Investigação
jornalística ajudou encontrar o mais procurado traficante de pessoas da Europa
Um
dos traficantes de pessoas mais conhecidos na Europa foi preso no Iraque após
uma investigação jornalística conduzida pela BBC.
Barzan
Majeed foi preso no Curdistão iraquiano, na manhã de 12 de maio, segundo uma
autoridade do governo local.
Por
vários anos, ele e sua gangue tiveram ligações profundas com o tráfico de
pessoas, em barcos e caminhões, através do Canal da Mancha.
A
BBC encontrou Majeed, também conhecido como Scorpion, na cidade iraquiana de
Sulaymaniya. E um membro do governo regional do Curdistão declarou que os
policiais conseguiram localizar Majeed devido ao trabalho de investigação da
BBC.
A
autoridade informou que "a prisão foi realizada no lado de fora da sua
casa, às sete horas da manhã. Eles o prenderam no momento em que ele saía, sem
maiores problemas."
"Estamos
agora, antes de tudo, analisando as acusações contra ele e, em seguida,
discutiremos com a polícia e os procuradores europeus quem deseja interrogá-lo
e lidar com ele."
A
Agência Nacional do Crime do Reino Unido (NCA, na sigla em inglês) confirmou a
prisão. "Somos gratos à BBC por destacar o caso e permanecemos
determinados a fazer todo o possível para desmantelar e eliminar as redes
criminosas envolvidas no tráfico de pessoas para o Reino Unido, onde quer que
elas operem", disse a agência.
Acredita-se
que, entre 2016 e 2021, a gangue de Scorpion tenha controlado grande parte do
tráfico de pessoas entre a Europa continental e o Reino Unido. Mas uma operação
policial internacional que durou dois anos resultou na condenação de 26 membros
da gangue por tribunais no Reino Unido, na França e na Bélgica.
O
paradeiro de Scorpion era desconhecido – até que a reportagem da BBC o
encontrou.
• O caminho
até o encontro
Estou
sentada em um shopping no Iraque, frente a frente com um dos traficantes de
pessoas mais famosos da Europa.
Seu
nome é Barzan Majeed. Ele é procurado pela polícia de diversos países,
incluindo o Reino Unido.
Ao
longo da nossa conversa – aqui e no dia seguinte, no seu escritório – ele conta
que não sabe quantos migrantes ele transportou através do Canal da Mancha.
"Talvez 1 mil, talvez 10 mil. Não sei, não contei."
Esse
encontro é o ápice do que parecia ser uma missão impossível poucos meses atrás.
Ao
lado do ex-soldado Rob Lawrie, que trabalha com refugiados, passei a procurar o
homem conhecido como Scorpion, até conseguir entrevistá-lo.
Mais
de 70 migrantes morreram na travessia de barco desde 2018. E, em abril, cinco
pessoas foram mortas no litoral da França – entre elas, uma menina de sete
anos.
A
viagem é perigosa, mas pode ser muito lucrativa para os traficantes.
Eles
chegam a cobrar 6 mil libras (cerca de R$ 39,2 mil) por pessoa, pela travessia
de barco. E, com cerca de 30 mil migrantes tentando fazer a travessia em 2023,
fica evidente o potencial de lucro desta operação.
Nosso
interesse por Scorpion começou com uma garotinha que conhecemos em um dos
campos de migrantes perto de Calais, no norte da França. Ela quase morreu
tentando atravessar o Canal da Mancha em um bote inflável.
O
bote não era navegável – era uma embarcação barata, comprada de segunda mão na
Bélgica. As 19 pessoas a bordo não tinham coletes salva-vidas.
Quem
enviaria pessoas para atravessar o mar naquelas condições?
• Em busca de
Scorpion
Quando
a polícia britânica detém migrantes ilegais, eles tomam e inspecionam seus
telefones celulares. E, a partir de 2016, um número de telefone começou a
aparecer repetidamente.
O
nome de contato, muitas vezes, era "Scorpion". Em alguns casos, o
registro incluía a figura de um escorpião.
O
investigador sênior da Agência Nacional do Crime do Reino Unido (NCA) Martin
Clarke conta que os policiais começaram a perceber que "Scorpion" era
uma referência a um homem curdo-iraquiano chamado Barzan Majeed.
Em
2006, Majeed, então com 20 anos de idade, havia sido levado para a Inglaterra
na carroceria de um caminhão.
Um
ano mais tarde, seu pedido de permanência foi negado, mas ele ainda
permaneceria no Reino Unido por vários anos – parte deste tempo na prisão, por
crimes relacionados a armas e drogas.
Ele
foi finalmente deportado para o Iraque em 2015. E, pouco tempo depois,
acredita-se que Majeed tenha "herdado" um negócio de tráfico de
pessoas do seu irmão mais velho, que cumpria sentença de prisão na Bélgica.
Foi
quando Majeed se tornou Scorpion.
Entre
2016 e 2021, acredita-se que a gangue de Scorpion tenha controlado grande parte
do tráfico de pessoas entre o continente europeu e o Reino Unido.
Depois
de uma operação policial internacional que durou dois anos, 26 membros da
gangue foram condenados em tribunais do Reino Unido, da França e da Bélgica.
Mas Scorpion escapou de ser preso e permaneceu foragido.
Ele
foi julgado à revelia por um tribunal belga e condenado por 121 acusações de
tráfico de pessoas. Em outubro de 2022, ele foi sentenciado a 10 anos de prisão
e ao pagamento de multa no valor de 968 mil euros (cerca de R$ 5,4 milhões).
Desde
então, o paradeiro de Scorpion era desconhecido – e nós queríamos desvendar
este mistério.
• Primeira
parada: a Turquia
Um
contato de Rob Lawrie nos apresentou um homem iraniano que afirmava ter
negociado com Scorpion ao tentar atravessar o Canal. Scorpion havia dito a ele
que morava na Turquia, de onde coordenava remotamente os negócios.
Na
Bélgica, nós encontramos o irmão mais velho de Majeed, que havia saído da
cadeia. Ele também disse que Scorpion provavelmente estaria na Turquia.
A
Turquia é um ponto de parada importante para a maioria dos migrantes que se
dirigem ao Reino Unido. Suas leis de imigração fazem com que pessoas vindas da
África, Ásia e Oriente Médio consigam um visto para entrar no país com relativa
facilidade.
Uma
gorjeta nos conduziu a um café na capital turca, Istambul, frequentado por
traficantes de pessoas. Barzan Majeed havia sido visto ali recentemente.
Nossas
primeiras consultas não deram bons resultados. Nós perguntamos ao gerente se
ele poderia nos contar sobre o comércio – e o café ficou em silêncio.
Pouco
tempo depois, um homem passou pela nossa mesa e abriu seu casaco, mostrando que
ele portava uma arma. Era um lembrete de que estávamos lidando com pessoas
perigosas.
Nossa
parada seguinte trouxe resultados mais promissores.
Soubemos
que Majeed havia recentemente depositado 200 mil euros (cerca de R$ 1,1 milhão)
em uma casa de câmbio a poucas quadras de distância. Deixamos ali nosso número
de telefone e, no meio da noite seguinte, o celular de Rob tocou.
O
identificador de chamadas indicou "número privado".
No
outro lado da linha, havia alguém afirmando ser Barzan Majeed.
Era
muito tarde e a ligação foi tão inesperada que não tivemos tempo de gravar o
início da chamada. Rob relembra a voz que estava na linha: "Ele fala 'acho
que você está me procurando' e eu respondo 'Quem é você? Scorpion?' Ele diz
'Ah, você quer me chamar assim? Tudo bem.'"
Não
havia forma de dizer se aquele era o verdadeiro Barzan Majeed, mas os detalhes
que ele forneceu coincidiam com o que sabíamos.
Ele
disse que havia morado em Nottingham, no Reino Unido, até 2015, quando foi
deportado. Mas negou seu envolvimento no tráfico de pessoas.
"Isso
não é verdade!", protestou ele. "É só a imprensa."
A
linha estava entrecortada e, apesar da nossa sondagem, ele não forneceu nenhuma
indicação da sua localização.
Nós
não tínhamos ideia de se e quando ele ligaria de novo. Enquanto isso, um
contato local de Rob contou que Scorpion agora estava envolvido no tráfico de
migrantes da Turquia para a Grécia e a Itália.
O
que ouvimos era perturbador. Até 100 homens, mulheres e crianças eram
espremidos em embarcações licenciadas para transportar cerca de 12 pessoas.
Estas
embarcações, muitas vezes, eram pilotadas por traficantes sem experiência de
navegação. Eles seguiam por um perigoso trajeto entre diversas ilhas pequenas,
para evitar as patrulhas da guarda costeira.
Havia
muito dinheiro envolvido. Cada passageiro estaria pagando cerca de 10 mil euros
(cerca de R$ 55,7 mil) por um lugar em um desses barcos.
Calcula-se
que mais de 720 mil pessoas tenham tentado cruzar o leste do Mediterrâneo para
chegar à Europa nos últimos 10 anos. Destas, morreram cerca de 2,5 mil pessoas
– a maioria, por afogamento.
Julia
Schafermeyer, da ONG SOS Mediterrâneo, afirma que os traficantes colocam as
vidas das pessoas em sério risco: "Acho que não faz diferença para eles se
aquelas pessoas vivem ou morrem."
E,
mais ou menos naquele momento, tivemos a chance de fazer esta pergunta
diretamente a Scorpion, já que, do nada, ele nos ligou de novo.
Ele
negou mais uma vez ser traficante. Mas sua definição desta palavra parecia ser
de alguém que conduzia fisicamente a tarefa, não de alguém que agisse nos
bastidores.
"Você
precisa estar lá", contou ele. "Agora mesmo, não estou lá." Ele
disse que era apenas o "homem do dinheiro".
Majeed
também pareceu demonstrar pouca solidariedade pelos migrantes que morreram
afogados.
"Deus
[escreve] quando você irá morrer, mas, às vezes, a culpa é sua", afirmou
ele. "Deus nunca diz 'entre no barco'."
• Do litoral
turco para o Iraque
Nossa
parada seguinte foi na cidade turística de Marmaris, onde a polícia turca
acreditava que Scorpion era o dono de uma casa de praia.
Fizemos
algumas perguntas e recebemos uma ligação de alguém dizendo que era amiga dele.
Ela
sabia que Majeed estava envolvido no tráfico de pessoas e disse que, apesar das
suas preocupações, o interesse dele era pelo dinheiro, não pelo destino dos
migrantes.
"Ele
não se preocupava com eles – é muito triste, não?", ela conta. "É
algo que relembro e fico com um pouco de vergonha porque... ouvi coisas e eu
sabia que eles não eram boas pessoas."
Ela
disse que não tinha visto Scorpion na sua casa em Marmaris recentemente, mas
alguém havia contado que ele talvez estivesse no Iraque.
Esta
informação foi confirmada por outro contato, que disse ter visto Scorpion
pessoalmente em uma casa de câmbio na cidade de Sulaymaniyah, no Curdistão
iraquiano.
Nós
então partimos. E decidimos que, se não conseguíssemos encontrar Scorpion ali,
teríamos que desistir.
Mas
o contato de Rob conseguiu encontrá-lo. No início, ele estava muito desconfiado
de que, de alguma forma, o nosso plano fosse de capturá-lo e levá-lo de volta
para a Europa.
Seguiu-se
um fluxo de mensagens de texto, primeiramente através do contato de Rob e,
depois, com o próprio Rob. Scorpion disse que poderia nos encontrar, mas apenas
se ele escolhesse o local. Nós descartamos esta possibilidade, com receio do
cenário que ele pudesse armar para nós.
Foi
quando chegou uma mensagem de texto, perguntando simplesmente: "Onde vocês
estão?"
Respondemos
que estávamos a caminho de um shopping próximo. Scorpion nos disse para
encontrá-lo ali, em uma cafeteria no térreo.
E
foi então que, finalmente, nós o encontramos.
• 'Nunca
coloquei ninguém em um barco'
Barzan
Majeed parecia um rico jogador de golf. Ele estava elegantemente vestido, com
um jeans novo, uma camiseta azul-clara e um colete preto.
Quando
ele pôs as mãos sobre a mesa, observei que tinha as unhas feitas.
Ao
mesmo tempo, três homens se sentaram em uma mesa próxima. Imaginamos que fossem
seus seguranças.
Novamente,
ele negou ser o líder importante de uma organização criminosa. Ele disse que
outros membros da gangue tentaram incriminá-lo.
"Duas
pessoas, quando foram presas, disseram 'nós trabalhamos para ele'. Eles queriam
reduzir a sentença", defende-se ele.
Scorpion
também pareceu insatisfeito por saber que outros traficantes receberam
passaportes britânicos e conduziam seus negócios.
"Em
três dias, um deles mandou 170 ou 180 pessoas da Turquia para a Itália, ainda
com passaporte britânico!", ele conta. "Quero ir para outro país
fazer negócios. Não posso."
Quando
o pressionamos sobre sua responsabilidade pelas mortes dos migrantes, ele
repetiu o que havia dito ao telefone – que ele simplesmente pegava o dinheiro e
reservava os lugares.
Para
ele, o traficante é a pessoa que coloca as pessoas nos barcos e caminhões e as
transporta. "Nunca coloquei ninguém em um barco e nunca matei
ninguém."
Ao
término da conversa, Scorpion convidou Rob a conhecer a casa de câmbio onde ele
trabalhava em Sulaymaniyah.
O
escritório era pequeno. Havia algo escrito em árabe na janela e dois números de
telefone celular.
As
pessoas vão até lá para comprar passagens. Rob conta que, enquanto ele estava
lá, viu um homem carregando uma caixa cheia de dinheiro vivo.
Naquela
ocasião, Scorpion contou como ele entrou para o tráfico em 2016, quando
milhares de pessoas estavam se dirigindo à Europa.
"Ninguém
os forçou. Eles quiseram", contou ele. "Eles imploravam aos
traficantes, 'por favor, por favor, faça isso para nós'."
"Às
vezes, os traficantes dizem, 'pelo amor de Deus, vou ajudá-los'. E eles então
reclamam, eles dizem 'oh, isso, aquilo...' Não, isso não é verdade."
Scorpion
contou que, entre 2016 e 2019, ele foi um dos dois principais responsáveis
pelas operações na Bélgica e na França. Ele admitiu que milhões de dólares
passaram pelas suas mãos naquela época.
"Eu
meio que fazia coisas para eles", ele conta. "Dinheiro, local,
passageiros, traficantes... Eu estava em meio a todos eles."
Ele
negou que ainda estivesse envolvido no tráfico de pessoas, mas suas ações
pareciam contradizê-lo.
Scorpion
não percebeu, mas, enquanto ele rolava a tela do celular, Rob observou um
reflexo da tela na moldura brilhante de um quadro na parede atrás dele.
Rob
viu listas de números de passaportes. Ficamos sabendo mais tarde que os
traficantes enviariam essas listas para autoridades iraquianas. Eles receberiam
suborno para emitir vistos falsos, permitindo que os migrantes viajassem para a
Turquia.
Aquela
foi a última vez em que vimos Scorpion.
Em
todas as etapas da investigação, informamos nossas descobertas para as
autoridades do Reino Unido e da Europa.
A
procuradora pública belga Ann Lukowiak, envolvida na condenação de Scorpion,
acreditava que, um dia, ele viria a ser extraditado do Iraque.
"É
importante para nós sinalizar que você não pode fazer o que quiser",
afirma ela. "Algum dia, nós iremos prendê-lo."
Barzan
Majeed foi preso pouco tempo depois da publicação da reportagem. A procuradora
recebeu a notícia com satisfação.
"Finalmente
temos a chance de ver a justiça sendo feita neste caso, de fazer com que ele
confronte diretamente seus crimes e responda por eles", concluiu Lukowiak.
Fonte:
Por Sue Mitchell, da BBC News
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