terça-feira, 25 de junho de 2024

Cinquentenário das relações diplomáticas Brasil-China

Pela paz global: as pontes entre Brasil e China no caminho de uma nova era

·        Questão norteadora

Vamos direto ao tema que nos interessa nessa jornada: na passagem dos 50 anos do estabelecimento de relações diplomáticas entre Brasil e China, e passados 75 anos da guerra de libertação nacional e revolução social que fundaram a República Popular da China, como poderiam, esses dois grandes países, aprofundar suas ótimas relações no sentido de contribuir, não só com palavras ou boas intenções, mas sim com projetos e ações concretas – várias delas, aliás, que já vêm ocorrendo na prática de nossas trocas, sejam culturais, científicas, econômicas ou políticas – para a construção, a partir do que se convencionou chamar de Sul Global, de uma efetiva Paz Mundial?

Que para ser Paz e ser Mundial, deve se basear, de modo real, num mundo mais igualitário, mais livre e mais solidário, bem diferente, portanto, dos cenários a que estamos habituados, infelizmente, a presenciar no mundo de hoje?

·        Considerações gerais

Nos cinco ensaios que tenho publicado, de 2016 até hoje, sobre o caráter “desigual e combinado” dos espaços-tempos em países antigos, enormes e complexos como os nossos, conceito de certa forma básico e atual na tradição marxista, ressaltei a necessidade de superarmos certos preconceitos e dicotomias simplificadoras que herdamos do pensamento ocidentalista.

Entre as ilusões a serem superadas, localizei as ilusões geográficas (artigo de 2016) e as ilusões cronológicas (artigo de 2022). Isto é, temos que tentar abandonar a ideia de uma continuidade homogênea entre os espaços que compõem nossas sociedades, bem como abandonar a ideia de uma linearidade evolutiva contínua entre diferentes fases ou períodos de nossas histórias.

Essas falsas dicotomias negam o pensamento dialético e povoam nossos livros de ciências humanas. tradicional x moderno; comunidade x sociedade; centro x periferia; rural x urbano; global x local; nacional x regional; internacional x nacional; etc. Para nossa reflexão ficar mais concreta, vou me referir a alguns autores importantes nessa questão. Vocês já devem ter ouvido falar na expressão ou neologismo “Glocal” ou “Glocalização”.

Entre vários autores que adotaram e passaram a trabalhar com esse termo, vamos lembrar do sociólogo inglês Roland Robertson (1938-2022), que foi muito tempo professor na Universidade de Aberdeen, Escócia, e que já numa conferência em 1997, sobre “Globalização e cultura indígena”, estabeleceu que “glocalização significa a simultaneidade – a co-presença – de ambas as tendências, a de universalização e a de particularização”. Seu mérito maior parece ter sido o de “roubar” esse neologismo que aparecia atrelado a estratégias mercadológicas no Japão e redefini-lo, em perspectiva dialética mais ampla e afeita às mudanças socioculturais advindas do avanço da tecnologia digital.

Devo, agora, destacar um autor brasileiro que sempre me agradou muito. Trata-se do geógrafo baiano, negro, homem de esquerda e exilado da ditadura militar, Milton Santos (1926-2001). Ao seu último livro, publicado em 2000, um ano antes de falecer, ele propôs justamente o título Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Plenamente consciente dos problemas que resumimos aqui, ele, que ademais era grande estudioso do urbanismo, propõe uma nova modalidade de globalização que se contraponha por inteiro ao poder do capitalismo financeiro e abstrato e se concentre, ao invés disso, nos lugares, nas comunidades e nas pessoas.

Tais categorias, por sua vez, são redefinidas e adquirem nova centralidade histórica e epistemológica. E temos que compartilhar a ótima notícia da reedição desse livro no Brasil, em 2021, com prefácio do escritor negro baiano e contemporâneo, Itamar Vieira Júnior, autor, entre outros, do romance premiado Torto Arado (2019). Geógrafo e funcionário do INCRA, estudioso de populações quilombolas, Itamar Vieira Júnior é preciso nessa apresentação, ao formular, lucidamente: “Por uma outra globalização trata da globalização como fábula e como perversidade”. E sabemos agora, também, que Torto Arado pode ser lido pelo público chinês, pois foi traduzido ao mandarim por Augusto Souto Pestana e recém-editado aqui!

Finalmente, devo mencionar outro brasileiro, sociólogo e antropólogo bem conhecido, inclusive aqui na China, que é Gilberto Freyre (1900-1987), homem de perfil conservador, que apoiou a ditadura fascista-colonialista de Salazar em Portugal e a ditadura militar no Brasil. Mas, apesar disso tudo, encontramos em sua obra aspectos interessantes sobre nossa cultura e sociedade. Entre eles, o conceito de “rurbanização” ou “rurbano”, que ele começou a usar em 1945, mas consolidou num ensaio publicado em 1982, como uma concepção, para além da dicotomia rural x urbano, “definidora de uma situação intermediária entre a puramente rural e a exclusivamente urbana – pois que a define como posição mista, dinâmica e conjugal entre os valores que aquelas vidas representam”.

Ou, então: “Um processo de desenvolvimento socioeconômico que combina, como formas e conteúdos de uma só vivência regional – a do Nordeste, por exemplo, ou nacional – a do Brasil como um todo – valores e estilos de vidas rurais e valores e estilos de vida urbanos. Daí o neologismo: rurbanos”.

Pode-se perceber, até aqui, que essas revisões de antigos conceitos tentaram sempre relativizar as dicotomias tradicionais e eurocêntricas que dominaram (e em parte ainda dominam) a visão prevalecente nas ciências humanas. E devemos também ao sociólogo nordestino do Recife, Gilberto Freyre, que, diga-se de passagem, jamais viajou à China (ele esteve somente na Índia, país que também muito admirava, especialmente a figura de Gandhi), a sua intuição luminosa, digamos, sobre as afinidades culturais mais profundas entre os povos brasileiro e chinês, a ponto de ele escrever seu famoso ensaio “Por que China tropical?”, em versões iniciais publicadas em Nova York, em 1945 e 1959, dentro de um conjunto mais amplo de trabalhos em que se propunha a repensar os fundamentos civilizacionais de um “novo mundo nos trópicos”, tendo o Brasil como centro e a China como modelo.

Note-se a esse respeito que, apesar de seu conservadorismo de base, o autor valorizava enormemente, dentro de um nacionalismo moderado, experiências históricas e culturais que se afastavam tanto dos EUA quanto das principais potências colonialistas europeias, exceção, é verdade, de sua paixão quase cega por Portugal e pelo que chamava de luso-tropicalismo.

Esclareço, aqui, que quando intitulei minhas crônicas de viagem, feitas e escritas entre 2019 e 2020, de Minha China Tropical, inverti intencionalmente os termos sugeridos por Freyre em seu ensaio citado. Porque, na minha visão imaginária recente, é, ao contrário, a China que se parece mais com certas paisagens e representações culturais do Brasil. Neste caso, o pronome pessoal “minha” é uma marca de leitura mais subjetiva, literária; e, ao mesmo tempo, inspirada, mas diferenciada do grande sociólogo pernambucano.

A essas referências que julgo necessárias, é preciso acrescentar dois pesquisadores chineses da maior importância, um deles que podemos chamar já de “clássico” e outro, nosso contemporâneo. Refiro-me ao cientista social pioneiro Fei Xiaotong (1910-2005) e ao cientista político Qin Yaqing (1953-), atualmente professor da Universidade de Shandong e ex-professor da Universidade de Relações Exteriores da China e, também, ex-diretor do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais da BEIDA.

Do primeiro desses autores, Fei Xiaotong, ressalto a bela reunião de ensaios do final de sua trajetória que a editora Springer, de Berlim, publicou em 2015, intitulada Globalization and cultural self-awareness. Seu espírito geral, a nosso ver, guarda muitos pontos de contato e afinidades eletivas potencialmente produtivas com a perspectiva da obra-testamento do geógrafo baiano Milton Santos, em Por uma outra globalização, já mencionada.

Em ambos os pensadores estamos diante de uma crítica profunda aos rumos da globalização financeira abstrata, em prol de uma nova consciência, “universal” ou “cultural”, que seja crítica e capaz de estabelecer pontes pacíficas entre as pessoas, os lugares e as comunidades.  Que tais perspectivas potencialmente transformadoras tenham sido propostas por um autor chinês e outro brasileiro, por si só, já renovam nossas esperanças.

Quanto ao professor Qin Yaqing, cuja obra ainda está em plena construção, ele tem o mérito de propor uma teoria “relacional” ou construtivista das relações internacionais contemporâneas, ao criticar o paradigma realista linear e dominante nos estudos habituais dessa área, ainda em grande parte dominados por conceitos ocidentais.

Sua nova teoria, presente em diversos trabalhos, como, por exemplo, A relational theory of world politics (2018), de sua autoria, ou Globalizing IR theory: critical engagement (2020), como organizador, propõe uma visão literalmente “desarmada” das relações geopolíticas no mundo atual, tentando estabelecer elos significativos com a política implantada há uma década pela China, a chamada Nova Rota da Seda. Sem dúvida, uma proposta ampla e ambiciosa, em seus desafios, tanto no nível teórico quanto no nível prático.

·        Considerações práticas sobre Brasil e China

Não vou tratar aqui, porque não é do meu campo de estudos, a óbvia e significativa curva de expansão crescente nas trocas comerciais entre Brasil e China. China já é, há um bom tempo, e de forma ascendente, o grande parceiro de exportações e importações brasileiras. O quadro é de muita relevância, seja no contexto da América Latina e da América do Sul, seja no contexto da Europa. Esperamos que siga assim. E acreditamos que há plenas condições favoráveis para que tal tendência se mantenha e se expanda, no atual momento histórico.

Gostaria de enfatizar, aqui, o papel fundamental que as trocas culturais, nelas incluídas a produção artística e literária em geral, de ambos nossos países, podem exercer nesse processo. Não se trata, apenas, como alguns analistas econômicos gostam de denominar, do exercício do chamado “soft power” em nível das trocas China-Brasil. Pois toda troca cultural desinteressada, isto é, para além dos seus valores de mercado, ao contribuir para o conhecimento mútuo e para a amizade entre os povos, será sim um fator de influência pacífica, não hegemônica e, portanto, na contramão dos conflitos ideológicos e das guerras frias e quentes, de que o século XXI tem nos dado os piores cenários…

Mas já que estamos aqui, e não por acaso, no campus da Universidade de Pequim, referência nacional e internacional, é preciso ressaltar, sem nenhum risco de exagero, o poder enorme que a educação pública superior e a cooperação interuniversitária podem trazer e significar para os nossos países, exatamente nesse contexto particular de suas funções inadiáveis e insubstituíveis, na parceria e liderança consensual desse bloco assim chamado Sul Global. Docentes e discentes chineses têm que viajar mais ao Brasil, e conhecer melhor nosso país. Docentes e discentes brasileiros têm que viajar mais à China, e conhecer melhor as várias facetas das paisagens, da sociedade e da cultura chinesa.

Quando viajei a primeira vez à China e a Pequim, em 2013, o sonho da expansão do ensino da língua portuguesa brasileira ainda estava dando seus primeiros passos. Hoje, passada mais de uma década, e mesmo com as condições desfavoráveis da pandemia de Covid-19, esse sonho já é uma realidade bem mais palpável, não só aqui em Pequim, mas também em várias outras cidades imenso país. No Brasil, diante de enormes desafios, e das nuvens ameaçadoras da desinformação, o interesse pela China, por sua língua e cultura, sem dúvida, aumenta a cada dia. Isso tudo implica em tarefas que nos são atribuídas com amplo potencial de sucesso.

 E para concluir esse tópico, vou falar de um setor distante de nossas áreas de estudo: a questão do desenvolvimento agrário. Para além da visita do Presidente Lula à China em 2023, complementada agora, há poucos dias, pela visita do Vice-Presidente Geraldo Alckmin, quero destacar, no contexto da VII Reunião da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Acordo e Cooperação (COSBAN), as visitas, há cerca de duas semanas, do Ministro de Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, e do Ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias que participaram num Fórum de Luta contra a Pobreza e pela Revitalização Rural.

A maior novidade, nesse encontro, para além das autoridades previstas, foi a presença e participação das maiores organizações sociais e sindicais do campo no Brasil, quais sejam: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (CONTRAF) e o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA).

Destaco esse ponto não por acaso. Além de não ter sido anunciado pela nossa grande mídia, a questão agrária, tanto do ponto de vista do combate à extrema pobreza quanto do ponto de vista da sustentabilidade ambiental, é ainda, sem dúvida, uma questão estratégica central na projeção do Sul Global em direção a um planeta mais bem habitável.

Mas, antes de terminar, não posso deixar de mencionar o discurso certeiro e inspirado do Presidente Lula, no último dia 13 de junho, na abertura da Conferência Internacional do Trabalho, da OIT (Organização Internacional do Trabalho), realizada em Genebra, Suíça, quando se deu o lançamento da Coalizão Global para a Justiça Social. Essa importante intervenção desse que é sem dúvida um dos grandes líderes do Sul Global, foi solenemente ignorada pela grande mídia brasileira. E o que falou de importante Lula?

Do crescimento da extrema pobreza no mundo, acompanhada pela precarização e informalidade do trabalho. De outro lado, a extrema riqueza, essa sim, a polarização real: “Nunca antes o mundo teve tantos bilionários. Estamos falando de 3 mil pessoas que detêm 15 trilhões de dólares em patrimônio. Isso representa a soma dos PIBs do Japão, da Alemanha, da Índia e do Reino Unido”. Ele afirmou: “A concentração de renda é tão absurda que alguns indivíduos possuem seus próprios programas espaciais. Não precisamos buscar soluções em Marte. É a Terra que precisa do nosso cuidado”. Para quem se interessar mais, um dos blogs alternativos de jornalismo independente no Brasil, dirigido por Luis Nassif, em gesto solitário, postou esse discurso na íntegra.

·        Considerações finais

Amigas e Amigos: sabemos que em Ciência, como também em Cultura, não existem verdades absolutas nem eternas. Toda pesquisa universitária e acadêmica que possa ser considerada de qualidade, deve admitir o princípio da boa dúvida e das incertezas que acompanham qualquer “descoberta”. Nas chamadas ciências humanas, isso é bastante aceito, embora muitas pessoas e instituições parecem, às vezes, esquecer dessa condição variável de nosso trabalho, e daí aquilo que é ciência compartilhada, inclusive nas suas dúvidas, passa a ser dogma religioso, fundamentalista e não passível de crítica ou de qualquer interrogação. Ocorre, porém, que o sinal de pontuação mais adequado ao nosso trabalho é mesmo um ponto de interrogação, e jamais o ponto final.

E diante de um mundo ainda turbulento, por conta de tantas guerras de agressão e destruição, de tantas violências contra populações humanas e, igualmente, contra os biomas mais ricos das paisagens naturais que conhecemos na Terra, só podemos afirmar que, países-irmãos como China e Brasil podem e devem dar as mãos, reforçando as linhas de ação comum no chamado Sul Global, para que o mundo melhore, no sentido da emancipação de povos ainda oprimidos – em direção a um mundo mais justo, igualitário, solidário e próspero.

E, isso, sempre no sentido da preservação das condições mais favoráveis ao habitat dos humanos e das demais espécies vivas em nosso Planeta, conforme nos legaram nossos antepassados, o que por si só já configura como responsabilidade nossa procurar fazer o mesmo para nossos descendentes.

Podemos dizer que se trata de um desejo ou desafio cheio de boas intenções ou “wishful thinking”. Mas podemos, também, com ação coletiva, refletida e articulada, fazer dessa esperança uma realidade compartilhada e em contínua progressão. Na multipolaridade com que sonhamos, o mundo sim verá e o mundo sim dirá.

 

Fonte: Por Francisco Foot Hardman, em A Terra é Redonda

 

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