sábado, 15 de junho de 2024

PEC das Praias: privatização já é realidade no Brasil e pode piorar se proposta for aprovada no Congresso

Jadson dos Santos pertence à quarta geração de sua família que nasceu e se criou na Praia do Sono, em Paraty-Mirim, no Rio de Janeiro. Mas, desde meados da década de 1980, todos os seus familiares caiçaras passaram a sair e a entrar na comunidade debaixo de um guarda-chuva de medo e intimidações. 

A praia do Sono está localizada numa área próxima ao condomínio Laranjeiras, uma localização de luxo que permite a passagem de turistas e moradores vindos do centro somente mediante autorização. O mesmo ocorre com as praias da Fazenda, do Sobrado, Ponta Negra, Antigos e outras subjacentes; além da própria praia de Laranjeiras, que compartilha o nome com o condomínio.

“Para atravessar essas praias ou para usufruir desses locais, que é do povo, de domínio público, precisamos de uma autorização do condomínio. Isso é muito ruim, até porque o condomínio está dentro do nosso caminho de ir e vir e atinge principalmente a comunidade do Sono e Ponta Negra”, relata Santos.

O relato de Jadson dos Santos ilustra uma realidade que pode se tornar mais rotineira do que já é caso a PEC das Praias seja aprovada pelo Congresso Nacional. Embora a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022 não faça nenhuma menção explícita à privatização das praias brasileiras, ela irá legalizar o bloqueio dos acesso às praias, uma vez que a proposta altera a lei que exige que casas de praia garantam acesso ao mar a cada 100 metros.

Jadson argumenta: "Uma coisa é chegar e ter uma portaria e uma segurança do poder público. Outra coisa é ter um empreendimento que tem a segurança privada. Isso já é uma afronta. É esse processo de intimidação, a sensação de medo de perder as suas coisas, de chegar ali, por exemplo, com as suas compras ou com pessoas doentes e não passar”.

Em 2009, uma ação judicial foi proposta pelo Ministério Público Federal para “assegurar o acesso livre, irrestrito, seguro, permanente e facilmente transitável por qualquer um dos povos às Praias da Fazenda, do Sobrado, Vermelha e Laranjeiras, inclusive pelas vias pavimentadas e internas do Condomínio Laranjeiras, abstendo-se o réu de praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar o acesso da população às referidas praias”. Um acordo entre o MPF e o Condomínio Laranjeiras, porém, foi celebrado apenas em 2016.

No entanto, “apesar de ter tido intuito resolutivo, o problema social não foi solucionado. Além, a população tradicional não recebeu consulta prévia informada. A utilização de kombi por condomínio de elevado padrão econômico para transporte dos caiçaras traduz significativa expressão de violação de direitos fundamentais”, afirmou o procurador Igor Miranda da Silva após o acordo.

Na mesma linha, Santos relata que foram feitas “diversas tentativas de reuniões com os síndicos, os diretores do condomínio, os responsáveis pela segurança. E tudo o que a gente conseguia nas reuniões mais amistosas de negociação e conciliação não valia mais no outro dia”.

Hoje a liderança comunitária afirma que está sendo processado pelo Condomínio Laranjeiras por invasão de propriedade, junto com outros caiçaras, por passarem pelo empreendimento para chegar às suas comunidades. “Eles processam a gente alegando que invadimos uma área privada. Isso é bem grave”, afirma.

•           Praias privadas no Brasil já são realidade

A secretária-executiva da plataforma PainelMar, Carolina Cardoso, comenta que o cenário atual é semelhante ao de privatização nas praias, ainda que isso não esteja previsto na Constituição Federal. Não é difícil encontrar um cidadão que tentou acessar alguma região costeira do país e deu de cara com placas com frases como “não entre: propriedade particular”.

Quando o acesso não é totalmente bloqueado, é dificultado de diversas formas: permissão somente mediante autorização de entes privados, intimidação com seguranças e cachorros, existência de trilhas longas para acessar a praia, acesso somente por barco ou limitação de quantidade de pessoas. 

Nas palavras de Cardoso, muitos lugares “dificultam a entrada” propositalmente. “Por exemplo, em Angra dos Reis, tem um grande resort na frente de uma praia em que eles falam que o cidadão brasileiro não é proibido de acessar a praia. Só que o acesso da área é super dificultado, tem que fazer uma trilha longa, etc. E as pessoas acabam falando que a praia é particular. O acesso é dificultado por todos os lados e as pessoas não se sentem parte daquele espaço e, muitas vezes, desistem”, relata.

Cardoso afirma que o Condomínio Laranjeiras “é um caso muito clássico, principalmente porque é um caso de injustiça social muito grande em que acabaram comprando os terrenos de caiçaras por valores baixíssimos, tiraram essas populações tradicionais do seu território, construíram esse grande empreendimento e hoje dificultam o acesso das pessoas àquela praia”, afirma.

A região de Angra dos Reis também é bastante conhecida pelas propriedades privadas que dificultam o acesso às praias. O apresentador Luciano Huck, por exemplo, já foi multado em R$ 40 mil por limitar acesso à praia da Ilha das Palmeiras, onde tem uma casa.

•           O que diz a legislação?

Atualmente, as praias são áreas públicas sob domínio da União, ou seja, de acesso livre a todos. Também são áreas públicas os terrenos de marinha, que ficam dentro de uma faixa de 33 metros, contados a partir da linha da maré média de 1831 em direção à parte da terra.

Apesar de serem terrenos públicos, entes privados podem adquirir terrenos, desde que obedeçam a determinadas regras a depender do tipo de aquisição. Em todas elas, no entanto, há uma norma que permanece: uma passagem a cada 100 metros para garantir à população o livre acesso à praia. 

Assim, aqueles que dificultam ou bloqueiam o acesso às praias estão sujeitos a responsabilizações legais. “Todos esses particulares que têm imóveis nos terrenos adjacentes às praias são obrigados por lei a permitir o acesso. A gente pode denunciar para o Ministério Público e exigir o nosso direito de acesso à praia”, afirma Carolina Cardoso.

Os cidadãos que encontrarem dificuldades para acessar praias podem denunciar os casos às seguintes autoridades: Ministério Público e a Secretaria Municipal ou Estadual do Meio Ambiente. Caso a situação envolva danos ambientais, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também pode ser acionado.

•           PEC das Praias

O relator da PEC das Praias, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), afirmou, após a repercussão negativa sobre a Proposta de Emenda à Constituição 3/2022, que o projeto não irá privatizar praias brasileiras “O espaço público que é a praia vai continuar sendo de todos os brasileiros", disse o parlamentar em entrevista à GloboNews.

Não há, de fato, nenhuma menção explícita à privatização das praias brasileiras no texto da proposta. No entanto, uma das consequências diretas das mudanças da PEC é justamente a possibilidade de privatizar o acesso às praias. Isso porque abre a possibilidade para que os terrenos de marinha deixem de ser públicos. 

Assim, a PEC propõe que não haja nenhuma garantia de acesso às praias, o que pode representar a privatização, principalmente se levado em consideração o cenário atual de privação.

Licio Monteiro, professor de Geografia Política e Geopolítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS/Fiocruz/FCT), afirma que a PEC “reforça os mecanismos de exclusão e de privatização dessas áreas”. 

Hoje, “a legislação obriga a garantia do acesso ao ambiente costeiro à praia. Quando deixa de ser terreno de marinha e passa a ser uma propriedade como outra qualquer, não há obrigação nenhuma como a servidão de acesso ao mar”, afirma.

“A questão principal é o acesso. Porque a PEC retira a possibilidade de incidência do poder público na garantia das servidões de acesso a praias nos terrenos que estão adjacentes à costa. Fala-se que não vai se privatizar a faixa de areia, mas a questão é conseguir chegar lá”, diz.

“A lei não está mudando esse limite de 33 metros a partir da linha da maré média. Na verdade, está mudando o que se pode fazer dentro desses 33 metros, onde se pode construir. Hoje, mesmo na área onde se pode construir não se pode fazer o que quiser. Não pode bloquear o acesso”, conclui o professor.

 

•           'PEC das Praias' ameaça manguezais e restingas, dizem ambientalistas

A especulação imobiliária que pode ser desencadeada pela chamada "PEC das Praias" preocupa ambientalistas. Na visão de pesquisadores, a proposta de emenda à constituição 03/2022 traz risco a ecossistemas sensíveis do litoral brasileiro.

Para Bárbara Pinheiro, bióloga e diretora-executiva do Instituto Yandê, ONG de proteção ambiental com sede em Alagoas, as mudanças podem incentivar a grilagem (apossamento ilegal) de terrenos de marinha. O texto prevê a transferência desses espaços em áreas urbanas da União para estados e municípios ou proprietários privados.

Com o novo status, ela avalia, o interesse pelos terrenos à beira-mar pode disparar, levando a uma maior ocupação de áreas de restinga e manguezais. A degradação desses ecossistemas é preocupante, destaca, porque eles são considerados estratégicos na mitigação e na adaptação às mudanças climáticas.

Zonas de mangue são "sumidouros" de carbono e protegem a área costeira da erosão. A vegetação da restinga também ajuda na resiliência do litoral contra ressacas e chuvas extremas.

"Essas áreas de restinga e manguezais são nossos protetores contra as mudanças climáticas. Então, principalmente em questão de eventos extremos e elevação do nível do mar, os terrenos de marinha são fundamentais para que a gente consiga se adaptar melhor, para não ter grandes impactos. A natureza está lá para nos defender", diz.

Keltony Aquino, pesquisador da UFF (Universidade Federal Fluminense) apoiado pelo Instituto Serrapilheira, também teme o incentivo da expansão urbana desordenada. Além do risco de supressão inadequada da vegetação, ele aponta para o provável aumento da poluição da água.

"O Brasil tem sérios problemas em termos de monitoramento ambiental. Transferir esses terrenos para estados, municípios ou para a própria iniciativa privada deixa as áreas costeiras vulneráveis, uma vez que pode não ter regulamentação ou fiscalização adequada. São ecossistemas sensíveis, que já sofrem com erosão e um processo acentuado de urbanização", afirma.

Para Clemente Coelho Júnior, professor e pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas da UPE (Universidade de Pernambuco), manter as áreas de marinhas já ocupadas sob proteção de leis federais é importante para assegurar as APPs (áreas de proteção permanente), as vegetações de restinga e as dunas.

Assim como Aquino, ele acredita que haverá um descontrole caso a responsabilidade seja repassada para estados, municípios e iniciativa privada, com risco de impactos ambientais nos ecossistemas costeiros marinhos.

"O meio ambiente é um direito difuso, transversal. Então, quando se retira mais uma camada protetiva, o país está deixando vulnerável ecossistemas extremamente sensíveis", avalia.

<><> Comparação com Cancún

Os pesquisadores destacam também que a PEC pode prejudicar a permanência de comunidades caiçaras que sobrevivem da pesca artesanal.

Na avaliação de Bárbara Pinheiro, apesar de o texto da PEC não tratar da privatização de praias -apenas dos terrenos à beira-mar--, o efeito pode ser parecido. Com a possibilidade de transferência das propriedades das áreas de marinha, a bióloga acredita que os beneficiados serão os mais ricos.

Integrante do movimento Liga das Mulheres pelo Oceano, ela cita, como exemplo, o projeto apelidado de "Cancún brasileiro", orçado em R$ 7,5 bilhões, que prevê, inicialmente, 28 empreendimentos no litoral de Pernambuco e Alagoas. A iniciativa da incorporadora imobiliária Due tem parceria com o jogador Neymar. O anúncio da participação do atleta no negócio gerou reações nas redes sociais.

"A gente está lutando contra esse pacote inteiro de destruição muito bem articulado [no Legislativo]. Eles [os políticos] já quiseram passar a boiada nas florestas, e agora estão querendo passar na parte marinha", diz a bióloga, em referência à fala do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, sobre a estratégia de afrouxar leis ambientais no governo Bolsonaro.

 Cofundador do Instituto Bioma Brasil, voltado à educação e conservação do litoral, Coelho Júnior avalia como uma desvalorização cultural do país a comparação com Cancún. Ele vê a associação com o balneário mexicano como uma estratégia de propagar o turismo excessivo e a exploração imobiliária, sem planejamento correto, o que afetaria negativamente a biodiversidade local e as comunidades tradicionais, na sua visão.

"Cancún é sobrecarregada de um turismo em massa que realmente causou grandes danos à região. O nosso litoral é belo pelo que ele é, pela história evolutiva dele, há milhões de anos. Nós não temos águas tão transparentes como as de Cancún, a não ser numa determinada época do ano. Nossa beleza cênica, a beleza dos nossos ecossistemas, reside na biodiversidade", descreve.

 O bispo Dom Limacêdo da Silva relata que, quando auxiliou a arquidiocese de Olinda e Recife, em Pernambuco, participou do Conselho Pastoral dos Pescadores do Nordeste e acompanhou de perto o conflito gerado pela construção do muro de contenção em um terreno privado que dificulta o acesso à praia no Pontal de Maracaípe, na região de Porto de Galinhas.

Ele destaca que presenciou o proprietário da área expulsar os pescadores, que tiram o sustento dessa atividade. "O país não pode legislar contra a dignidade humana. O rico já tem tanto e ainda quer tirar o pouco que o pobre tem", opina.

 

Fonte: Brasil de Fato/FolhaPress

 

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