MSF oferece cuidados médicos em abrigo de
área vulnerável de Canoas (RS)
O pequeno Joaquim
corre inquieto entre os brinquedos espalhados pela sala de aula. Para chamar
sua atenção, a avó, Nair, pergunta: “Tu é Grêmio ou Inter?”. “Guêmio!”, ele
responde timidamente, mas já cantando o hino do time.
Apesar das
brincadeiras, dos cartazes coloridos nas paredes e dos carrinhos no chão, não é
um dia de aula e o menino não é aluno da escola. As carteiras foram empilhadas
para abrir espaço para fileiras de colchões, transformando as salas em quartos.
No lugar dos estudantes, há famílias. São inúmeras, acolhidas em espaços
improvisados por causa das chuvas extremas que inundaram cidades inteiras e
desabrigaram centenas de milhares de pessoas no Rio Grande do Sul.
Os efeitos
devastadores das chuvas e inundações que atingiram o estado a partir do final
de abril transformaram o fenômeno na maior catástrofe socioambiental já
ocorrida no país. No final de maio, o número de mortos chegava a 169, com mais
de 50 pessoas ainda desaparecidas. Mais de 600 mil foram desalojadas pelas
cheias e 50 mil tiveram que se alojar em abrigos.
“A gente não tinha
ideia da dimensão de que seria essa tragédia. De repente, ficou tudo escuro, a
luz foi embora, aí deu para perceber que não era uma enchente como outras. Foi
quando começaram a chegar mensagens pelo telefone, as pessoas avisando para sair
porque ia alagar”, conta Ana Célia Alves. Ela foi resgatada com sua gatinha,
Aruna, por um vizinho em um barco a remo.
Eles estão entre as
cerca de 400 pessoas alojadas na Escola Municipal de Ensino Fundamental Paulo
Freire, que tem recebido moradores de diversos bairros da cidade de Canoas
desde os primeiros dias da emergência. Localizado na região metropolitana de
Porto Alegre, o município tem quase 350 mil habitantes e é o terceiro mais
populoso do estado. A cidade foi uma das mais afetadas pelas chuvas, com cerca
de 180 mil desabrigados.
O município é cortado
por uma rodovia estadual. Com as chuvas, um dos lados ficou totalmente alagado,
impactando dois de seus bairros mais populosos: Mathias Velho e Rio Branco.
“Apesar da gente ficar no lado que não foi afetado, estamos recebendo moradores
de lá. Nossa escola fica em uma zona com pessoas em situação de vulnerabilidade
e parte dos bairros alagados também. Então, recebemos pessoas que já
enfrentavam muitas dificuldades e desafios, inclusive de saúde, mesmo antes de
tudo isso”, explica a vice-diretora da escola, Angelita Michelon.
Profissionais de
Médicos Sem Fronteiras (MSF) estão no abrigo para oferecer atendimento médico e
de saúde mental e divulgar orientações sobre cuidados de saúde. Médicos,
enfermeiros, psicólogos e promotores de saúde compõem a equipe.
“Estamos trabalhando
para chegar a pessoas em situação de maior vulnerabilidade e aos locais onde
não há equipes de saúde disponíveis”, afirma a coordenadora do projeto de MSF
no Rio Grande do Sul, Alessandra Luz. “Sabemos que em situações de emergência há
diversas necessidades de saúde que vão mudando rapidamente. Num contexto assim,
é muito importante que consigamos entender onde podemos ser mais relevantes sem
duplicar esforços”, explica ela. Por
isso, ela ressalta a importância de coordenar nossa atuação com as autoridades
municipais, estaduais e federais.
Para Mônica Carvalho,
uma das médicas da equipe de MSF no abrigo, uma parte importante da ação é o
acompanhamento de pacientes com doenças crônicas, já que muitos interromperam o
tratamento ou estavam sem medicação, perdida nas chuvas. “A população abrigada
é muito diversa, mas chama a atenção o grande número de idosos que faz uso de
medicação controlada”, relata ela. “Também temos focado bastante em
compartilhar orientações sobre sintomas de leptospirose – que é uma grande
preocupação neste contexto – e de prevenção de doenças respiratórias, que
tendem a se agravar com a chegada do frio”, ressalta. A doença já provocou ao menos cinco mortes no
estado, com mais de 120 casos confirmados.
Dona Maria do Carmo de
Andrade Silva, de 78 anos, e seu filho, Alexsandro de Andrade também se
consultaram com os profissionais de MSF. Ele tratou uma pneumonia agravada pelo
clima frio. Os dois foram resgatados juntos após esperar por quase dois dias na
janela do segundo andar de casa. “Meu filho me diz ´mãe, acorda, a gente perdeu
tudo´ Mas eu sou muito forte. Eu tento relaxar um pouco, eu brinco com ele
porque ele é colorado e eu sou gremista, e deram um cobertor do Grêmio para
ele. Mas a verdade é que digo que vamos ter que nos reerguer novamente”, afirma
ela.
¨
TRÊS ONDAS DE DOENÇAS QUE SURGEM APÓS AS
ENCHENTES
A situação climática
que afetou dramaticamente o estado do Rio Grande do Sul tem várias facetas. O
primeiro esforço é, sem dúvida, salvar vidas e assegurar que as pessoas estejam
em lugares seguros. O aprendizado, a partir de outras grandes enchentes que
ocorreram ao redor do mundo, indica que as consequências para a saúde perduram
por longos períodos, demandando ações específicas e organizadas dos gestores de
saúde pública. As primeiras manifestações são principalmente aquelas advindas
do contato com a água. O início do aparecimento dos casos varia de acordo com o
tempo de incubação de cada vírus, bactérias ou outros patógenos.
As diarreias, a
leptospirose, a hepatite A e a dengue são as maiores preocupações. O contato
com a água ocorre quando as pessoas precisam se deslocar caminhando com a água
à altura do corpo, ou mesmo a nado. Nessa situação, as pessoas têm contato com
água que contém matéria orgânica proveniente dos bueiros, esgotos e valas,
contendo patógenos humanos e animais. O contato pode ocorrer via mucosa da boca
por ingestão acidental da água ou pela pele por contato com líquidos
contaminados. Nessas trajetórias, as pessoas também podem se ferir com cacos de
vidro, madeiras ou outros materiais cortantes. Essas lesões na pele se tornam
porta de entrada para diversos patógenos.
Podemos citar três
ondas de diferentes doenças que irão afetar a população do Rio Grande do Sul.
Na primeira onda,
temos gastroenterites (diarreias), infecções de pele, infecções respiratórias,
pneumonites e pneumonias por aspiração. As diarreias são as principais causas
de morte em decorrência de acidentes hídricos como esse. Deve-se prestar atenção
especial aos grupos com maior risco de casos graves de desidratação, como
crianças e idosos. Garantir o acesso à água potável é fundamental. As infecções
respiratórias muitas vezes aparecem devido à aglomeração nos centros de
acolhida, favorecendo a transmissão de diversos vírus, incluindo os causadores
da gripe e COVID-19.
As condições precárias
dos centros de acolhida também favorecem o aparecimento de escabiose (sarna) e
pediculose (infestação por piolhos)
Na segunda onda,
destacam-se leptospirose, tétano e hepatite A. Essas manifestações aparecem de
7 a 10 dias após o contato com a água. A leptospirose é uma doença causada pelo
contato com urina de animais, principalmente ratos contaminados por uma bactéria,
o leptospira. O tempo de incubação é bastante variável, podendo chegar a 30
dias. Os principais sintomas são: febre, dor muscular (principalmente nas
panturrilhas), náuseas, vômitos e pele amarelada. A leptospirose é uma doença
grave com sintomas bastante variáveis. Ao identificar os primeiros sintomas,
deve ser feita uma avaliação clínica e o diagnóstico pode requerer testes
laboratoriais. A medicação deve ser iniciada imediatamente, mesmo sem conclusão
do diagnóstico, ou eventualmente poderá ser usada medicação preventiva
(antibióticos) em pessoas que tiveram contato com a água, mesmo sem sintomas.
Tétano e hepatite A são preveníveis com vacinas, sendo importante considerar a
disponibilidade de doses de reforço.
A cólera é outra
doença de atenção nessas situações, mas o vibrião colérico não tem sido
detectado no Rio Grande do Sul há décadas.
Na terceira onda,
destacam-se a dengue e outras doenças transmitidas por vetores. Temos uma
situação mais favorável na região, pois o Aedes aegypti, o mosquito
transmissor, é mais ativo em altas temperaturas. No entanto, os desequilíbrios
climáticos não nos permitem afirmar que não haverá uma onda de calor nas
próximas semanas, quando a água baixar, favorecendo a proliferação do vetor. A
dengue já vinha sendo um fator de atenção em saúde no Rio Grande do Sul, com
quase 80 mil casos e cerca de 100 mortes em 94% das cidades da região em 2024.
Os cuidados em saúde
nessa situação dramática não se restringem a doenças infecciosas e seu
diagnóstico, mas também ao acesso à medicação, monitoramento de doenças
crônicas, atenção com quadros agudos como AVC e infartos, além das questões de
saúde mental desencadeadas por estresse pós-traumático e depressão, tanto na
população em geral quanto nos voluntários e profissionais de saúde envolvidos
nos cuidados da população. Garantir o acesso à água potável e evitar consumir
alimentos que tiveram contato com águas contaminadas são muito importantes. O
acesso a medicamentos básicos e ferramentas diagnósticas essenciais é
fundamental, além de um programa emergencial vacinação.
O sistema de saúde
precisa estar minimamente estruturado para acolher a população.
Fonte: Imprensa-Rio/CBDL
Diagnóstico para a Vida
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