sábado, 1 de junho de 2024

MSF oferece cuidados médicos em abrigo de área vulnerável de Canoas (RS)

O pequeno Joaquim corre inquieto entre os brinquedos espalhados pela sala de aula. Para chamar sua atenção, a avó, Nair, pergunta: “Tu é Grêmio ou Inter?”. “Guêmio!”, ele responde timidamente, mas já cantando o hino do time.

Apesar das brincadeiras, dos cartazes coloridos nas paredes e dos carrinhos no chão, não é um dia de aula e o menino não é aluno da escola. As carteiras foram empilhadas para abrir espaço para fileiras de colchões, transformando as salas em quartos. No lugar dos estudantes, há famílias. São inúmeras, acolhidas em espaços improvisados por causa das chuvas extremas que inundaram cidades inteiras e desabrigaram centenas de milhares de pessoas no Rio Grande do Sul.

Os efeitos devastadores das chuvas e inundações que atingiram o estado a partir do final de abril transformaram o fenômeno na maior catástrofe socioambiental já ocorrida no país. No final de maio, o número de mortos chegava a 169, com mais de 50 pessoas ainda desaparecidas. Mais de 600 mil foram desalojadas pelas cheias e 50 mil tiveram que se alojar em abrigos.

“A gente não tinha ideia da dimensão de que seria essa tragédia. De repente, ficou tudo escuro, a luz foi embora, aí deu para perceber que não era uma enchente como outras. Foi quando começaram a chegar mensagens pelo telefone, as pessoas avisando para sair porque ia alagar”, conta Ana Célia Alves. Ela foi resgatada com sua gatinha, Aruna, por um vizinho em um barco a remo.

Eles estão entre as cerca de 400 pessoas alojadas na Escola Municipal de Ensino Fundamental Paulo Freire, que tem recebido moradores de diversos bairros da cidade de Canoas desde os primeiros dias da emergência. Localizado na região metropolitana de Porto Alegre, o município tem quase 350 mil habitantes e é o terceiro mais populoso do estado. A cidade foi uma das mais afetadas pelas chuvas, com cerca de 180 mil desabrigados.

O município é cortado por uma rodovia estadual. Com as chuvas, um dos lados ficou totalmente alagado, impactando dois de seus bairros mais populosos: Mathias Velho e Rio Branco. “Apesar da gente ficar no lado que não foi afetado, estamos recebendo moradores de lá. Nossa escola fica em uma zona com pessoas em situação de vulnerabilidade e parte dos bairros alagados também. Então, recebemos pessoas que já enfrentavam muitas dificuldades e desafios, inclusive de saúde, mesmo antes de tudo isso”, explica a vice-diretora da escola, Angelita Michelon.

Profissionais de Médicos Sem Fronteiras (MSF) estão no abrigo para oferecer atendimento médico e de saúde mental e divulgar orientações sobre cuidados de saúde. Médicos, enfermeiros, psicólogos e promotores de saúde compõem a equipe.

“Estamos trabalhando para chegar a pessoas em situação de maior vulnerabilidade e aos locais onde não há equipes de saúde disponíveis”, afirma a coordenadora do projeto de MSF no Rio Grande do Sul, Alessandra Luz. “Sabemos que em situações de emergência há diversas necessidades de saúde que vão mudando rapidamente. Num contexto assim, é muito importante que consigamos entender onde podemos ser mais relevantes sem duplicar esforços”, explica ela.  Por isso, ela ressalta a importância de coordenar nossa atuação com as autoridades municipais, estaduais e federais.

Para Mônica Carvalho, uma das médicas da equipe de MSF no abrigo, uma parte importante da ação é o acompanhamento de pacientes com doenças crônicas, já que muitos interromperam o tratamento ou estavam sem medicação, perdida nas chuvas. “A população abrigada é muito diversa, mas chama a atenção o grande número de idosos que faz uso de medicação controlada”, relata ela. “Também temos focado bastante em compartilhar orientações sobre sintomas de leptospirose – que é uma grande preocupação neste contexto – e de prevenção de doenças respiratórias, que tendem a se agravar com a chegada do frio”, ressalta.  A doença já provocou ao menos cinco mortes no estado, com mais de 120 casos confirmados.

Dona Maria do Carmo de Andrade Silva, de 78 anos, e seu filho, Alexsandro de Andrade também se consultaram com os profissionais de MSF. Ele tratou uma pneumonia agravada pelo clima frio. Os dois foram resgatados juntos após esperar por quase dois dias na janela do segundo andar de casa. “Meu filho me diz ´mãe, acorda, a gente perdeu tudo´ Mas eu sou muito forte. Eu tento relaxar um pouco, eu brinco com ele porque ele é colorado e eu sou gremista, e deram um cobertor do Grêmio para ele. Mas a verdade é que digo que vamos ter que nos reerguer novamente”, afirma ela.

 

¨      TRÊS ONDAS DE DOENÇAS QUE SURGEM APÓS AS ENCHENTES

A situação climática que afetou dramaticamente o estado do Rio Grande do Sul tem várias facetas. O primeiro esforço é, sem dúvida, salvar vidas e assegurar que as pessoas estejam em lugares seguros. O aprendizado, a partir de outras grandes enchentes que ocorreram ao redor do mundo, indica que as consequências para a saúde perduram por longos períodos, demandando ações específicas e organizadas dos gestores de saúde pública. As primeiras manifestações são principalmente aquelas advindas do contato com a água. O início do aparecimento dos casos varia de acordo com o tempo de incubação de cada vírus, bactérias ou outros patógenos.

As diarreias, a leptospirose, a hepatite A e a dengue são as maiores preocupações. O contato com a água ocorre quando as pessoas precisam se deslocar caminhando com a água à altura do corpo, ou mesmo a nado. Nessa situação, as pessoas têm contato com água que contém matéria orgânica proveniente dos bueiros, esgotos e valas, contendo patógenos humanos e animais. O contato pode ocorrer via mucosa da boca por ingestão acidental da água ou pela pele por contato com líquidos contaminados. Nessas trajetórias, as pessoas também podem se ferir com cacos de vidro, madeiras ou outros materiais cortantes. Essas lesões na pele se tornam porta de entrada para diversos patógenos.

Podemos citar três ondas de diferentes doenças que irão afetar a população do Rio Grande do Sul.

Na primeira onda, temos gastroenterites (diarreias), infecções de pele, infecções respiratórias, pneumonites e pneumonias por aspiração. As diarreias são as principais causas de morte em decorrência de acidentes hídricos como esse. Deve-se prestar atenção especial aos grupos com maior risco de casos graves de desidratação, como crianças e idosos. Garantir o acesso à água potável é fundamental. As infecções respiratórias muitas vezes aparecem devido à aglomeração nos centros de acolhida, favorecendo a transmissão de diversos vírus, incluindo os causadores da gripe e COVID-19.

As condições precárias dos centros de acolhida também favorecem o aparecimento de escabiose (sarna) e pediculose (infestação por piolhos)

Na segunda onda, destacam-se leptospirose, tétano e hepatite A. Essas manifestações aparecem de 7 a 10 dias após o contato com a água. A leptospirose é uma doença causada pelo contato com urina de animais, principalmente ratos contaminados por uma bactéria, o leptospira. O tempo de incubação é bastante variável, podendo chegar a 30 dias. Os principais sintomas são: febre, dor muscular (principalmente nas panturrilhas), náuseas, vômitos e pele amarelada. A leptospirose é uma doença grave com sintomas bastante variáveis. Ao identificar os primeiros sintomas, deve ser feita uma avaliação clínica e o diagnóstico pode requerer testes laboratoriais. A medicação deve ser iniciada imediatamente, mesmo sem conclusão do diagnóstico, ou eventualmente poderá ser usada medicação preventiva (antibióticos) em pessoas que tiveram contato com a água, mesmo sem sintomas. Tétano e hepatite A são preveníveis com vacinas, sendo importante considerar a disponibilidade de doses de reforço.

A cólera é outra doença de atenção nessas situações, mas o vibrião colérico não tem sido detectado no Rio Grande do Sul há décadas.

Na terceira onda, destacam-se a dengue e outras doenças transmitidas por vetores. Temos uma situação mais favorável na região, pois o Aedes aegypti, o mosquito transmissor, é mais ativo em altas temperaturas. No entanto, os desequilíbrios climáticos não nos permitem afirmar que não haverá uma onda de calor nas próximas semanas, quando a água baixar, favorecendo a proliferação do vetor. A dengue já vinha sendo um fator de atenção em saúde no Rio Grande do Sul, com quase 80 mil casos e cerca de 100 mortes em 94% das cidades da região em 2024.

Os cuidados em saúde nessa situação dramática não se restringem a doenças infecciosas e seu diagnóstico, mas também ao acesso à medicação, monitoramento de doenças crônicas, atenção com quadros agudos como AVC e infartos, além das questões de saúde mental desencadeadas por estresse pós-traumático e depressão, tanto na população em geral quanto nos voluntários e profissionais de saúde envolvidos nos cuidados da população. Garantir o acesso à água potável e evitar consumir alimentos que tiveram contato com águas contaminadas são muito importantes. O acesso a medicamentos básicos e ferramentas diagnósticas essenciais é fundamental, além de um programa emergencial vacinação.

O sistema de saúde precisa estar minimamente estruturado para acolher a população.

 

Fonte: Imprensa-Rio/CBDL Diagnóstico para a Vida

 

Nenhum comentário: