Cinquentenário
das relações diplomáticas Brasil-China
Pela
paz global: as pontes entre Brasil e China no caminho de uma nova era
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Questão norteadora
Vamos
direto ao tema que nos interessa nessa jornada: na passagem dos 50 anos do
estabelecimento de relações diplomáticas entre Brasil e China, e passados 75
anos da guerra de libertação nacional e revolução social que fundaram a
República Popular da China, como poderiam, esses dois grandes países,
aprofundar suas ótimas relações no sentido de contribuir, não só com palavras
ou boas intenções, mas sim com projetos e ações concretas – várias delas,
aliás, que já vêm ocorrendo na prática de nossas trocas, sejam culturais,
científicas, econômicas ou políticas – para a construção, a partir do que se
convencionou chamar de Sul Global, de uma efetiva Paz Mundial?
Que
para ser Paz e ser Mundial, deve se basear, de modo real, num mundo mais
igualitário, mais livre e mais solidário, bem diferente, portanto, dos cenários
a que estamos habituados, infelizmente, a presenciar no mundo de hoje?
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Considerações gerais
Nos
cinco ensaios que tenho publicado, de 2016 até hoje, sobre o caráter “desigual
e combinado” dos espaços-tempos em países antigos, enormes e complexos como os
nossos, conceito de certa forma básico e atual na tradição marxista, ressaltei
a necessidade de superarmos certos preconceitos e dicotomias simplificadoras
que herdamos do pensamento ocidentalista.
Entre
as ilusões a serem superadas, localizei as ilusões geográficas (artigo de 2016)
e as ilusões cronológicas (artigo de 2022). Isto é, temos que tentar abandonar
a ideia de uma continuidade homogênea entre os espaços que compõem nossas
sociedades, bem como abandonar a ideia de uma linearidade evolutiva contínua
entre diferentes fases ou períodos de nossas histórias.
Essas
falsas dicotomias negam o pensamento dialético e povoam nossos livros de
ciências humanas. tradicional x moderno; comunidade x sociedade; centro x
periferia; rural x urbano; global x local; nacional x regional; internacional x
nacional; etc. Para nossa reflexão ficar mais concreta, vou me referir a alguns
autores importantes nessa questão. Vocês já devem ter ouvido falar na expressão
ou neologismo “Glocal” ou “Glocalização”.
Entre
vários autores que adotaram e passaram a trabalhar com esse termo, vamos
lembrar do sociólogo inglês Roland Robertson (1938-2022), que foi muito tempo
professor na Universidade de Aberdeen, Escócia, e que já numa conferência em
1997, sobre “Globalização e cultura indígena”, estabeleceu que “glocalização
significa a simultaneidade – a co-presença – de ambas as tendências, a de
universalização e a de particularização”. Seu mérito maior parece ter sido o de
“roubar” esse neologismo que aparecia atrelado a estratégias mercadológicas no
Japão e redefini-lo, em perspectiva dialética mais ampla e afeita às mudanças
socioculturais advindas do avanço da tecnologia digital.
Devo,
agora, destacar um autor brasileiro que sempre me agradou muito. Trata-se do
geógrafo baiano, negro, homem de esquerda e exilado da ditadura militar, Milton
Santos (1926-2001). Ao seu último livro, publicado em 2000, um ano antes de
falecer, ele propôs justamente o título Por uma outra globalização: do
pensamento único à consciência universal. Plenamente consciente dos
problemas que resumimos aqui, ele, que ademais era grande estudioso do
urbanismo, propõe uma nova modalidade de globalização que se contraponha por
inteiro ao poder do capitalismo financeiro e abstrato e se concentre, ao invés
disso, nos lugares, nas comunidades e nas pessoas.
Tais
categorias, por sua vez, são redefinidas e adquirem nova centralidade histórica
e epistemológica. E temos que compartilhar a ótima notícia da reedição desse
livro no Brasil, em 2021, com prefácio do escritor negro baiano e
contemporâneo, Itamar Vieira Júnior, autor, entre outros, do romance
premiado Torto Arado (2019). Geógrafo e funcionário do INCRA,
estudioso de populações quilombolas, Itamar Vieira Júnior é preciso nessa
apresentação, ao formular, lucidamente: “Por uma outra globalização trata da globalização
como fábula e como perversidade”. E sabemos agora, também, que Torto
Arado pode ser lido pelo público chinês, pois foi traduzido ao
mandarim por Augusto Souto Pestana e recém-editado aqui!
Finalmente,
devo mencionar outro brasileiro, sociólogo e antropólogo bem conhecido,
inclusive aqui na China, que é Gilberto Freyre (1900-1987), homem de perfil
conservador, que apoiou a ditadura fascista-colonialista de Salazar em Portugal
e a ditadura militar no Brasil. Mas, apesar disso tudo, encontramos em sua obra
aspectos interessantes sobre nossa cultura e sociedade. Entre eles, o conceito
de “rurbanização” ou “rurbano”, que ele começou a usar em 1945, mas consolidou
num ensaio publicado em 1982, como uma concepção, para além da dicotomia rural
x urbano, “definidora de uma situação intermediária entre a puramente rural e a
exclusivamente urbana – pois que a define como posição mista, dinâmica e
conjugal entre os valores que aquelas vidas representam”.
Ou,
então: “Um processo de desenvolvimento socioeconômico que combina, como formas
e conteúdos de uma só vivência regional – a do Nordeste, por exemplo, ou
nacional – a do Brasil como um todo – valores e estilos de vidas rurais e
valores e estilos de vida urbanos. Daí o neologismo: rurbanos”.
Pode-se
perceber, até aqui, que essas revisões de antigos conceitos tentaram sempre
relativizar as dicotomias tradicionais e eurocêntricas que dominaram (e em
parte ainda dominam) a visão prevalecente nas ciências humanas. E devemos
também ao sociólogo nordestino do Recife, Gilberto Freyre, que, diga-se de
passagem, jamais viajou à China (ele esteve somente na Índia, país que também
muito admirava, especialmente a figura de Gandhi), a sua intuição luminosa,
digamos, sobre as afinidades culturais mais profundas entre os povos brasileiro
e chinês, a ponto de ele escrever seu famoso ensaio “Por que China tropical?”,
em versões iniciais publicadas em Nova York, em 1945 e 1959, dentro de um
conjunto mais amplo de trabalhos em que se propunha a repensar os fundamentos
civilizacionais de um “novo mundo nos trópicos”, tendo o Brasil como centro e a
China como modelo.
Note-se
a esse respeito que, apesar de seu conservadorismo de base, o autor valorizava
enormemente, dentro de um nacionalismo moderado, experiências históricas e
culturais que se afastavam tanto dos EUA quanto das principais potências
colonialistas europeias, exceção, é verdade, de sua paixão quase cega por
Portugal e pelo que chamava de luso-tropicalismo.
Esclareço,
aqui, que quando intitulei minhas crônicas de viagem, feitas e escritas entre
2019 e 2020, de Minha China Tropical, inverti intencionalmente os
termos sugeridos por Freyre em seu ensaio citado. Porque, na minha visão
imaginária recente, é, ao contrário, a China que se parece mais com certas
paisagens e representações culturais do Brasil. Neste caso, o pronome pessoal
“minha” é uma marca de leitura mais subjetiva, literária; e, ao mesmo tempo,
inspirada, mas diferenciada do grande sociólogo pernambucano.
A
essas referências que julgo necessárias, é preciso acrescentar dois
pesquisadores chineses da maior importância, um deles que podemos chamar já de
“clássico” e outro, nosso contemporâneo. Refiro-me ao cientista social pioneiro
Fei Xiaotong (1910-2005) e ao cientista político Qin Yaqing (1953-), atualmente
professor da Universidade de Shandong e ex-professor da Universidade de
Relações Exteriores da China e, também, ex-diretor do Instituto de Estudos
Estratégicos e Internacionais da BEIDA.
Do
primeiro desses autores, Fei Xiaotong, ressalto a bela reunião de ensaios do
final de sua trajetória que a editora Springer, de Berlim, publicou em 2015,
intitulada Globalization and cultural self-awareness. Seu espírito
geral, a nosso ver, guarda muitos pontos de contato e afinidades eletivas
potencialmente produtivas com a perspectiva da obra-testamento do geógrafo
baiano Milton Santos, em Por uma outra globalização, já mencionada.
Em
ambos os pensadores estamos diante de uma crítica profunda aos rumos da
globalização financeira abstrata, em prol de uma nova consciência, “universal”
ou “cultural”, que seja crítica e capaz de estabelecer pontes pacíficas entre
as pessoas, os lugares e as comunidades. Que tais perspectivas
potencialmente transformadoras tenham sido propostas por um autor chinês e
outro brasileiro, por si só, já renovam nossas esperanças.
Quanto
ao professor Qin Yaqing, cuja obra ainda está em plena construção, ele tem o
mérito de propor uma teoria “relacional” ou construtivista das relações
internacionais contemporâneas, ao criticar o paradigma realista linear e
dominante nos estudos habituais dessa área, ainda em grande parte dominados por
conceitos ocidentais.
Sua
nova teoria, presente em diversos trabalhos, como, por exemplo, A
relational theory of world politics (2018), de sua autoria, ou Globalizing
IR theory: critical engagement (2020), como organizador, propõe uma
visão literalmente “desarmada” das relações geopolíticas no mundo atual,
tentando estabelecer elos significativos com a política implantada há uma
década pela China, a chamada Nova Rota da Seda. Sem dúvida, uma proposta ampla
e ambiciosa, em seus desafios, tanto no nível teórico quanto no nível prático.
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Considerações práticas
sobre Brasil e China
Não
vou tratar aqui, porque não é do meu campo de estudos, a óbvia e significativa
curva de expansão crescente nas trocas comerciais entre Brasil e China. China
já é, há um bom tempo, e de forma ascendente, o grande parceiro de exportações
e importações brasileiras. O quadro é de muita relevância, seja no contexto da
América Latina e da América do Sul, seja no contexto da Europa. Esperamos que
siga assim. E acreditamos que há plenas condições favoráveis para que tal
tendência se mantenha e se expanda, no atual momento histórico.
Gostaria
de enfatizar, aqui, o papel fundamental que as trocas culturais, nelas
incluídas a produção artística e literária em geral, de ambos nossos países,
podem exercer nesse processo. Não se trata, apenas, como alguns analistas
econômicos gostam de denominar, do exercício do chamado “soft power” em
nível das trocas China-Brasil. Pois toda troca cultural desinteressada, isto é,
para além dos seus valores de mercado, ao contribuir para o conhecimento mútuo
e para a amizade entre os povos, será sim um fator de influência pacífica, não
hegemônica e, portanto, na contramão dos conflitos ideológicos e das guerras
frias e quentes, de que o século XXI tem nos dado os piores cenários…
Mas
já que estamos aqui, e não por acaso, no campus da Universidade de Pequim,
referência nacional e internacional, é preciso ressaltar, sem nenhum risco de
exagero, o poder enorme que a educação pública superior e a cooperação
interuniversitária podem trazer e significar para os nossos países, exatamente
nesse contexto particular de suas funções inadiáveis e insubstituíveis, na
parceria e liderança consensual desse bloco assim chamado Sul Global. Docentes
e discentes chineses têm que viajar mais ao Brasil, e conhecer melhor nosso
país. Docentes e discentes brasileiros têm que viajar mais à China, e conhecer
melhor as várias facetas das paisagens, da sociedade e da cultura chinesa.
Quando
viajei a primeira vez à China e a Pequim, em 2013, o sonho da expansão do
ensino da língua portuguesa brasileira ainda estava dando seus primeiros
passos. Hoje, passada mais de uma década, e mesmo com as condições
desfavoráveis da pandemia de Covid-19, esse sonho já é uma realidade bem mais
palpável, não só aqui em Pequim, mas também em várias outras cidades imenso
país. No Brasil, diante de enormes desafios, e das nuvens ameaçadoras da
desinformação, o interesse pela China, por sua língua e cultura, sem dúvida,
aumenta a cada dia. Isso tudo implica em tarefas que nos são atribuídas com
amplo potencial de sucesso.
E
para concluir esse tópico, vou falar de um setor distante de nossas áreas de
estudo: a questão do desenvolvimento agrário. Para além da visita do Presidente
Lula à China em 2023, complementada agora, há poucos dias, pela visita do
Vice-Presidente Geraldo Alckmin, quero destacar, no contexto da VII Reunião da
Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Acordo e Cooperação (COSBAN), as
visitas, há cerca de duas semanas, do Ministro de Desenvolvimento Agrário,
Paulo Teixeira, e do Ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias que
participaram num Fórum de Luta contra a Pobreza e pela Revitalização Rural.
A
maior novidade, nesse encontro, para além das autoridades previstas, foi a
presença e participação das maiores organizações sociais e sindicais do campo
no Brasil, quais sejam: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a Confederação
Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil
(CONTRAF) e o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA).
Destaco
esse ponto não por acaso. Além de não ter sido anunciado pela nossa grande
mídia, a questão agrária, tanto do ponto de vista do combate à extrema pobreza
quanto do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, é ainda, sem dúvida,
uma questão estratégica central na projeção do Sul Global em direção a um
planeta mais bem habitável.
Mas,
antes de terminar, não posso deixar de mencionar o discurso certeiro e
inspirado do Presidente Lula, no último dia 13 de junho, na abertura da
Conferência Internacional do Trabalho, da OIT (Organização Internacional do
Trabalho), realizada em Genebra, Suíça, quando se deu o lançamento da Coalizão
Global para a Justiça Social. Essa importante intervenção desse que é sem
dúvida um dos grandes líderes do Sul Global, foi solenemente ignorada pela
grande mídia brasileira. E o que falou de importante Lula?
Do
crescimento da extrema pobreza no mundo, acompanhada pela precarização e
informalidade do trabalho. De outro lado, a extrema riqueza, essa sim, a
polarização real: “Nunca antes o mundo teve tantos bilionários. Estamos falando
de 3 mil pessoas que detêm 15 trilhões de dólares em patrimônio. Isso
representa a soma dos PIBs do Japão, da Alemanha, da Índia e do Reino Unido”.
Ele afirmou: “A concentração de renda é tão absurda que alguns indivíduos
possuem seus próprios programas espaciais. Não precisamos buscar soluções em
Marte. É a Terra que precisa do nosso cuidado”. Para quem se interessar mais,
um dos blogs alternativos de jornalismo independente no Brasil, dirigido por
Luis Nassif, em gesto solitário, postou esse discurso na íntegra.
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Considerações finais
Amigas
e Amigos: sabemos que em Ciência, como também em Cultura, não existem verdades
absolutas nem eternas. Toda pesquisa universitária e acadêmica que possa ser
considerada de qualidade, deve admitir o princípio da boa dúvida e das
incertezas que acompanham qualquer “descoberta”. Nas chamadas ciências humanas,
isso é bastante aceito, embora muitas pessoas e instituições parecem, às vezes,
esquecer dessa condição variável de nosso trabalho, e daí aquilo que é ciência
compartilhada, inclusive nas suas dúvidas, passa a ser dogma religioso,
fundamentalista e não passível de crítica ou de qualquer interrogação. Ocorre,
porém, que o sinal de pontuação mais adequado ao nosso trabalho é mesmo um
ponto de interrogação, e jamais o ponto final.
E
diante de um mundo ainda turbulento, por conta de tantas guerras de agressão e
destruição, de tantas violências contra populações humanas e, igualmente,
contra os biomas mais ricos das paisagens naturais que conhecemos na Terra, só
podemos afirmar que, países-irmãos como China e Brasil podem e devem dar as
mãos, reforçando as linhas de ação comum no chamado Sul Global, para que o
mundo melhore, no sentido da emancipação de povos ainda oprimidos – em direção
a um mundo mais justo, igualitário, solidário e próspero.
E,
isso, sempre no sentido da preservação das condições mais favoráveis ao habitat
dos humanos e das demais espécies vivas em nosso Planeta, conforme nos legaram
nossos antepassados, o que por si só já configura como responsabilidade nossa
procurar fazer o mesmo para nossos descendentes.
Podemos
dizer que se trata de um desejo ou desafio cheio de boas intenções ou “wishful
thinking”. Mas podemos, também, com ação coletiva, refletida e articulada,
fazer dessa esperança uma realidade compartilhada e em contínua progressão. Na
multipolaridade com que sonhamos, o mundo sim verá e o mundo sim dirá.
Fonte:
Por Francisco Foot Hardman, em A Terra é Redonda
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