PEC das
Praias: privatização já é realidade no Brasil e pode piorar se proposta for
aprovada no Congresso
Jadson
dos Santos pertence à quarta geração de sua família que nasceu e se criou na
Praia do Sono, em Paraty-Mirim, no Rio de Janeiro. Mas, desde meados da década
de 1980, todos os seus familiares caiçaras passaram a sair e a entrar na
comunidade debaixo de um guarda-chuva de medo e intimidações.
A
praia do Sono está localizada numa área próxima ao condomínio Laranjeiras, uma
localização de luxo que permite a passagem de turistas e moradores vindos do
centro somente mediante autorização. O mesmo ocorre com as praias da Fazenda,
do Sobrado, Ponta Negra, Antigos e outras subjacentes; além da própria praia de
Laranjeiras, que compartilha o nome com o condomínio.
“Para
atravessar essas praias ou para usufruir desses locais, que é do povo, de
domínio público, precisamos de uma autorização do condomínio. Isso é muito
ruim, até porque o condomínio está dentro do nosso caminho de ir e vir e atinge
principalmente a comunidade do Sono e Ponta Negra”, relata Santos.
O
relato de Jadson dos Santos ilustra uma realidade que pode se tornar mais
rotineira do que já é caso a PEC das Praias seja aprovada pelo Congresso
Nacional. Embora a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022 não faça
nenhuma menção explícita à privatização das praias brasileiras, ela irá
legalizar o bloqueio dos acesso às praias, uma vez que a proposta altera a lei
que exige que casas de praia garantam acesso ao mar a cada 100 metros.
Jadson
argumenta: "Uma coisa é chegar e ter uma portaria e uma segurança do poder
público. Outra coisa é ter um empreendimento que tem a segurança privada. Isso
já é uma afronta. É esse processo de intimidação, a sensação de medo de perder
as suas coisas, de chegar ali, por exemplo, com as suas compras ou com pessoas
doentes e não passar”.
Em
2009, uma ação judicial foi proposta pelo Ministério Público Federal para
“assegurar o acesso livre, irrestrito, seguro, permanente e facilmente
transitável por qualquer um dos povos às Praias da Fazenda, do Sobrado,
Vermelha e Laranjeiras, inclusive pelas vias pavimentadas e internas do
Condomínio Laranjeiras, abstendo-se o réu de praticar qualquer ato tendente a
impedir ou dificultar o acesso da população às referidas praias”. Um acordo
entre o MPF e o Condomínio Laranjeiras, porém, foi celebrado apenas em 2016.
No
entanto, “apesar de ter tido intuito resolutivo, o problema social não foi
solucionado. Além, a população tradicional não recebeu consulta prévia
informada. A utilização de kombi por condomínio de elevado padrão econômico
para transporte dos caiçaras traduz significativa expressão de violação de
direitos fundamentais”, afirmou o procurador Igor Miranda da Silva após o
acordo.
Na
mesma linha, Santos relata que foram feitas “diversas tentativas de reuniões
com os síndicos, os diretores do condomínio, os responsáveis pela segurança. E
tudo o que a gente conseguia nas reuniões mais amistosas de negociação e
conciliação não valia mais no outro dia”.
Hoje
a liderança comunitária afirma que está sendo processado pelo Condomínio
Laranjeiras por invasão de propriedade, junto com outros caiçaras, por passarem
pelo empreendimento para chegar às suas comunidades. “Eles processam a gente
alegando que invadimos uma área privada. Isso é bem grave”, afirma.
• Praias privadas no Brasil já são
realidade
A
secretária-executiva da plataforma PainelMar, Carolina Cardoso, comenta que o
cenário atual é semelhante ao de privatização nas praias, ainda que isso não
esteja previsto na Constituição Federal. Não é difícil encontrar um cidadão que
tentou acessar alguma região costeira do país e deu de cara com placas com
frases como “não entre: propriedade particular”.
Quando
o acesso não é totalmente bloqueado, é dificultado de diversas formas:
permissão somente mediante autorização de entes privados, intimidação com
seguranças e cachorros, existência de trilhas longas para acessar a praia,
acesso somente por barco ou limitação de quantidade de pessoas.
Nas
palavras de Cardoso, muitos lugares “dificultam a entrada” propositalmente.
“Por exemplo, em Angra dos Reis, tem um grande resort na frente de uma praia em
que eles falam que o cidadão brasileiro não é proibido de acessar a praia. Só
que o acesso da área é super dificultado, tem que fazer uma trilha longa, etc.
E as pessoas acabam falando que a praia é particular. O acesso é dificultado
por todos os lados e as pessoas não se sentem parte daquele espaço e, muitas
vezes, desistem”, relata.
Cardoso
afirma que o Condomínio Laranjeiras “é um caso muito clássico, principalmente
porque é um caso de injustiça social muito grande em que acabaram comprando os
terrenos de caiçaras por valores baixíssimos, tiraram essas populações
tradicionais do seu território, construíram esse grande empreendimento e hoje
dificultam o acesso das pessoas àquela praia”, afirma.
A
região de Angra dos Reis também é bastante conhecida pelas propriedades
privadas que dificultam o acesso às praias. O apresentador Luciano Huck, por
exemplo, já foi multado em R$ 40 mil por limitar acesso à praia da Ilha das
Palmeiras, onde tem uma casa.
• O que diz a legislação?
Atualmente,
as praias são áreas públicas sob domínio da União, ou seja, de acesso livre a
todos. Também são áreas públicas os terrenos de marinha, que ficam dentro de
uma faixa de 33 metros, contados a partir da linha da maré média de 1831 em
direção à parte da terra.
Apesar
de serem terrenos públicos, entes privados podem adquirir terrenos, desde que
obedeçam a determinadas regras a depender do tipo de aquisição. Em todas elas,
no entanto, há uma norma que permanece: uma passagem a cada 100 metros para
garantir à população o livre acesso à praia.
Assim,
aqueles que dificultam ou bloqueiam o acesso às praias estão sujeitos a
responsabilizações legais. “Todos esses particulares que têm imóveis nos
terrenos adjacentes às praias são obrigados por lei a permitir o acesso. A
gente pode denunciar para o Ministério Público e exigir o nosso direito de
acesso à praia”, afirma Carolina Cardoso.
Os
cidadãos que encontrarem dificuldades para acessar praias podem denunciar os
casos às seguintes autoridades: Ministério Público e a Secretaria Municipal ou
Estadual do Meio Ambiente. Caso a situação envolva danos ambientais, o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) também pode ser acionado.
• PEC das Praias
O
relator da PEC das Praias, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), afirmou, após a
repercussão negativa sobre a Proposta de Emenda à Constituição 3/2022, que o
projeto não irá privatizar praias brasileiras “O espaço público que é a praia
vai continuar sendo de todos os brasileiros", disse o parlamentar em
entrevista à GloboNews.
Não
há, de fato, nenhuma menção explícita à privatização das praias brasileiras no
texto da proposta. No entanto, uma das consequências diretas das mudanças da
PEC é justamente a possibilidade de privatizar o acesso às praias. Isso porque
abre a possibilidade para que os terrenos de marinha deixem de ser
públicos.
Assim,
a PEC propõe que não haja nenhuma garantia de acesso às praias, o que pode
representar a privatização, principalmente se levado em consideração o cenário
atual de privação.
Licio
Monteiro, professor de Geografia Política e Geopolítica na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do Observatório de Territórios
Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS/Fiocruz/FCT), afirma que a PEC
“reforça os mecanismos de exclusão e de privatização dessas áreas”.
Hoje,
“a legislação obriga a garantia do acesso ao ambiente costeiro à praia. Quando
deixa de ser terreno de marinha e passa a ser uma propriedade como outra
qualquer, não há obrigação nenhuma como a servidão de acesso ao mar”, afirma.
“A
questão principal é o acesso. Porque a PEC retira a possibilidade de incidência
do poder público na garantia das servidões de acesso a praias nos terrenos que
estão adjacentes à costa. Fala-se que não vai se privatizar a faixa de areia,
mas a questão é conseguir chegar lá”, diz.
“A
lei não está mudando esse limite de 33 metros a partir da linha da maré média.
Na verdade, está mudando o que se pode fazer dentro desses 33 metros, onde se
pode construir. Hoje, mesmo na área onde se pode construir não se pode fazer o
que quiser. Não pode bloquear o acesso”, conclui o professor.
• 'PEC das Praias' ameaça manguezais e
restingas, dizem ambientalistas
A
especulação imobiliária que pode ser desencadeada pela chamada "PEC das
Praias" preocupa ambientalistas. Na visão de pesquisadores, a proposta de
emenda à constituição 03/2022 traz risco a ecossistemas sensíveis do litoral
brasileiro.
Para
Bárbara Pinheiro, bióloga e diretora-executiva do Instituto Yandê, ONG de
proteção ambiental com sede em Alagoas, as mudanças podem incentivar a grilagem
(apossamento ilegal) de terrenos de marinha. O texto prevê a transferência
desses espaços em áreas urbanas da União para estados e municípios ou
proprietários privados.
Com
o novo status, ela avalia, o interesse pelos terrenos à beira-mar pode
disparar, levando a uma maior ocupação de áreas de restinga e manguezais. A
degradação desses ecossistemas é preocupante, destaca, porque eles são
considerados estratégicos na mitigação e na adaptação às mudanças climáticas.
Zonas
de mangue são "sumidouros" de carbono e protegem a área costeira da
erosão. A vegetação da restinga também ajuda na resiliência do litoral contra
ressacas e chuvas extremas.
"Essas
áreas de restinga e manguezais são nossos protetores contra as mudanças
climáticas. Então, principalmente em questão de eventos extremos e elevação do
nível do mar, os terrenos de marinha são fundamentais para que a gente consiga
se adaptar melhor, para não ter grandes impactos. A natureza está lá para nos
defender", diz.
Keltony
Aquino, pesquisador da UFF (Universidade Federal Fluminense) apoiado pelo
Instituto Serrapilheira, também teme o incentivo da expansão urbana
desordenada. Além do risco de supressão inadequada da vegetação, ele aponta
para o provável aumento da poluição da água.
"O
Brasil tem sérios problemas em termos de monitoramento ambiental. Transferir
esses terrenos para estados, municípios ou para a própria iniciativa privada
deixa as áreas costeiras vulneráveis, uma vez que pode não ter regulamentação
ou fiscalização adequada. São ecossistemas sensíveis, que já sofrem com erosão
e um processo acentuado de urbanização", afirma.
Para
Clemente Coelho Júnior, professor e pesquisador do Instituto de Ciências
Biológicas da UPE (Universidade de Pernambuco), manter as áreas de marinhas já
ocupadas sob proteção de leis federais é importante para assegurar as APPs
(áreas de proteção permanente), as vegetações de restinga e as dunas.
Assim
como Aquino, ele acredita que haverá um descontrole caso a responsabilidade
seja repassada para estados, municípios e iniciativa privada, com risco de
impactos ambientais nos ecossistemas costeiros marinhos.
"O
meio ambiente é um direito difuso, transversal. Então, quando se retira mais
uma camada protetiva, o país está deixando vulnerável ecossistemas extremamente
sensíveis", avalia.
<><>
Comparação com Cancún
Os
pesquisadores destacam também que a PEC pode prejudicar a permanência de
comunidades caiçaras que sobrevivem da pesca artesanal.
Na
avaliação de Bárbara Pinheiro, apesar de o texto da PEC não tratar da
privatização de praias -apenas dos terrenos à beira-mar--, o efeito pode ser
parecido. Com a possibilidade de transferência das propriedades das áreas de
marinha, a bióloga acredita que os beneficiados serão os mais ricos.
Integrante
do movimento Liga das Mulheres pelo Oceano, ela cita, como exemplo, o projeto
apelidado de "Cancún brasileiro", orçado em R$ 7,5 bilhões, que
prevê, inicialmente, 28 empreendimentos no litoral de Pernambuco e Alagoas. A
iniciativa da incorporadora imobiliária Due tem parceria com o jogador Neymar.
O anúncio da participação do atleta no negócio gerou reações nas redes sociais.
"A
gente está lutando contra esse pacote inteiro de destruição muito bem
articulado [no Legislativo]. Eles [os políticos] já quiseram passar a boiada
nas florestas, e agora estão querendo passar na parte marinha", diz a
bióloga, em referência à fala do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles,
sobre a estratégia de afrouxar leis ambientais no governo Bolsonaro.
Cofundador do Instituto Bioma Brasil, voltado
à educação e conservação do litoral, Coelho Júnior avalia como uma
desvalorização cultural do país a comparação com Cancún. Ele vê a associação
com o balneário mexicano como uma estratégia de propagar o turismo excessivo e
a exploração imobiliária, sem planejamento correto, o que afetaria
negativamente a biodiversidade local e as comunidades tradicionais, na sua
visão.
"Cancún
é sobrecarregada de um turismo em massa que realmente causou grandes danos à
região. O nosso litoral é belo pelo que ele é, pela história evolutiva dele, há
milhões de anos. Nós não temos águas tão transparentes como as de Cancún, a não
ser numa determinada época do ano. Nossa beleza cênica, a beleza dos nossos
ecossistemas, reside na biodiversidade", descreve.
O bispo Dom Limacêdo da Silva relata que,
quando auxiliou a arquidiocese de Olinda e Recife, em Pernambuco, participou do
Conselho Pastoral dos Pescadores do Nordeste e acompanhou de perto o conflito
gerado pela construção do muro de contenção em um terreno privado que dificulta
o acesso à praia no Pontal de Maracaípe, na região de Porto de Galinhas.
Ele
destaca que presenciou o proprietário da área expulsar os pescadores, que tiram
o sustento dessa atividade. "O país não pode legislar contra a dignidade
humana. O rico já tem tanto e ainda quer tirar o pouco que o pobre tem",
opina.
Fonte:
Brasil de Fato/FolhaPress
Nenhum comentário:
Postar um comentário