Bruno Huberman: ‘expulsão dos nativos não é
um evento histórico, mas uma dinâmica estrutural permanente’
ESSA SEMANA BOA PARTE das
redes sociais foram tomadas com cenas de mulheres e crianças carbonizadas em
mais um ataque israelense, desta vez em ao campo de refugiados na cidade de
Rafah, ao sul da Faixa de Gaza.
O ataque ocorreu dois
dias depois de a Corte Internacional de Justiça exigir o fim da violência
contra refugiados. As imagens geraram indignação internacional, porém o
genocídio continua.
O atual genocídio
palestino começou em outubro de 2023. Porém, a situação de limpeza étnica
começa com a Nakba de 1948, a expulsão de palestinos para formar o estado de
Israel, e de ocupação e violações de direitos humanos seguem desde então.
Israel segue
destruindo hospitais, escolas, universidades e matando mais de 40 mil pessoas,
sendo mais de 10 mil crianças.
Em paralelo, os
israelenses também intensificaram a ocupação na Cisjordânia e na Jerusalém
Oriental, removendo palestinos de suas casas, destruindo seus bairros e
construindo casas para israelenses no lugar.
Para entender melhor o
contexto histórico da ocupação colonial de Israel, entrevistamos Bruno
Huberman, professor de relações internacionais da PUC. Para ele, a colonização
se dá, hoje, sob parâmetros neoliberais de estado mínimo: mais repressão, menos
direitos dos trabalhadores, menos estado do bem estar social.
“As pessoas de
diferentes religiões e etnias conviviam em harmonia em Jerusalém”, explica
Huberman. “Com a ocupação israelense de Jerusalém em 1967 e anexação de
Jerusalém Oriental em 1980, os palestinos se tornaram residentes permanentes,
constituindo uma das facetas do apartheid israelense”.
Huberman faz parte do
Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUC-SP e é autor do
livro “A Colonização Neoliberal de Jerusalém”.
<><> Leia
a entrevista a seguir:
·
Pode nos contar um
pouco sobre sua trajetória acadêmica e profissional? O que inicialmente
despertou seu interesse pela questão palestina e pela situação de Israel e, em
especial, de Jerusalém?
Bruno
Huberman – O interesse surgiu depois de eu ir, em
2011, para uma viagem financiada por Israel para jovens judeus chamada “Taglit
– Birthright Experience”. Eu já era um jovem envolvido em movimentos estudantis
de esquerda, mas sionista alienado dessa minha identidade.
Isto é, ser sionista
era parte da minha identidade judaica mas eu não tinha consciência disso. Sabia
que Israel teria feito coisas erradas, mas não entendia nada. E nessa viagem,
percebi a lavagem cerebral.
Nos dias seguintes ao
programa, junto de outros colegas, fomos para o campo de refugiados de
Deheishe, em Belém, e eu fiquei impressionado quando um palestino mostrou todo
o mapa de Israel e disse que aquilo era a Palestina.
Desde então, acredito
que o interesse por Jerusalém permaneceu e veio a se tornar o objeto de
estudo do meu doutorado muitos anos
depois.
·
Você poderia nos
contar por que Jerusalém é uma cidade tão central no conflito
israelo-palestino?
Jerusalém é importante
por causa da Cidade Velha que hospeda os locais sagrados: Muro das Lamentações,
Mesquita de Al-Aqsa e Igreja do Santo Sepulcro. A cidade sempre foi o centro
político da vida palestina e importante local de comércio. As pessoas de diferentes
religiões e etnias conviviam em harmonia na cidade.
O conflito começa com
a ascensão do sionismo, particularmente durante o Mandato Britânico, que
começa a expulsar o campesinato, empurrando-os para as cidades, onde se
constituíam como trabalhadores precários. Isso foi criando animosidade até a
Revolta de Buraq (o nome em árabe para o Muro das Lamentações), em 1929, pelo
acesso ao local religioso entre sionistas e palestinos.
Depois da Nakba –
quando há destruição de 500 vilarejos, expulsão de 800 mil palestinos em
1948-49 por forças paramilitares sionistas no processo de construção de Israel
–, a cidade é dividida e a Cidade Velha fica sob o governo jordaniano, que
queria manter soberania sobre os locais sagrados e, na prática, era contra a
autodeterminação palestina.
A reunificação de
Jerusalém sob a ocupação israelense, em 1967, e a anexação de Jerusalém
Oriental, em 1980, não significou cidadania e democracia para os residentes
palestinos. Os palestinos se tornaram residentes permanentes, constituindo uma
das facetas do apartheid israelense. Essa residência pode ser revogada a
qualquer momento, por exemplo, e é bem mais limitada do que a cidadania.
Jerusalém Oriental
está sob o governo civil israelense e o plano diretor municipal é utilizado
pelo estado para construir assentamentos judaicos – são 12 assentamentos,
com aproximadamente 500 mil colonos judeus.
·
E como são as
políticas de repressão em Israel?
O aumento da repressão
pelo estado é visto como importante para conter a insatisfação popular diante
de medidas econômicas duras que seriam racionalmente necessárias para uma
transformação social capaz de promover o verdadeiro desenvolvimento e assegurar
a liberdade individual.
Isso é possível de ser
visto na repressão no Chile de Pinochet, que assegurou o neoliberalismo no país
décadas depois; na ocupação americana do Iraque; no governo de Margaret
Thatcher para fazer o “Reino Unido grande novamente”; e hoje na Argentina de Javier
Milei.
Em Israel, a
privatização das indústrias militares é uma dinâmica de neoliberalismo
autoritário, que faz da guerra permanente uma fonte de lucro extraordinário. O
EUA investiu pesado no complexo industrial-militar israelense, que é a origem
da indústria high-tech do país e até hoje há muita proximidade entre
desenvolvimento de tecnologia militar e civil.
E a figura racista do
“terrorista islâmico” justifica a continuidade das guerras imperialistas no
Oriente Médio em favor dessa indústria bilionária.
·
Seu livro aborda um
grande conjunto de contradições na vida política de Jerusalém. Há uma pressão
por cortes de gastos e de serviços. Mas há uma necessidade de controle sobre a
população palestina. Podemos começar o entendimento dele por aí.
O livro aborda como o
controle da população palestina em Jerusalém Oriental não vai se dar mais
somente por medidas de exclusão e vigilância, mas também através de políticas
de inclusão, de característica neoliberal.
Argumento que a
inclusão neoliberal não resulta em desenvolvimento e não assegura direitos,
embora alguns tenham a impressão que signifique, inclusive, a
descolonização.
Ao responsabilizar os
sujeitos pela sua própria inclusão através de programas de capacitação
empreendedora e criação de oportunidades no mercado, Israel coloca os
palestinos como responsáveis por seu sucesso e fracasso.
Pois, o neoliberalismo
defende a igualdade de oportunidades. O resto é merecimento próprio. Dessa
forma, o apartheid é reproduzido pelo mercado e você supostamente não poderia
mais responsabilizar o estado pela segregação.
As estruturas racistas
que constituem a desigualdade seriam normalizadas com a igualdade de
oportunidades.
Essas políticas
incentivam os palestinos a recorrer a estratégias individualistas de
sobrevivência, que vai alterando as suas subjetividades na direção de
formasisraelense e neoliberal.
Consequentemente, há
um afastamento de formas coletivas de mobilização pela libertação nacional, que
são vigiadas e reprimidas pelo estado. As formas empreendedoras passam a ser
vistas como pragmáticas e racionais para assegurar os direitos e bem estar diante
do entrave político que a libertação da Palestina se encontra.
Mas, os palestinos
seguem encontrando formas alternativas de resistência e buscam combinar formas
de sobrevivência econômica com mobilizações coletivas de resistência. Porém
isso está se tornando cada vez mais difícil.
A inclusão se torna
uma alternativa de contrainsurgência para os israelenses diante da persistência
da resistência palestina, uma vez que Jerusalém Oriental se tornou um dos
principais locais de resistência.
Isso, somado à
necessidade do capital israelense de exploração do trabalho barato, a pressão
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, para
Israel diminuir a desigualdade social e o entendimento de que os palestinos
precisam de um mínimo de bem estar para serem pacificados, motivou as políticas
de inclusão.
Apesar de elas não
resultarem em nenhum bem estar coletivo, alguns indivíduos podem melhorar de
vida, o que acaba por dinamizar a situação de subalternidade que os palestinos
se encontram e auxilia na na manutenção da soberania colonial israelense.
·
Em que medida as
políticas israelenses em Jerusalém afetam a vida cotidiana dos palestinos? Como
a construção do muro em Jerusalém Oriental influenciou a demografia e a
economia locais?
As políticas
israelenses afetam todos os aspectos da vida dos palestinos, como por exemplo:
- O currículo que se ensina na escola, se será isralenese ou
palestino.
- Se o consumidor pode parar o carro em frente à loja para
comprar no atacado.
- Se tem transporte público para chegar no trabalho ou na
escola.
- Se é possível se organizar coletivamente.
- Se é possível construir uma nova casa em sua propriedade.
- Se os turistas estrangeiros conseguem acessar os seus
hotéis e lojas, entre outros.
Enfim, todos os
aspectos da vida palestina são regulamentados pelo estado de Israel de forma a
impor uma condição de vida precarizada que os force a deixar a cidade e ir
morar em outro local da Cisjordânia.
É isso que
especialistas de direitos humanos chamam de expulsão indireta.
·
Você menciona uma
transição de políticas de bem-estar para políticas reguladas pelo trabalho.
Poderia explicar isso mais detalhadamente?
O que quero dizer é
que o estado deixa de regular a sociedade para assegurar a ordem capitalista
não mais com medidas de bem estar social, como prover educação, saúde e moradia
públicas para controlar as ambições revolucionárias da classe trabalhadora de
obter a propriedade direta dos meio de produção, mas através do oferecimento de
oportunidades de capacitação e de empreendedorismo que permitam o ingresso dos
sujeitos no mercado.
E como já expliquei
acima, isso retira a responsabilização do estado sobre o bem estar dos seus
cidadãos e transfere essa responsabilidade para os próprios sujeitos, que devem
obter estes direitos através do mercado.
Isso afeta até a
colonização israelense: diante da dificuldade de Israel de trazer jovens judeus
para morar em Jerusalém por razões nacionalistas ou oferecendo políticas de bem
estar tradicionais, como casa e educação, o estado passa a oferecer condições
para os jovens exercerem a sua liberdade criativa e empresarial em Jerusalém a
partir de programas de capacitação, linhas de crédito, etc.
O objetivo é tornar
Jerusalém uma cidade “bacana” e gerar a atração de mais jovens criativos de
forma a tornar a cidade mais judia e economicamente ativa dentro das condições
de desenvolvimento neoliberal de financeirização, turismo e indústrias high-tech
civis e militares.
·
Após a rebelião
popular contra a ocupação israelense entre 2000 e 2005, conhecida como a
Segunda Intifada, alguns autores apontaram uma redução do uso de mão de obra
palestina pela economia israelense, que teria optado por importar mão de obra
do Sudeste Asiático. Como isso impacta Jerusalém?
Isso vem desde a
Primeira Intifada ( que durou de 1987 até 1993), quando a greve de
trabalhadores palestinos dos territórios ocupados significou uma pressão
econômica sobre o capital israelense que constituía uma vulnerabilidade para a
manutenção do colonialismo.
O apartheid
sul-africano acabou, entre outras razões, por causa dessa mobilização do
proletariado negro, e Israel foi pressionado a abrir negociações com a
Organização para a Libertação da Palestina, a OLP, também por causa disso.
Consequentemente,
Israel passou a importar mão de obra da Rússia e do sudeste asiático, como
Filipinas, Indonésia, e mais recentemente da China, para diminuir a dependência
em relação ao trabalho nativo.
Essas pessoas vão para
Israel em regimes de trabalho temporário, característica do neoliberalismo. Em
Tel Aviv, tem se formado comunidades de imigrantes marginalizados.
Há alguns anos, Israel
impôs uma política de deportação desses imigrantes que desejavam permanecer por
mais tempo do que os seus contratos permitiam, revelando que as dinâmicas
racistas do estado não são somente em relação aos palestinos, mas em relação a
manutenção de uma maioria demográfica judaica.
Mas o capital
israelense tem demandado por mão de obra palestina por diferentes
razões. Por exemplo, na área de TI e a importação de trabalhadores do
leste europeu possui alto custo.
Isso leva o capital a
pressionar o estado a afrouxar restrições sobre os palestinos e promover
políticas de inclusão para formar engenheiros de informática palestinos mais
baratos que a mão de obra importada.
·
As tensões ligadas à
mesquita de Al-Aqsa e o bairro de Sheikh Jarrah são centrais para
entender tanto o 7 de outubro como o genocídio em Gaza que o sucedeu. Você pode
nos explicar melhor essa situação?
Em 2021, uma família
palestina, chamada El-Kurd, se recusou a deixar a sua casa em Sheikh Jarrah
(bairro palestino em Monte Scopus, em Jerusalém Oriental) que havia sido
expropriada legalmente por colonos judeus.
Esse é mais um
episódio de um processo sistêmico de judaização do bairro que já ocorre há
décadas. Isso gerou uma revolta popular, incluindo protestos às sextas na
mesquita de al-Aqsa. Que gerou repressão israelense.
Israel teria violado
direitos do Waqf, o órgão muçulmano responsável por governar o local de forma
autônoma. Colonos ultranacionalistas almejam destruir al-Aqsa para reconstruir
o Templo judaico, o que faz do local alvo de disputas duras.
Como reação à
repressão israelense em al-Aqsa, o Hamas e a Jihad Islâmica lançaram foguetes
desde Gaza. Foi a primeira vez que houve um ato de solidariedade desse tipo
vindo de Gaza em relação a um conflito em Jerusalém.
Isso gerou um duro
bombardeio sobre Gaza. Esse acontecimento teria sido faísca que teria levado as
forças guerrilheiras palestinas a começarem o planejamento para a operação
militar de 07 de outubro, chamada de a “Enchente de Al-Aqsa”.
Fonte: The Intercept
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