quarta-feira, 19 de junho de 2024

Halley Margon: ‘Portas abertas para os neonazistas’

Em pouco menos de três semanas, um jovem conhecido como “mentiroso patológico, profundamente racista e misógino” formalizou um agrupamento para concorrer às eleições europeias do dia 9 passado, ao qual deu o nome de Se Acabó la Fiesta. Terminada a apuração, comemorava o sexto posto da lista dos mais votados, praticamente empatado com o Sumar da agora baqueada Yolanda Diaz, segunda vice-presidenta do governo espanhol. Havia arrebatado mais de 800 mil votos. Esse jovem propagador de maledicências sem nexo, a não ser com o da sua própria miséria mental, difusor de mensagens xenófobas e grosserias capazes de envergonhar o mais rude dos bolsonaros (trata-se de uma hipérbole, evidentemente), é um personagem mais ou menos conhecido do submundo da política espanhola. Chama-se Alvise Pérez e pertenceu ao praticamente extinto Ciudadanos (liberais) antes de migrar para o Vox e finalmente tornar-se franco-atirador. Nas primeiras horas pós-apuração, foi um dos destaques das mesas de debates nas TVs e mereceu manchetes nos jornais do dia seguinte. É provável que não seja mais que uma onda momentânea – dessas que eventualmente formam ou sobram de um grande tsunami. No quadro histórico da ultradireita europeia, poderia ser associado às tropas SA dos hitleristas, com as devidas vênias à inteligência e cultura desses. Volta e meia têm aparecido bandos assemelhados. Nas eleições gregas de 2016 houve um tal de Amanhecer Dourado que voou muito mais alto, alcançando o terceiro posto entre os partidos helenos antes de ser abatido, envolto em nebulosos processos criminais. Aqui na Espanha há quem diga que sua base eleitoral vem quase toda da que antes sustentava os liberais (Ciudadanos). Liberais ao cair da noite, neonazistas ao amanhecer. Faz todo sentido e não é de hoje. Desde pelo menos a Viena na virada do século XIX (ver Viena Fin-de-Siècle – Política e Cultura, Carl Schorske). Para além dessa base eleitoral, fenômenos tão persistentes quanto esses não poderiam existir sem um caldo de cultura ou sentimentos sociais bem enraizados na sociedade. Pode parecer especulativo e vago, mas o fato é que volta e meia eles emergem e ganham corpo nas formações políticas dos séculos XX e XXI. Tanto quanto esse misógino, racista e xenófobo, talvez por puro oportunismo (muitas vezes a política cobra a presença de uma boa junta de psicanalistas para melhorar a composição do quadro), seus similares de grande porte são parte do mesmo espetáculo.

Dentre as patacoadas desse boçal, o vídeo de uma entrevista (sim, há setores da mídia interessados em abrir espaço para o personagem) o mostra ameaçando mandar prender o presidente do governo espanhol: “Te vamos a meter em prisión”. Não eram necessárias maiores justificativas jurídicas, autoridade ou argumentações racionais de qualquer espécie. Bastava o show. Como indivíduo, Pérez é apenas um charlatão e oportunista. Mas arregimentou num curtíssimo espaço de tempo mais de 800 mil eleitores. Então, concluímos que canaliza quase um milhão de almas que, sejam quais forem as explicações, lhe ofertam seus mais obscuros desejos e fantasias como combustível e alento para aventuras políticas que ao final podem ser devastadoras para muito mais gente. Mas, ao contrário da marca Se Acabó la Fiesta e seu criador,  seria um erro considerar a ultradireita na Europa contemporânea como uma onda, mesmo que maligna e eventualmente ameaçadora, nem mesmo como uma onda grande, um tsunami. Porque do que se trata é de uma torrente profunda e de larguíssima duração que, como já foi lembrado aqui, apenas se viu momentaneamente inibida pela derrota militar do nazi-fascismo na II Guerra.

O crescimento eleitoral dos ultras foi ligeiramente abaixo do que anunciavam os jornais na semana que antecedeu a votação. É verdade que em seu conjunto essas organizações não chegaram ao limiar simbólico dos 25% dos eleitores como se chegou a prever, mas ficaram bem perto disso. Juntas, as duas formações da extrema direita, Conservadores e Reformistas Europeus Identidade e Democracia, passaram de 118 para 131 eurodeputados – a estes se somam os 15 eleitos pelo AfD da Alemanha, recém expulso do agrupamento do ID de Marine Le Pen por demonstrações explícitas de condescendência com as SS nazistas, e os 11 eleitos pelo Fidesz de Victor Orbán. Totalizam, portanto, 157 – 21,8% dos 720 eurodeputados que formam o Parlamento Europeu.

Vale ver também como foram os resultados em alguns dos principais países da UE, como Alemanha, França, Itália e Espanha. E aí deu praticamente na mosca o que apontavam as pesquisas (ver artigos anteriores). No país governado pelo social-democrata Scholz (em aliança com liberais e verdes), ganhou fácil a direita da presidenta da Comissão Europeia, com cravados 30% dos votos, secundada pelos ultras da AfD com pouco mais de 15% e o SPD ocupando apenas o terceiro posto, dois pontos percentuais abaixo. A França, como já sabemos todos, produziu uma das mais sedutoras manchetes pós-eleição: tentando não ser nocauteado após a retumbante surra aplicada pela agremiação da Le Pen, ainda na noite de domingo, o presidente francês anunciou a dissolução do parlamento e convocação de eleições para a primeira semana de julho. Com menos da metade dos votos obtidos pela feroz Marine Le Pen (31,4% x 14,6%), Macron foi literalmente jogado contra as cordas. Na Itália, da mesma forma, o que se viu foi o que as pesquisas previam, a vitória do agrupamento ultra de Giorgia Meloni com também quase um terço dos votos (28,76%). Mas, à diferença de Alemanha e França, na terceira maior economia da zona do euro, o segundo agrupamento mais votado, e muito próximo do partido da badalada Giorgia (ver antigo anterior), foi o Partido Democrático (PD), uma insólita fusão de ex-comunistas e ex-democratas cristãos, com 24% dos apoios. Finalmente, na Espanha, da mesma forma como na Alemanha, os vitoriosos foram os Populares, com 34%, só que aqui seguidos de perto pelo PSOE com 30%, e o Vox, bem mais atrás, com 9,6% (lembrando que parte do eleitor ultra preferiu depositar seu voto no ainda mais ultra Se Acabó a Fiesta). Os menos de 10% do Vox prova que o estrepitoso show de Javier Milei no comício de abertura da campanha ultra em Madrid pode até ter servido ao presidente argentino, mas não foi de grande ajuda para a prosperidade eleitoral do partido de Santiago Abascal.

No geral, o quadro ficou assim:

  • PPE 186 eurodeputados – ganhou 10 novas cadeiras
  • S&D 135 parlamentares – perdeu 4 cadeiras
  • Renew Europe (liberais) 79 – perderam 23 cadeiras
  • ECR (ultra) 73 representantes – ganhou 4 novas cadeiras
  • ID (ultra) 58 representantes – ganhou 9 cadeiras
  • Verdes 53 deputados – perderam 18 cadeiras
  • The Left 36 parlamentares – perdeu 1 cadeira

Assim como aos ultras há que somar, como vimos, os alemães do AfD e os húngaros do Fidesz, à esquerda haverá que se acrescer os seis novos representantes do alemão BSW Bündnis Sahra Wagenknecht (Aliança Sahra Wagenknecht) – entre outros.

E aqui aparece o que pode se constituir num pequeno respiro nesse panorama de puro horror. O recém-nascido partido de Sahra Wagenknecht foi o quarto mais votado da Alemanha, logo à frente dos liberais e dobrando o número de votos do Die Linke, que ajudou a criar e de onde saiu para fundar a agremiação que leva seu nome (o BSW conquistou 6,2% dos votos frente aos 2,7% do Die Linke).

O fato de que as pesquisas de intenção de voto tenham acertado com razoável precisão, pelo menos o resultado para as principais correntes (ver artigos anteriores), talvez possa indicar que o ânimo do eleitorado europeu atual pode ser lido cada vez com maior clareza. E, como já foi lembrado aqui, se há alguma coisa que parece unificar a tendência dessa gente, essa coisa é a questão nacional, o controle das fronteiras e da imigração, a proteção do mundo europeu, do ser europeu, da integridade da Europa. Outra palavra para integridade é pureza. Sim, já ouvimos isso antes e era dita com menos hipocrisia porque se dizia simplesmente da superioridade racial, não da Europa, mas dos germânicos e o significado é literalmente o mesmo.

Para finalizar, dois breves comentários pontuais sobre o que ainda há das forças de esquerda, daquela que se situaria à esquerda da social-democracia.

1) Além do já citado caso do BSW na Alemanha, houve algum crescimento da esquerda em outros países da UE, na   França com o partido de Mélenchon e nos países nórdicos, que ainda não se integraram (e não necessariamente se integrarão) ao grupo The Left.

2) Nada servirá dar as costas a problemas que, embora numa perspectiva fundamentalmente diferente, afetam as classes médias e trabalhadoras do continente. Muito do terreno que se está perdendo no campo político e ideológico para a ultradireita é pela incapacidade de apresentar respostas de esquerda a questões como a da imigração – uma das razões pelas quais o partido de Wagenknecht parece estar mostrando alguma capacidade de reação frente ao crescimento dos ultras é por se dispor a disputar com eles alternativas às atuais políticas migratórias. A verdade é que a própria Sahra, como informa um artigo recente, “preferiu abandonar o rótulo esquerda, termo que, segundo ela, está atualmente mais associado a questões de identidades de gênero… do que a um compromisso de redução da desigualdade social e que, por isso, afasta os eleitores em vez de os atrair”.

 

¨      'Europa vive crise existencial e extrema direita vende falsas soluções para o continente', diz Jamil Chade

onda de extrema direita que tomou o Parlamento Europeu após as eleições do último fim de semana (8 e 9 de junho) é um reflexo de uma "crise existencial" que assombra o continente desde a derrocada financeira de 2008, que atingiu todo o sistema econômico global. É o que explica o jornalista Jamil Chade, correspondente brasileiro em Genebra, na Suíça. 

"Nesse contexto de crise existencial, de perda de produtividade, de perda, inclusive, de protagonismo no mundo, o que vem acontecendo é que justamente vendedores de ilusão, charlatões, mentirosos vendem projetos que basicamente não trazem soluções, vendem ilusões", completa o jornalista. 

União Europeia, criada no pós-Segunda Guerra Mundial – primeiro como bloco econômico, em 1957, e depois como plataforma social e política – serviu como ferramenta para estabilizar os 27 países integrantes. A ideia de bem estar social e livre circulação trouxe um ambiente de unidade, que tem sido, aos poucos, fragmentado.

"Você vê um desmoronamento daquele estado de bem estar social, uma grande desilusão em relação aos partidos tradicionais. Essa desilusão, claro, é canalizada pela extrema direita, insisto, com falsas promessas, com receitas que obviamente não fazem qualquer tipo de sentido, mas que diante dessa crise, que é uma crise realmente muito profunda, acaba convencendo uma parcela importante da população europeia a seguir a esse caminho", aponta Chade.

No pleito, foram eleitos, por exemplo, partidos políticos com tendências nazistas, como o Alternativa para a Alemanha, e outros com inclinações anti-imigração e discursos xenófobos, como Reagrupamento Nacional, da francesa Marine le Pen. Figuras extremistas desses partidos têm sido colocadas em segundo plano, em uma espécie de suavização do discurso radical. A real intenção desses partidos, no entanto, "fica evidenciada ao ler seus programas políticos", conta Chade. 

"Os partidos de extrema direita notaram que se eles moderarem o tom, não o programa, parece que eles entram na normalidade do jogo democrático e, portanto, eles podem ser aceitos por todos", completa.

O jornalista Jamil Chade explica que "por muito tempo, os democratas diziam que iriam criar um cordão sanitário" para evitar que forças ultraconservadoras pudessem abalar a estabilidade do bloco. "Mas como é que você cria um cordão sanitário com 20% do parlamento? É muito complicado", aponta. 

Grande parte desses partidos também se coloca de forma contrária à união de países europeus em bloco. Segundo Chade, em um primeiro momento, não há riscos para a dissolução da União Europeia. "Há uma aliança de centro-direita com a centro-esquerda, e isso criaria então, uma coalizão, ou pelo menos um consenso de um bloco grande dentro do parlamento, afirmando que não há espaço para pensar uma ruptura ou desmonte". 

A tendência, explica o jornalista, é que políticas progressistas passem a ser questionadas dentro do Parlamento, e que para a própria sobrevivência da União Europeia, parlamentares façam "concessões" aos políticos de extrema direita. 

"Não vai começar pelo desmonte, ele começaria pela concessão da área de imigração, concessão da área de segurança, concessão da área soberana, enfim. Tem vários canais que você pode ver uma crescente concessão à extrema direita". 

 

Fonte: Terapia Política/Brasil de Fato

 

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