
contextuais entre as nações, marca do movimento reacionário.
Nos
EUA, as consequências podem ser mais danosas devido à relação mais frágil entre
professores e instituições, o que resulta em pressões administrativas e até
demissões. No Brasil, por outro lado, apesar dos desafios por mais valorização,
os profissionais gozam de maior estabilidade, e as universidades tendem a
defender com mais vigor a liberdade de cátedra.
“Acho
que a extrema-direita brasileira copia muito a tecnologia dos Estados Unidos
sem entender eventualmente que os contextos são diferentes. O impacto disso nos
Estados Unidos é muito mais forte do que aqui”, opina Albuquerque.
• Os ataques vazios às instituições
Um
dos principais alvos dessas perseguições atualmente é a NetLab da UFRJ.
Deputados do PL alegam que o grupo de pesquisa “persegue críticos do governo”
Lula e centram seus estudos apenas na extrema-direita, de maneira supostamente
tendenciosa.
Nesse
imbróglio, o ex-procurador da Lava Jato e ex-deputado federal cassado, Deltan
Dallagnol, aproveitou o momento para tecer elogios ao jornalista Cláudio
Dantas, que escreveu sobre a “atuação da NetLab da UFRJ em favor daqueles que o
financiam”, referindo-se aos recursos recebidos de fundações públicas e
privadas [que ele associado à “esquerda” global] e do governo federal.
Outro
caso envolve a produtora de conteúdo Brasil Paralelo, que além de admitir ter
formado historiadores de forma remota, agora mira cursos de história, geografia
e ciências sociais para estudantes de baixa renda, com o propósito de
descredibilizar as instituições de ensino. Leia mais>>> Peterson
compara Marx a Caim em evento divulgado pela Brasil Paralelo
“Há
um esforço sistemático de esvaziar a autoridade das universidades, das
instituições universitárias como sendo movidas por interesses partidários, um
clássico. Acho que a desse povo é pegar o que eles próprios fazem e atribuir a
outros”, analisa o professor.
• O controle soberano sobre a
informação
O
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) é um dos projetos vinculados
ao CNPq, que tem como um dos principais objetivos desvendar o controle soberano
sobre a informação.
A
discussão sobre soberania digital no Brasil, explica o coordenador Afonso de
Albuquerque, envolve plataformas digitais que operam fora do controle nacional.
Essas
plataformas prometem financiar o “bom jornalismo”, mas fazem isso sem
transparência, o que acaba aumentando ainda mais a concentração de poder no
ambiente digital, especialmente das Big Techs.
Já
na pesquisa internacional sobre desinformação, que cresceu exponencialmente em
poucos anos, segundo o professor, nota-se que 10% dos trabalhos tratam a
desinformação como uma ação da Rússia, ignorando a influência das plataformas
sediadas nos EUA ou as operações do próprio governo americano, conhecidas como
PsyOps [em tradução livre, operações psicológicas].
“A
produção do conhecimento científico é majoritariamente controlada pelos Estados
Unidos, o circuito do conhecimento científico é controlado a partir dos Estados
Unidos. (…) Nós vamos para a China justamente para reforçar o nosso laço com
pesquisadores de diferentes partes do mundo, e tentar criar um núcleo, uma rede
de pesquisadores [mais plural]. A gente sabe que a grande mídia, de maneira
geral, opera a partir de uma dinâmica subordinada.”
• Governo de Santa Catarina afasta
professora por “militância política”, após aula sobre fake news
A
professora Carolina M. Puerto, dava aula de Filosofia aos seus alunos do Ensino
Médio, na Escola de Educação Básica (EEB) Simão José Hess, no dia 28 de maio,
quando foi surpreendida por funcionários da Coordenadoria Regional de Educação
de Florianópolis (CRE) com uma denúncia sobre suas atividades. Menos de um mês
depois, foi publicada na edição do Diário Oficial de 17 de junho a instrução de
um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra a docente, afastada de suas
funções por 60 dias sob acusação de “militância política”. Esse é mais um dos
casos de perseguição contra educadores no Sul do país e Puerto fala com
exclusividade ao GGN sobre a censura.
Naquela
reunião com a CRE, em visita à própria escola, a professora insistiu sobre os
motivos da suposta infração e foi informada que o episódio em questão se
tratava de uma aula ministrada sobre desinformação, clandestinamente gravada.
“A minha acusação é de que eu usei como exemplo o governador Jorginho Mello
(PL) como alguém que propaga Fake News sobre mudança climática. Esse era o
contexto”, conta Puerto.
“Fui
chamada na sala e levada para uma reunião na minha escola, com três pessoas da
Coordenadoria. (…) Foi uma reunião bastante longa e no início tensa. Nela, eu
fui informada de que tinha uma denúncia, sobre alguma coisa que eu teria falado
em aula sobre o governador. Questionei no primeiro momento a denúncia anônima,
feito a partir de uma gravação ilegal, e demoraram para dar uma explicação. Não
tive acesso ao áudio [da gravação ilegal] e não queriam nem me dizer do que se
tratava, mas em determinado momento me falaram: ‘a tua acusação é conteúdos
políticos partidários’”, relata. “Agora, no PAD a justificativa é de militância
política em sala de aula”, acrescenta a professora.
Carolina
Puerto explica que a aula ocorria em meio à tragédia das enchentes no Rio
Grande do Sul: “A mudança climática é o nosso maior problema atualmente e eu
levei essa questão para pensar em aula”. “Infelizmente, o governador costuma
compartilhar Fake News, isso é sabido. No mês da tragédia, ele compartilhou
várias notícias falsas e há provas disso. Eu sempre trabalho a partir do método
Socrático, com perguntas e, em algum momento, eu dei como exemplo políticos que
usam as Fake News inclusive para se elegerem, e o governador de Santa Catarina
usou Fake News sobre esse assunto e isso é muito grave.”
Conforme
publicação do Diário Oficial, a Corregedoria afastou a docente por 60 dias das
salas de aulas, enquanto investiga o caso. Nesse período, a professora
apresentará também a sua defesa e afirma que sua luta é para que a decisão
possa ser suspensa. “Fui afastada com remuneração, mas se essa investigação se
prolongar pode ser que isso mude. Eles vão formar uma Comissão para me julgar,
que deveria ser paritária, ou seja, deve ter membros da própria escola e nós
vamos ter que lutar, porque em geral a Secretaria [de Educação] não quer fazer
isso [garantir a paridade]. No final, eles dizem se eu vou ser exonerada ou
não”, afirma.
A
reportagem questionou a Secretária de Estado da Educação, encabeçada pelo
professor Aristides Cimadon, sobre o
caso de Puerto, inclusive a respeito da gravação ilegal. O órgão, no entanto,
limitou-se a responder por meio de nota que foi “instruído PAD para apurar a
conduta da professora durante aula” e que a “profissional foi afastada das
funções”.
“Estou
muito indignada. A sensação de não poder pisar na escola, a sensação de não ter
acesso aos estudantes. Embora eu tenha acompanhado algumas pessoas em casos de
assédio e intimidação, é muito sofrido. A opressão é muito difícil e agora eu
tenho que me defender”, desabafa Carolina.
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Lei da mordaça na prática
Nos
últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) impôs uma série de derrotas a
normativas baseadas no programa “Escola Sem Partido”, que na prática
institucionaliza a perseguição a professores.
Contudo,
logo ao assumir o governo de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL) sancionou uma
legislação conhecida como “Lei da Mordaça”, elaborada pela deputada estadual de
extrema-direita Ana Campagnolo (PL), que instrui as crianças sobre “atitudes a
serem tomadas no caso de violação dos direitos” e “ao tratar de questões
políticas, sociais, culturais, históricas e econômicas, o professor apresentará
aos estudantes, de forma equitativa, as principais versões, teorias, opiniões e
perspectivas concorrentes a respeito”.
É
por meio dessa medida que o governo catarinense tem silenciado professores,
como Puerto, que não é um caso isolado no Estado. Contudo, a legislação
brasileira sobre proteção de dados e de direitos autorais assegura proteção a
casos como o da professora, considerando ilegal qualquer gravação feita por um
terceiro sem autorização.
Segundo
a docente, a própria CRE reconhece que a prova fornecida para denúncia é
“ilegal”. “Eles assumiram que a gravação é ilegal, assumiram que a gravação não
pode ser usada como prova e está tudo registrado. Inclusive, eles orientam que
a escola faça um trabalho de reflexão e de divulgação da Lei de Proteção de
Dados”, revela.
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Atuação em defesa da educação
O
caso de Carolina M. Puerto guarda ainda outras proporções, uma vez que ela
ocupa a Diretoria de organização da Regional de Florianópolis do Sindicato dos
Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de SC (SINTE/SC),
que coordenou a greve do magistério de Santa Catarina.
Naquela
ocasião, com as grandes proporções dos atos, o governador despachou uma carta
às escolas com ameaças de demissões. “Nós estávamos à frente da greve, no
sentido que a Regional Floripa teve uma expressão maior durante o movimento por
várias razões, principalmente por ser na capital. Mas nós saímos da greve em
uma situação muito difícil. Eu nunca tinha visto um governador assediar por
meio de um documento, inconstitucional, em que ele registrou ameaças de
demissão”, conta.
Puerto
enxerga relação do episódio com a rapidez em que se deu o seu processo de
afastamento e a justificativa de “militância política” para instauração do PAD.
“Ao mesmo tempo, porque eu sou só mais uma professora, mas entendo que é um
recado muito claro”, diz.
Ainda
assim, a professora ressalta que este não é um problema individual: “É uma
questão coletiva, porque Santa Catarina é um lugar que tem uma série de casos
como o meu. Não gosto da exposição individual, eu entendo como uma questão
coletiva.”
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Mobilização
Consternados
com a situação de Carolina, os docentes da EEB Simão José Hess publicaram uma
carta aberta à comunidade escolar, manifestando “apoio irrestrito” à
professora, inclusive salientando que o trabalho com conteúdo sobre
desinformação é “orientado pelos cadernos curriculares do território
catarinense a respeito do Novo Ensino Médio”.
“Estou
recebendo um apoio que eu não tenho direito de não encarar isso da melhor
maneira possível. Todo o apoio é fundamental, mas, sem dúvidas, o que mais me
emociona e fortalece é o apoio que eu tenho recebido dos estudantes”, relata
Puerto.
Na
próxima terça-feira (25), colegas da docente irão se reunir em um ato, em
frente à sede da Secretaria de Estado da Educação, em Florianópolis, a partir
das 13h.
“O
ato é em defesa da liberdade, contra a perseguição de trabalhadores da educação
e para que o processo seja suspenso e que eu retorne ao meu trabalho. Vamos
estar lá pelo meu retorno, mas também porque não podemos mais aceitar esse tipo
de perseguição absurda, que tem levado
não só ao afastamento, mas ao adoecimento de professores”, completa Puerto.
Fonte:
Jornal GGN
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