quinta-feira, 20 de junho de 2024

O primeiro golpe do Brasil e o século perdido

O Brasil foi um dos últimos grandes países a conquistar a independência e cortar o nó górdio que prendia o destino das nações do continente americano às metrópoles europeias. Foi, na prática, o último país a abolir a escravidão. E nunca deixou de ser um dos países com as maiores desigualdades sociais, seja de classe, gênero, raça/cor ou distribuição espacial.

Além de tudo, o Brasil teve o ineditismo de instalar a única monarquia das Américas. Os invasores portugueses que ocuparam as terras dos povos originários, a partir de 1500 – provocando um grande genocídio indígena pela força das “armas, germes e aço” – foram embora, mas deixaram um preposto no comando do país. Um jovem impulsivo e de poucos estudos, nascido no palácio de Queluz em 1798 em Portugal, tornou-se o 1º Imperador do Brasil.

A Independência brasileira já foi objeto de muitos estudos e de diversas interpretações. Em 2022, o Brasil relembrou os 200 anos da “Independência ou Morte”. Em 2024, se relembra os 200 anos da 1ª Constituição do Brasil, outorgava por Dom Pedro I. Mas pouco foi falado sobre os projetos e retrocessos ocorridos durante a Constituinte de 1823

Esta lacuna foi preenchida pelo excelente livro “O Primeiro Golpe do Brasil: como D. Pedro I fechou a Constituinte, prolongou o escravismo e agravou a desigualdade entre nós”, do insigne jornalista Ricardo Lessa.

O Primeiro golpe do Brasil é um livro fundamental para a compreensão da história do país, para se entender a origem de vários outros golpes que, ciclicamente, ocorreram nos últimos 200 anos e também para avaliar os entraves e as perspectivas de construção de uma sociedade justa e próspera no século XXI.

De forma resumida, o fechamento da Primeira Constituinte no Brasil, que resultou na Constituição de 1824, foi um processo marcado por tensões e autoritarismo por parte do imperador Dom Pedro I. A seguir, um resumo dos eventos principais que levaram ao fechamento da Assembleia Constituinte de 1823:

<><> Convocação da Assembleia Constituinte:

  • Após a independência do Brasil em 1822, Dom Pedro I convocou uma Assembleia Constituinte em 1823 para elaborar a primeira Constituição do país.
  • A Assembleia Constituinte iniciou seus trabalhos em maio de 1823.

<><> Conflitos e Tensões:

  • Desde o início, houve divergências significativas entre os deputados e o imperador, especialmente em relação à distribuição de poder e aos direitos do monarca.
  • A Constituinte tinha uma maioria de deputados liberais que queriam limitar os poderes do imperador e garantir maior participação política.

<><> Projeto de Constituição:

  • Em setembro de 1823, a Assembleia apresentou um projeto de Constituição que restringia os poderes do imperador e aumentava os poderes do Legislativo.
  • Dom Pedro I não ficou satisfeito com esse projeto, vendo-o como uma ameaça à sua autoridade.

<><> Fechamento da Assembleia Constituinte:

  • Em 12 de novembro de 1823, Dom Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte, alegando que ela estava minando a ordem pública e a unidade do Império.
  • O ato de fechamento foi executado por tropas leais ao imperador, que cercaram o edifício onde a Assembleia se reunia e prenderam vários deputados.

<><> Constituição de 1824:

  • Após o fechamento da Assembleia Constituinte, Dom Pedro I nomeou um Conselho de Estado, composto por aliados e conselheiros de sua confiança, para redigir uma nova Constituição.
  • A Constituição de 1824 foi outorgada em 25 de março de 1824, estabelecendo um regime monárquico-centralizado com amplos poderes ao imperador, incluindo o Poder Moderador, que permitia ao monarca intervir nos demais poderes do Estado.

Todos os fatos e os bastidores do Golpe foram brilhantemente esmiuçados pelo consagrado jornalista Ricardo Lessa. Por exemplo, o autor mostra como Dom Pedro mandou prender e se afastou radicalmente do principal articulador da Independência do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva, que foi seu mentor e maior conselheiro nos primeiros momentos da formação do país.

O “Patriarca da Independência”, a despeito de suas limitações, era um defensor de reformas progressistas para a época. Ele propôs a abolição gradual da escravidão, a integração dos indígenas na sociedade e a promoção da educação pública. Embora muitas de suas propostas não tenham sido imediatamente adotadas, elas plantaram sementes para futuros movimentos abolicionistas e reformistas no Brasil.

O primeiro golpe também abortou a possibilidade da busca da sustentabilidade ecológica, pois, o cientista José Bonifácio, que também era conhecido como o ecologista do Império, de forma presciente alertou para a crescente degradação ambiental no país afirmando, em 1828: “nossas preciosas matas desaparecem, vítimas do fogo e do machado, da ignorância e do egoísmo. Sem vegetação, nosso belo Brasil ficará reduzido aos desertos áridos da Líbia. Virá então o dia em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos crimes”.

O livro “O Primeiro Golpe do Brasil” lança diversas luzes para quem deseja compreender as origens das dificuldades de se construir um desejado país soberano, justo e próspero.

O seguinte trecho é bem esclarecedor dos primórdios das nossas mazelas:

O primeiro príncipe e rei brasileiro, assim como o segundo, patrocinaram um longo apagão na economia brasileira. Mereceriam, além dos galardões de nobreza, os títulos de artífices do atraso. O golpe contra a Constituinte de 1823 e a promulgação da Outorgada, de 1824, amarraram o país numa teia de leis, burocracia e promiscuidade entre os poderes e a elite econômica, ainda hoje difícil de deslindar” (Lessa, 2024, p. 130).

De fato, tanto o desempenho social, quanto o desempenho econômico do período monárquico brasileiro foram ruins. As informações do Projeto Maddison sobre a evolução da renda per capita no século XIX são muito úteis para avaliar o Brasil e fazer uma comparação internacional. O gráfico abaixo, mostra a evolução da renda per capita, em poder de paridade de compra (ppp) para o Mundo, Brasil e EUA entre 1820 e 1900. Foram interpolados os dados para os intervalos em que não havia informação.

Em 1820, o Brasil tinha uma renda per capita de US$ 867, a média mundial era de US$ 1.128 (1,3 vezes maior do que a renda per capita brasileira) e os EUA tinham uma renda per capita de US$ 2.674 (3,1 vezes maior do que a brasileira). Em 1900, a renda per capita brasileira tinha passado para US$ 874, enquanto a renda per capita global passou para US$ 2.265 (2,6 vezes maior) e a renda per capita dos EUA passou para US$ 8.038 (9,2 vezes maior do que a renda per capita brasileira).

Portanto, o Brasil teve um século de estagnação econômica e de empobrecimento relativo. O Brasil Imperial gerou um século perdido em termos econômicos, enquanto o mundo avançava e os EUA se tornavam a maior potência econômica do mundo. A economia brasileira cresceu no século XIX porque a população cresceu, mas em termos de renda per capita não houve qualquer ganho e o Brasil se distanciou da média mundial e ficou muito atrás das economias mais dinâmicas.

Sem dúvida, o primeiro golpe do Brasil contribuiu em muito para inviabilizar o progresso do maior país da América Latina.

O livro do celebrado jornalista, Ricardo Lessa, reúne um extenso trabalho de pesquisa em arquivos de vários países, lançando luz sobre um momento decisivo da polarização da história brasileira, quando os interesses particulares das camadas privilegiadas do país sobrepujaram as potenciais e profícuas oportunidades universais de progresso do conjunto da população nacional.

A Constituição outorgada de 1824 é um registro do método e do léxico do atraso que, infelizmente, tem marcado boa parte dos acontecimentos dos últimos 200 anos da história brasileira. Conhecer os primórdios da formação social, econômica e política do país é uma necessidade imperiosa para que possamos evitar que também as próximas décadas dos anos 2000 se tornem, em termos ecossociais, mais um século perdido.

 

Fonte: Por José Eustáquio Diniz Alves, EcoDebate

 

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