segunda-feira, 3 de junho de 2024

‘Nós precisamos entender que isso não foi obra do acaso’, alerta professor da FURG sobre enchente

Viralizou nas redes sociais nos últimos dias, após a rápida escalada dos impactos das chuvas e enchentes no Rio Grande do Sul, uma manifestação feita por Marcelo Dutra da Silva, professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), na Câmara Municipal de Pelotas (RS), em junho de 2022, em que ele apresenta dados de suas pesquisas sobre mudanças climáticas e alerta para a possibilidade das cidades enfrentarem inundações em áreas que nunca haviam sido atingidas anteriormente. Em conversa com o Sul21, o professor alerta que os fenômenos extremos como os que o estado vem enfrentando desde o ano passado já eram esperados e que exigem que as cidades se adaptem. Em alguns casos, isso significa que elas não podem mais voltar a ser o que eram antes.

“Não dá para ficar insistindo mais em construir e reinstalar infraestruturas públicas e áreas residenciais urbanas em ambientes que a gente sabe que são de risco, porque ou estão muito próximos de um leito de um corpo hídrico, que é vale de inundação, ou porque estão encaixados num vale e é área de captação onde toda uma água, um grande volume de chuva, vai percorrer e vai inundar. Então, a gente precisa fazer muito diferente daqui pra frente”, diz.

Para o professor, o rastro de destruição deixado pelas chuvas no RS deve servir de alerta para que a legislação ambiental deixe de ser flexibilizada e exigirá, em alguns casos, torná-la mais restrita. Além disso, avalia que qualquer novo projeto de infraestrutura deve levar em conta a realidade das inundações. “A partir de agora, um banco público jamais deveria fornecer crédito se a ideia for empreender numa área de risco. Ou fornecer crédito se a ideia for adquirir um imóvel numa área de risco”, diz.

<<<< A seguir, confira a íntegra da entrevista com o professor Marcelo Dutra da Silva, da FURG.

•        Quais são os principais desafios que o Estado vai ter do ponto de vista ambiental, mas também na reconstrução pós enchentes?

Marcelo Dutra da Silva: Eu creio que nós vamos ter primeiro um desafio tremendo de sensibilização das pessoas que as mudanças climáticas são uma realidade que nos toca já há algum tempo, que a gente vem vivendo os sucessivos eventos extremos e que este nos pegou com uma maior magnitude. Pegou essa região, e poderia pegar qualquer outra região, então isso já vem sendo alertado há algum tempo e a gente não deu muita atenção, não deu muita bola. Aí quando eu digo a gente não deu atenção, a sociedade de forma geral não vem dando muita atenção e a gente continua construindo as nossas cidades em lugares que são mais vulneráveis e suscetíveis a receber grandes impactos como esse. Então, daqui para frente, na ideia de uma reconstrução, a gente tem que ter uma estratégia um pouco mais inteligente. Não dá para ficar insistindo mais em construir e reinstalar infraestruturas públicas e áreas residenciais urbanas em ambientes que a gente sabe que são de risco, porque ou estão muito próximos de um leito de um corpo hídrico, que é vale de inundação, ou porque estão encaixados num vale e é área de captação onde toda uma água, um grande volume de chuva, vai percorrer e vai inundar. Então, a gente precisa fazer muito diferente daqui pra frente.

Essa nossa estratégia agora de reconstrução precisa necessariamente estar vinculada a uma ideia de prevenção e adaptação às mudanças climáticas. Este é o ponto. Então, todos esses municípios, sejam os atingidos ou os que estão vivendo tensão, como agora o meu, Pelotas, Rio Grande é onde eu trabalho, nós estamos apreensivos porque a Lagoa vai subir. E ela está aos poucos subindo, está aos poucos invadindo, estou falando isso porque a gente presenciou em 1941 um evento como este e os de agora estão mais intensos. Este, em particular, está muito mais intenso, e a gente não está nada preparado para isso. Então, eu espero que mesmo a gente lembrando que essa é uma tragédia terrível, mas que isso a gente leve como um aprendizado para tornarmos as nossas cidades um pouco melhores, do ponto de vista da segurança climática. Nós precisamos entender que isso não foi obra do acaso, isso é algo que faz parte de um contexto de sucessivos eventos que vão continuar se repetindo. E se repetindo no El Niño no caso da chuva, se repetindo em estiagem em momentos de La Niña. Não tem como a gente desconsiderar isso nas próximas autorizações, licenças e construção de cidades, que algumas vão ter que, se não saírem totalmente, vão ter que migrar boa parte para uma cota mais segura, se afastando do corpo hídrico, devolvendo para a natureza o leito de inundação. Porque é justamente esse espaço que nos protege quando o corpo hídrico enche ou, quando tem grandes descargas de água, para onde a água primeiro vai. A área de preferência é a cota mais baixa. Então, a gente tem que levar isso em consideração e não permitir mais que as cidades se tornem tão vulneráveis.

•        Do ponto de vista da legislação ambiental, temos diversas questões relacionada a flexibilizações de leis nos últimos anos. Pode-se imaginar que agora a gente vai ter que ter um fazer um movimento contrário. Quais seriam as urgências?

Marcelo Dutra da Silva: Muito bem lembrado. Eu dizia isso numa outra matéria que eu acredito que, pelo menos agora nos próximos meses, não há qualquer ambiente de votação na direção, no sentido, na tentativa de flexibilizar alguma lei ambiental para permitir o avanço urbano ou para permitir áreas de ocupação rural dentro de regras ambientais mais frouxas. Isso não nos ajuda em nada. Nota que esse evento de agora se mostrou destrutivo, seja para o urbano, seja para o rural. Nós perdemos safras, nós perdemos equipamentos, nós perdemos infraestruturas rurais. Então, nós perdemos tantas coisas que não dá para desconsiderar a necessidade da gente revisar a legislação e rever algumas flexibilizações feitas. Inclusive, acho que a gente precisa em alguns casos torná-la mais rígida em alguns aspectos. Por exemplo, acredito muito que cada município deve revisar o seu Plano Diretor, ter um plano ambiental e reunir outros instrumentos de planejamento. Mas, mais do que isso, a partir de agora, um banco público jamais deveria fornecer crédito se a ideia for empreender numa área de risco. Ou fornecer crédito se a ideia for adquirir um imóvel numa área de risco. Eu acho que deveria começar por aí, numa estratégia de boas práticas, em que a gente leva em consideração a sustentabilidade, inclusive ODSs (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável). Quer dizer a segurança do capital nos eixos ambiental, social e da governança, nós não poderíamos mais ou não deveríamos mais autorizar o financiamento público para algo que depois pode vir a ser destruído, justamente porque não se considerou o princípio básico da natureza.

•        Ficou bem famoso nas redes sociais o alerta que o senhor fez em 2022. Certamente não foi o primeiro e certamente o senhor não foi o único. Do ponto de vista da cidades de Rio Grande e de Pelotas, que são cidades sujeitas a esse tipo de efeitos de eventos climáticos, assim como Porto Alegre, como esses alertas foram recebidos? Eles foram levados a sério?

Marcelo Dutra da Silva: Não, não. Eu tenho falado sobre isso há bem mais tempo, mas eu tenho o registro dessas minhas falas de 2021, 2022 e 2023. Eu participava muito de um programa de rádio e em alguns momentos manifestei várias vezes, porque eu estava levantando os dados aqui de uma série histórica. Temos na UFPEL [Universidade Federal de Pelotas] uma das coleções mais antigas de dados meteorológicos que são coletados diariamente há muito tempo, então eu fiz um recorte de 50 anos e percebia aqui no nosso clima local, e serve para a região como um todo e certamente se reproduz em qualquer lugar do mundo, porque o que eu percebi é que está presente nos relatórios do IPCC ou está presente no debate dos painéis intergovernamentais do planeta inteiro, que é uma mudança significativa já nas temperaturas. As médias de verão estão um pouco mais elevadas, as médias de inverno também. Ou seja, não está mais tão frio. E, mais do que isso, um regime de chuvas que está muito diferente. Há um estreitamento entre o período que chove e o tamanho do volume que chove. Então, está chovendo muito num pequeno espaço de tempo e isso obviamente leva a um volume de chuvas que qualquer cidade como as de hoje não tem condição de receber. O clima mudou e a gente não está preparado.

Isso já vinha sendo dito por mim e por vários outros, que era esperado um aumento de chuvas aqui nessa nossa região mais ao sul e que isso poderia ser potencializado pelo El Niño. Bom, chegamos a um “super” El Niño, temos uma força de regime de chuvas potencializadas, o regime de chuvas bagunçado, e a consequência está aí. Então, a gente precisa se preparar, porque vamos sair do El Niño, vamos entrar na La Niña, vamos ter déficit hídrico, mas podemos depois voltar para o El Niño e, ao voltar, todos esses eventos podem se repetir. Se até lá a gente não estiver preparados, nós vamos lamentar de novo perdas de vidas, perdas de patrimônio.

 

•        Sem autocrítica e com cobranças a Lula, Melo anuncia plano realizado com apoio da Alvarez & Marsal

A Prefeitura escolheu o auditório do Instituto Ling como local para anunciar o Plano Porto Alegre Forte, realizado com apoio da consultoria Alvarez & Marsal, e a plataforma Reconstruir Porto Alegre, ambos com o objetivo de recuperar a Capital atingida pela maior enchente de sua história. A plateia, formada basicamente por empresários – ao menos assim o prefeito se referia ao público –, assistiu e aplaudiu, nesta sexta-feira (31), uma apresentação marcada por cobranças ao governo federal, pela divisão de responsabilidades e um discurso emotivo do prefeito Sebastião Melo (MDB), visivelmente incomodado com as críticas que tem recebido desde que as águas do Guaíba inundaram diversos bairros da Capital no começo de maio.

Pelos cálculos da Prefeitura, o custo estimado dos prejuízos na cidade variam entre R$ 6 bilhões e R$ 8 bilhões. Desse valor, R$ 600 milhões são com perdas de arrecadação e R$ 5,5 bilhões com a reconstrução da rede de saúde, escolas, áreas verdes, programas de moradia e investimentos de R$ 500 milhões em obras de reconstrução de drenagem e segurança hídrica.

Durante a apresentação, Melo logo voltou a dizer o que já tem afirmado: que não há sistema de proteção de cheias que possa funcionar em Porto Alegre sem a inclusão de São Leopoldo, Canoas, Gravataí e outras cidades da região metropolitana. A afirmativa, contudo, vai no sentido contrário do sistema planejado para proteger a Capital da elevação das águas do Guaíba e de sua eficácia apontada por especialistas, desde que haja manutenção.

Tampouco demorou a aparecer no discurso a primeira cobrança ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Lembrando a pandemia, o prefeito disse que “seria bom o governo federal ajudar os empresários a manter seus empregados por 30 ou 60 dias”. Ao falar da crise habitacional, com milhares de pessoas desabrigadas e desalojadas, Melo garantiu: “Não tem como haver solução para tantas famílias se não houver recurso do governo federal”. Na sequência, lembrou a promessa do presidente Lula de que resolverá o problema da moradia e disse acreditar “na palavra”.

A postura defensiva do prefeito apareceu ao citar as casas de bombas, equipamentos que se tornaram centrais no debate sobre as causas da enchente na Capital e eventuais responsáveis. “As tempestades passam, as verdades aparecem”, tergiversou. Foi a deixa para novamente dizer que é competência da União “cuidar de secas e cheias” e perguntou: “Será que o governo federal está fazendo isso?”.

Melo disse não ser sério e ser apenas politicagem afirmar que a enchente na Capital foi causada por “duas casas de bomba”. No dia 6 de maio, entretanto, a cidade teve apenas quatro das 23 casas de bombas em operação.

As falhas nas comportas do Muro da Mauá e o apagão nas casas de bombas incomodam o prefeito. O desconforto cresceu depois que vieram à tona documentos de engenheiros do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae), datados de 2018, em que já eram apontados problemas no sistema de proteção da Capital. Outro alerta foi emitido por engenheiros do órgão no final do ano passado, após a enchente de setembro evidenciar problemas de vazamento nas comportas e riscos de inundação em algumas casas de bombas. Ainda assim, não há espaço para mea-culpa no discurso da Prefeitura.

“Todas as casas de bombas estavam funcionando, elas colapsaram por causa do tamanho da enchente. Primeiro temos que refazer do jeito que elas estão, refazer os diques e os portões (comportas). São coisas imediatas. O modelo de novas casas de bombas passa por uma discussão de planejamento, ou seja, a altura em que as casas foram concebidas, com três metros, 3,80, deu no que deu. Então é preciso rever esse projeto. Fico muito satisfeito que o governo federal faça uma autocrítica e venha para esse processo, que o governador faça uma autocrítica e venha para esse processo, que os municípios venham para esse processo e não ficar um jogando para o outro”, afirmou Melo, definindo como “eleitoreiras” as críticas que tem recebido.

Coube ao vice-prefeito, Ricardo Gomes, anunciar que os R$ 500 milhões a serem investido em reconstrução de drenagem e segurança hídrica envolverão obras “melhores e mais modernas”. Gomes então comparou a construção do Muro da Mauá com o carro Corcel 2, lançado pela Ford em 1977. “Mesmo com manutenção (o Muro), é um Corcel 2.”

Segundo Melo, o vice-prefeito agora precisa viajar o mundo e ir para os Estados Unidos e a Europa com o objetivo de captar recursos para reconstruir a Capital.

Entre as críticas que o Prefeito tem recebido, uma delas trata dos R$ 400 milhões que o Dmae manteve em caixa em 2023, valor que funcionários e ex-diretores do órgão dizem que deveriam ter sido investidos em melhorias na rede pluvial da Capital. O valor é próximo ao anunciado agora pela Prefeitura.

Em outro momento, numa retórica para aliviar sua responsabilidade, Melo voltou a questionar quantos presidentes da República, governadores do Rio Grande do Sul e prefeitos de Porto Alegre falaram em crise climática nos últimos 30 anos. “Não vamos politizar a dor do Rio Grande e vamos juntos reconstruir nossa cidade”, convocou, para então emendar que a palavra do momento deve ser “esperançar” – o verbo transitivo direto ficou famoso na pedagogia do educador Paulo Freire, figura perseguida pelos bolsonaristas.

O prefeito ainda refletiu sobre a solidão do poder. Aos berros, disse que muitos a sua volta dão palpite, mas ele é quem tem que decidir. “Numa crise, a melhor decisão é a mais rápida”, afirmou, numa curiosa definição. “Somos um governo menos preocupado em anunciar. Vamos realizar, fazer”, disse, no evento de anúncio do Plano Porto Alegre Forte e da plataforma Reconstruir Porto Alegre.

Reconstruir Porto Alegre

Conforme a Prefeitura, a plataforma Reconstruir Porto Alegre tem como objetivo conectar empresas que possam custear obras em estruturas físicas afetadas pela inundação da cidade. No site, estão relacionados, inicialmente, 54 equipamentos, como escolas, postos de saúde, centros de atendimento psicossociais, parques e praças.

Cada equipamento público tem informações sobre o local afetado, sua importância para a comunidade local, a especificação das intervenções necessárias e o valor estimado.

A orientação do governo municipal é que, ao escolher a obra para a qual pretende contribuir, a empresa faça contato por WhatsApp específico para saber mais sobre as demandas existentes. Os valores das obras serão repassados diretamente pelas empresas aos fornecedores contratados, sem intermédio da Prefeitura.

A promessa é que o site seja atualizado constantemente, relatando o andamento das obras – os nomes dos parceiros também serão informados pela plataforma.

Segundo Germano Bremm, secretário municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), não haverá qualquer contrapartida da Prefeitura às empresas  privadas que assumirem as obras de reconstrução.

 

Fonte: Sul 21

 

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