Nina Lemos: ‘Caso Sylt mostra que racistas
perderam a vergonha na Alemanha’
O vídeo rodou o mundo todo. Nele, jovens
ricos alemães se divertem no terraço de um bar, rindo e celebrando. A cena
seria normal se eles não estivessem cantando os seguintes versos:
"Alemanha para os alemães, estrangeiros fora!". Entusiasmado, um dos
jovens faz o que parece ser um gesto nazista e uma imitação do bigode de
Hitler. O vídeo foi gravado esse mês em um bar de luxo de uma famosa ilha que é
conhecida por sua clientela rica e VIP: Sylt. A música é uma adaptação de uma
canção inofensiva de amor, L'amour toujours, de Gigi D'Agostino.
A cena gerou um grande
escândalo na Alemanha, obviamente. A polícia abriu uma investigação criminal e
o caso foi lamentando pelo chanceler federal alemão, Olaf Scholz, que
classificou o episódio como "inaceitável". Ótimo. Mas isso será
suficiente para barrar uma "tendência" xenófoba que cada dia fica
mais clara no país? Infelizmente, acho que não.
Depois dos jovens
ricos racistas viralizarem na internet, soubemos que, no mesmo fim de semana em
que o vídeo foi gravado e também em Sylt, uma mulher negra de 29 anos foi
insultada e levou um soco. De acordo com a emissora alemã NDR, a polícia
informou ainda que um episódio semelhante ao do bar ocorreu numa outra balada
da ilha.
Ou seja, o caso está
longe de ser isolado. A versão da música, segundo reportagem da NDR, circula no
TikTok pelo menos desde dezembro de 2023 e vários casos de jovens cantando as
palavras racistas já foram registrados na Alemanha e na Áustria.
·
Preconceituosos saindo do armário
Moro na Alemanha há
quase dez anos e nunca tinha visto uma cena como essa. Não estou dizendo que
não existiam neonazistas, claro que existiam. Mas ver pessoas cantando
sorridentes esses slogans em uma festa, aos olhos de todos, é algo que eu
realmente não podia imaginar. Será que eu era muito inocente? Pode ser. Mas os
xenófobos também não eram tão "saidinhos".
"Os idiotas estão
saindo do armário", escreveu o cientista político e ativista alemão Tadzio
Müller. Sim, a impressão que dá é que na Alemanha, assim como em muitos outros
países, os preconceituosos não estão mais com vergonha de externar suas visões
xenófobas, racistas, homofóbicas e misóginas.
"A gente já viu
isso antes", comentou um amigo brasileiro que também mora na Alemanha no X
(o antigo Twitter), depois que eu compartilhei o vídeo dos racistas na rede
social. Ele falava do Brasil a partir de 2017, 2018, quando o bolsonarismo mostrou
a sua cara e muita gente passou a falar sem vergonha que sentia saudades da
ditadura, a falar mal de gays, por aí vai. Ou seja, os preconceituosos saíram
do armário.
Vendo a cena horrorosa
de Sylt (assustadora principalmente para nós, estrangeiros que moram na
Alemanha) lembrei de alguns episódios que aconteceram no Brasil há poucos anos,
como o fato de pessoas falarem que sentiam saudades da ditadura militar e admirarem
publicamente torturadores. Esse é o caso do ex-presidente Jair Bolsonaro, que
"dedicou" seu voto na noite do impeachment da ex-presidente Dilma
Rousseff a Carlos Brilhante Ustra, um dos torturadores mais sanguinários da
ditadura. Depois disso, muitos dos seus admiradores, inclusive seu filho Carlos
Bolsonaro, usaram sem vergonha camisetas onde estava escrito: "Ustra
vive!".
Entoar slogans
neonazistas na Alemanha e falar que tem saudade da ditadura são coisas
diferentes, mas o ódio e a falta de vergonha de fazer apologia a crimes é muito
parecida.
·
E agora?
Muitos amigos
brasileiros perguntam preocupados o que vai acontecer com a Alemanha. Claro que
ver essas cenas nos machucam e assustam. Mas uma coisa eu respondo com
tranquilidade: apesar do crescimento das manifestações xenófobas, é
praticamente impossível que o partido de direita radical Alternativa para a
Alemanha (AfD) faça parte do governo federal nos próximos anos. Isso porque o
sistema político do país é o parlamentarismo de coalizão, o que significa que
partidos devem fazer uma aliança que supere os 50% dos assentos parlamentares
para governar. E existe no país o chamado Brandmauer, que significa
"muro de contenção", ou seja, um acordo entre os principais partidos
para isolar a AfD.
Além disso, o partido
está envolvido em vários escândalos. No dia 14 de maio, por exemplo, um de seus
maiores líderes, o deputado estadual da Turíngia Björn
Höcke, foi condenado por uso de slogan nazista.
Em janeiro, milhares foram às ruas protestar
contra o partido e o fascismo depois que uma reportagem mostrou que integrantes
da AfD tinham se encontrado com outros extremistas para discutir um plano para
expulsar milhares de estrangeiros da Alemanha. As manifestações deixaram ainda
mais claro que seria uma péssima ideia (em todos os sentidos, até o eleitoral)
um partido se associar à AfD.
Outra coisa que me
tranquiliza: novas manifestações contra o fascismo e a xenofobia já estão
marcadas em todo o país. Os xenófobos perderam a vergonha, mas ainda existe
muita gente sempre pronta para gritar: "alle zusammen gegen den
Faschismus" ("todos juntos contra o fascismo").
¨ Como ultradireita se infiltra na cultura da juventude alemã
Foi com uma música
alegre que o DJ Gigi d'Agostino conquistou o topo das paradas de sucesso nos
anos 2000 com L'amour toujours, um eletropop para dançar e cantar
junto que não podia faltar em festas.
Mas uma paródia com
letra em alemão, criada sem o consentimento do DJ, integra há cerca de um ano a
trilha sonora de uma nova geração de extremistas de direita – para indignação
do músico.
As palavras de ordem
"fora estrangeiros" e "Alemanha para os alemães" são
cantadas com a melodia da música em vídeos no TikTok, em festas de cidades pequenas e em bares da elite – como
ocorreu recentemente na ilha de Sylt, no norte da
Alemanha.
Jovens vestidos com
roupas caras gravaram a si mesmos sem pudor cantando os slogans. Um deles
parece fazer a saudação nazista com o braço, um gesto proibido na Alemanha,
enquanto coloca dois dedos sobre os lábios, como se quisesse imitar o bigode de
Adolf Hitler.
O vídeo viralizou, e mostrou mais uma
vez que o extremismo de direita e
o racismo não são
propagados por pessoas estereotipadas, mas por rostos que podem ser bastante
comuns.
·
Movimento identitário deu pontapé inicial
Os líderes do
movimento identitário reconheceram isso na década de 2010. Originado na França,
o movimento se espalhou também pela Alemanha e outros países europeus, como
Reino Unido, Áustria, Suíça e Dinamarca,
no final de 2012, sob o disfarce de um movimento juvenil moderno e moderado,
que embrulhava sua ideologia de extrema direita tão habilmente que, no início,
passou despercebido. O Twitter, o Facebook e o YouTube foram seus canais de distribuição,
com vídeos atraentes que capturaram o zeitgeist e os gostos
dos jovens.
Alguns anos depois, em
2019, o movimento identitário foi classificado pelo serviço de inteligência doméstica da Alemanha como extremista de direita, mas sua tática de explorar a
cultura dos jovens já estava estabelecida em muitos espaços.
·
Lobo em pele de cordeiro
O partido de
ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) está representado no Parlamento alemão e tem um número
crescente de apoiadores. Apesar de ser monitorado pelo serviço de inteligência
doméstica, e de alguns de seus grupos e diretórios regionais serem
classificados como extremistas de direita, o partido não está perdendo
popularidade.
Ele usa meios simples
para fazer as pessoas falarem. Provocar e quebrar tabus, para depois voltar
atrás. Ou o método do "lobo em pele de cordeiro": parecer amigável,
fingir compreensão pelo outro lado e depois atacar. A polarização também é um método
comum – usando dicotomias como a população rural supostamente simples versus a
elite rica das grandes cidades, "nós aqui embaixo contra vocês aí em
cima".
·
Muitos jovens votariam na AfD
A AfD e sua ala jovem,
a Junge Alternative,
identificam na cultura um grande potencial para recrutar novos eleitores. A
maior parte disso ocorre nas redes sociais, com o TikTok na dianteira.
Há mais de 20 milhões
de usuários do TikTok na Alemanha, a maioria deles são adolescentes. É lá que
os extremistas de direita divulgam suas mensagens, muito simples e em uma
velocidade impressionante. Com músicas, memes, emojis e embalagens
bem-humoradas.
O que torna o TikTok
particularmente interessante é que os usuários não precisam procurar ativamente
esse tipo de conteúdo: os vídeos de propaganda são apresentados nas suas linhas
do tempo. Quanto mais curtidas, mais rapidamente eles se espalham.
Esse padrão vem
funcionando há anos e está levando os futuros eleitores para os braços da
extrema direita. De acordo com a pesquisa de opinião Youth in Germany, 22% dos
jovens de 14 a 29 anos na Alemanha votariam na AfD.
·
Eles não se sentem ouvidos
Não é preciso ir muito
longe para descobrir as razões. Os partidos tradicionais não conseguiram
alcançar os jovens por décadas. Isso se reflete não apenas em uma política
educacional defasada, mas também em decisões políticas locais, como o
fechamento de centros juvenis. Os jovens muitas vezes sentem que não estão
sendo ouvidos pela maioria dos partidos.
E é aí que a
autoproclamada nova direita aparece em cena, fingindo compreensão e cooperação.
O termo "nova direita" por si só transmite modernidade e frescor, sem
se referir às suas origens: a ideia nacional-socialista que levou ao nazismo e ao assassinato de milhões de pessoas. Com uma roupagem
moderna e um instinto aguçado, a nova direita está fazendo incursões nas
subculturas dos jovens e aprendendo a falar a língua deles.
·
Batalha pela supremacia cultural
Existe um termo para
essa estratégia: "metapolítica" – exercer influência social além dos
programas partidários e do trabalho do governo. As pessoas são abordadas onde
se sentem em casa e entre seus pares. Festivais são organizados, barracas de
lanches e café são montadas, e um senso de união é criado sob o lema: nós os
vemos e os entendemos.
"Com a ajuda
dessa metapolítica, as ideias de extrema direita são levadas às pessoas de
forma discreta", afirma Lorenz Blumenthaler, da Fundação Amadeu Antonio, à
DW. A princípio, a coisa toda parece apolítica e inofensiva, diz Blumenthaler, "mas
é assim que eles conseguem penetrar lentamente na mente das pessoas e plantar
lá sua ideologia".
Com o uso direcionado
de polêmicas, propaganda e desinformação em pontos sensíveis dos debates
sociais, é mais fácil para a extrema direita vencer a batalha pela supremacia
cultural – seja na internet, na moda e no estilo de vida, em grupos de jogos ou
em festivais de cidades pequenas.
O sociólogo Felix
Schilk, de Tübingen, chama esse fenômeno – seja online ou nas praças de
vilarejos – de "espaço pré-político" que deve ser conquistado
para se tornar politicamente ativo. Em uma entrevista à rádio Deutschlandfunk,
ele disse que o objetivo é que a maioria da população "compartilhe as
ideias e internalize os motivos por trás da política".
·
Apropriação de termos e músicas
Quando um partido como
a AfD conquista um desses espaços pré-políticos, ele pode determinar o conteúdo
e o discurso. E consegue fazer isso, por exemplo, quando termos originados no
discurso racista ou no nacionalismo étnico se tornam aceitáveis ao serem cada
vez mais usados.
O exemplo mais recente
é a palavra remigração,
eufemismo que a extrema direita passou a usar para descrever suas propostas de
"expulsão de estrangeiros". Ou o termo Kopftuchmädchen ("garota
do lenço na cabeça"), usado para discriminar jovens mulheres muçulmanas,
inclusive alemãs.
Essa estratégia também
recodifica termos que originalmente tinham conotações positivas, como Gutmensch (derivado
de "fazer o bem") ou wokeness (atenção e cuidado com
as minorias), que já foram perdidos para os discursos da extrema direita.
Algo semelhante
aconteceu com a versão ilegítima da música de Gigi d'Agostino: se ela for
tocada em qualquer lugar, os slogans nazistas aparecem. A cobertura da mídia
torna a música ainda mais famosa – ela já foi ouvida algumas vezes e é
fácil abrir a boca e cantar junto. Primeiro a portas fechadas, depois cada vez
mais naturalmente, os outros também a cantam – como no elegante bar de Sylt,
onde entoar os slogans racistas com uma taça de rosé na mão era
"apenas" uma diversão inofensiva, como afirmaram os envolvidos, de
forma pouco crível.
Fonte: Deutsche Welle
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