quarta-feira, 19 de junho de 2024

A investida reacionária e seus limites

A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (12), sem o registro de votantes, o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, proposto no dia 17 de maio pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares. Este projeto de lei equipara o aborto de uma gestação com mais de 22 semanas ao crime de homicídio.

Com a urgência aprovada, o projeto poderá ser votado diretamente no Plenário, sem a necessidade de passar previamente pelas comissões da Câmara. Ele é o resultado de uma investida do campo autodenominado conservador, porém melhor denominado como reacionário, uma vez que se apresenta nos cenários nacionais e internacionais sob a bandeira de restaurar os pilares da sociedade tradicional, baseada na família patriarca.

Neste sentido, é crucial destacar que, também no dia 17 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que impede o uso de uma técnica médica (assistolia fetal) para interromper gestações de mais de 22 semanas resultantes de estupro. A decisão provisória foi concedida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1141).

Em torno disso, compreendemos que no sistema patriarcal no qual estamos ainda inseridos, os corpos situados na base da pirâmide são frequentemente selecionados para serem sacrificados em nome de projetos de poder que não lhes pertencem. Este sistema perpetua desigualdades ao impor sacrifícios desproporcionais sobre cidadãos que carregam em seu ser os marcadores sociais da diferença, cujas necessidades e direitos são frequentemente ignorados.

O projeto de poder em questão envolve uma série de estratégias políticas calculadas para consolidar influência e testar limites. O avanço de iniciativas demandadas por bolsonaristas na Câmara tem sido interpretado por alguns como uma estratégia de Arthur Lira (PP-AL) para garantir o apoio do PL, que conta com 95 deputados, e fortalecer a escolha de seu sucessor na liderança da Câmara. Em vista disso, é possível entender que Lira está demonstrando seu poder e capacidade de controlar os rumos da Casa, mesmo sem o apoio do governo e do PT.

Além disso, essa ação também visa testar a posição do Presidente Lula sobre um possível veto ao projeto. Ao avançar rapidamente com uma proposta controversa, os proponentes buscam forçar o Presidente a se posicionar, o que pode ter implicações significativas para sua base de apoio e para a opinião pública. É importante destacar que o Palácio do Planalto tem enfrentado semanas consecutivas de derrotas em votações ideológicas que favorecem agendas bolsonaristas.

Neste contexto, Villazzón (2014) infere que atores religiosos, especialmente protestantes, mas também católicos, atuam em prol da defesa das pautas morais como uma reação aos avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Machado (2015) argumenta, neste sentido, que a política pode ser utilizada como instrumento pelos atores que mobilizam o cristianismo para realizar essa performance através de duas frentes: (a) defesa da família tradicional (patriarcal e heterosexual), em contraposição aos direitos LGBTQIAPN+ e à tentativa de transformação das relações de gênero; (b) defesa da vida, fortalecendo os discursos antiaborto.

Em torno disso, Luna e Owsiany (2019, p. 1) explicam que no Poder Legislativo “o debate sobre aborto ocorre em termos de disputas por reivindicações de direitos e no reconhecimento ou não de entes como sujeitos”. Contudo, como afirmado por Judith Butler (2017), parte do problema da vida política contemporânea é que nem todo mundo conta como sujeito.

A criminalização do aborto, e a tentativa de deslegitimar mesmo as exceções legais, é aqui analisada como uma forma de impedir que as mulheres exerçam plena autonomia sobre seus corpos (Biroli, 2014), reduzindo-as a instrumento de suporte para o desenvolvimento do feto, considerado e afirmado como pessoa (Luna; Owsiany, 2019). Isto é, o Estado, apoiado por segmentos da sociedade e grupos religiosos, coloca-se como detentor de certo controle e autoridade sobre a mulher.

Frente a isso, a estratégia do campo progressista tem se dividido em duas abordagens distintas. Fora do governo, a esquerda tenta impor sua própria versão e linguagem, centrada em direitos reprodutivos, direitos das minorias e questionamento da biologia, sem diálogo ou escuta, resultando em uma arrogância moral.

Essa abordagem se mostra ineficaz entre os pobres, para quem a linguagem de direitos não ressoa, levando à baixa efetividade dessa estratégia. No governo, a esquerda evita disputas culturais e foca exclusivamente na temática econômica, o que tem produzido resultados insatisfatórios e queda de popularidade. Essa situação é comparável ao campo da segurança pública, onde tanto a falta de uma abordagem abrangente quanto a ausência de uma narrativa inclusiva resultam em desempenho fraco e perda de apoio popular.

·        Tendências e prognósticos no contexto político brasileiro

Considerando essa conjuntura, Mattos e Paradis (2014, p. 108) afirmaram que “as nossas históricas forças conservadoras (especialmente as religiosas e políticas)” já haviam identificado que essas iniciativas estavam transformando as relações entre Estado brasileiro e sociedade civil. As autoras acertaram: mesmo com a reeleição de Dilma Rousseff em 2014, o governo petista perdia força em parte da sociedade civil, nos setores da burguesia e, especialmente, no campo político.

Dessa maneira, em agosto de 2016, nossa primeira Presidenta foi impeachmada. Em 2018, como ápice de um processo de reconfiguração de forças na sociedade civil que deu vazão aos sentimentos e grupos conservadores, Jair Bolsonaro chegou à presidência. Em 2022, a extrema direita é derrotada na disputa presidencial em uma eleição apertada. Não obstante a isso, quando se trata do campo legislativo nacional, não é possível dizer que houve uma derrota: o Congresso Nacional permanece dominado por partidos da direita e da extrema direita.

Tanto o Senado Federal como a Câmara dos Deputados continuam a ser presidido por seus expoentes. Diante desse panorama, torna-se evidente a essência segregatória da democracia brasileira (Sacchet, 2012), uma vez que a agenda parlamentar encontra-se submetida a conservadores que integram uma elite política hegemônica em termos de classe social, raça e gênero.

Em conclusão, o Supremo Tribunal Federal se apresenta como o último bastião diante de uma maioria conservadora, atuando como um poder contramajoritário, similar ao papel desempenhado por forças resistentes durante a Segunda Guerra Mundial – quando as constituições passaram a materializar a esperança de que um diploma jurídico assegurasse a todos uma vida digna, pacífica e livre. Em contraste, o parlamento se mostra vulnerável a maiorias iliberais, com o uso de expedientes como o requerimento de urgência reforçando o enfraquecimento do modelo liberal, onde o parlamento deveria ser o locus dos processos de formação de consenso.

Esse problema é agravado pelo fato de que muitos parlamentares concentram-se mais em alimentar suas próprias redes sociais, visando aumentar seu poderio de influência virtual, do que em legislar em benefício do público. Assim, as iniciativas no parlamento refletem mais projetos de poder individualizados e desvinculados da ideia de bem comum, comprometendo a integridade do processo democrático.

As reações de diferentes personalidades públicas e da sociedade, em manifestações realizadas em diferentes cidades do Brasil, podem ser o início de um processo importante, já inaugurado com o rechaço massivo à PEC 3/2022, relatada pelo Senador Flávio Bolsonaro, que visava privatizar as praias. Nele, a sociedade parece ter começado a desenhar os limites do que seria aceitável em relação ao avanço do conservadorismo.

Para além dos campos progressistas, nesses eventos, houve uma reação de integrantes do próprio campo conservador, a despeito do silêncio e mesmo do posicionamento defensivo de suas lideranças. Ao campo progressista, cabe investir nesse desencontro entre as manifestações de lideranças que falam em nome dos evangélicos, mas que na maioria das vezes não expressam os reais interesses de pessoas que são evangélicas, mas também são pessoas negras, são mães e definem suas preferências políticas a partir desses vários marcadores sociais.

 

¨      O punho erguido pelas mulheres. Por Luiz Marques

A ditadura civil-militar concentrou o poder e confrontou a teia de direitos trabalhistas e territoriais forjados na Revolução de 1930 que, com a liderança de Getúlio Vargas, abriu novos canais de poder: Ministério da Educação, Justiça do Trabalho, Previdência Social. O autoritarismo (1964-1985) coincidiu com a vinda das fábricas multinacionais, que compraram terras aqui. O preço da mão de obra obedeceu às condições desiguais entre classes e regiões; inferior ao pago em países “civilizados”. A depreciação dos salários deveu-se à suspensão do direito de greve e à perda de estabilidade, por tempo de serviço. A indenização por dispensa desceu a ladeira da precarização.

A Junta Militar aposentou Fernando Henrique Cardoso de modo compulsório. São conhecidos os males contra as liberdades. Surpreendente foi ver FHC, na Presidência da República, afirmar que se orgulhava de pôr fim à Era Vargas. Assim, entrelaçou o autoritarismo e o neoliberalismo, redivivos no impeachment “sem crime de responsabilidade”, para outro ataque ao trabalho na contrarreforma trabalhista e previdenciária e nas terceirizações.

Fernando Henrique Cardoso reprimiu a greve dos petroleiros sob pretexto de que os sindicalistas extrapolavam seu papel, acrescentando a bandeira “Não à Privatização da Petrobras” às demandas salariais. Para o “príncipe dos sociólogos”, aquela era uma pauta para o Congresso Nacional, pela delegação de poder à representação. Os comuns deviam ficar de fora.

A crença de que a sociedade é a plateia da luta de classes e não lhe cabe imiscuir em conflitos do governo com funcionários da estratégica estatal, estava embutida no desmonte do varguismo pela sanha privatista. Não obstante, na ditadura verde-oliva e na modernização tucana frações fora do restrito círculo governamental incidiam no processo decisório – comunicações, aristocracia rural, corporações industriais e financeiras. Nisto houve continuidade, não ruptura. A Independência feita por um colonizador, a Abolição por uma escravista, a República por um monarquista (ex-ministro do imperador) e a Redemocratização pelo filhote ditatorial reproduziram as mudanças, pelo alto.

A década do povo sujeito da história é a de 1980, quando em três momentos a soberania popular foi reafirmada: (a) na fundação do PT / Partido dos Trabalhadores em 10 de fevereiro de 1980, após ampla mobilização para cumprir os requisitos legais; (b) na fundação da CUT / Central Única dos Trabalhadores em 28 de agosto de 1983 e; (c) na promulgação da Constituição em 5 de outubro de 1988, alimentada pelas lutas massivas que influenciaram a formatação da Carta Magna cidadã. As deliberações de direitos chanceladas pelos constituintes, onde a esquerda era minoritária, garantiram o SUS / Sistema Único de Saúde universal e gratuito – o baluarte iluminista da luta por igualdade.

·        A revolução para completar

Agora, o salto no tempo. Em 2022, a cidadania derrotou a corrupção do Erário e as finanças, que esqueceu o déficit zero na campanha eleitoral. O ato fascista de 8 de janeiro edificou o dique à conversão em republiqueta. Esconjurou-se a volta da repressão policial-militar, e o sangue com a reação previsível das forças alinhadas aos ideais da civilização. As “elites” vira-latas em apoio de um retrocesso institucional lixam-se para as liberdades individuais, políticas ou sociais. Zelam pela liberdade do dinheiro, no más, disfarçada com eufemismos para enganar os bobos. As correntes do atraso, cuja produção mira o mercado externo, se recolheram então – por medo, não convencidas.

Na internet circula o CNPJ das marcas dispostas ao regime de exceção. Para a viralatice crônica, a democracia tem um reles valor tático, descartável na ótica da exploração. Não há compromissos republicano e democrático; nenhum sentimento de empatia com o sofrimento das comunidades de periferia; nenhum respeito às urnas eletrônicas (ou não); nenhum pejo com a vigarice miliciana da extrema direita. Constam apenas ódio e ressentimento na agenda das obscenidades bolsonaristas.

Mantém-se o diagnóstico de Florestan Fernandes, em A revolução burguesa no Brasil (1974). As mudanças ocorreram no patamar econômico. Na questão nacional, na questão fundiária e na questão democrática não se mexeu. Manteve-se a estrutura neocolonialista de dominação e subordinação. “Os véus que nos prendem ao passado recente ficaram encobrindo a realidade, embora algo tenha sido definitivamente desmascarado”, anota o ex-deputado petista no Prefácio à segunda edição. Parafraseando-o, podemos dizer que não está ao nosso alcance descrever uma sociedade ideal, mas está o de descrever o que na sociedade existente não serve de ideal para a existência humana.

A mídia corporativa se repete ao posicionar-se, em 2023, ainda contra a Nova Indústria do Brasil (NIB) – o programa de reindustrialização sustentável com 300 bilhões de financiamento – dada a adesão orgânica ao rentismo do Banco Central. Quer o país com as desigualdades e as hierarquias de raça e gênero, na posição subalterna de posto comercial das grandes potências.

A meta é um protetorado neocolonial com sinal de Wi-Fi. A era de modernização não exprime a evolução interna do mercado capitalista; carrega os indeléveis vícios do antigo sistema colonial. Em grande medida, ao revés, o governo Lula 3.0 oportuniza o avanço, se não na consecução, na direção da autêntica nação com participação social. A revolução brasileira segue incompleta. O desafio é completá-la.

·        A roda da história se move

A história surrealista da América Latina e do Brasil, porém, não cansa de nos surpreender para pior com o rebotalho da política nacional, que tornou Deus e a religião reféns de oportunistas, cuja fé espuma pelos cantos da boca toda perversidade da tradição misógina – para legislar contra o sexo feminino. É o que demonstra o estapafúrdio “PL dos estupradores”, que deveria ser enquadrado como um crime por trazer embutido a legalização de uma indisfarçável forma de discriminação.

O Projeto de Lei (canalha) está abrigado sob as asas do presidente da Câmara Federal, Arthur Lira, que as manifestações nas principais cidades brasileiras já identificaram e responsabilizaram pela ignomínia suprema, aprovada em “regime de urgência”. A extrema direita não é só uma ideologia monstruosa; é também uma patologia criminosa pelo que se depreende do fato. Propagadas pelo bolsonarismo, com o esgoto aberto, as pragas que vieram à tona estão muito longe de esmorecer.

A novidade, no caso, não é a reprodução do habitus autoritário e totalitário da sociedade patriarcal, performado pelas figuras bizarras que se arvoram donos das almas e dos ventres de inocentes. A boa notícia é a mobilização civilizatória imediata das mulheres na vanguarda da contraofensiva política e ideológica de rejeição da restauração reacionária, tão estúpida quanto hipócrita.

A soberba da irracionalidade dinamizou o espírito progressista para impedir a cruzada das bestas, dentro e fora dos gabinetes. Como no Grande sertão: veredas, “Cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma?”

A prontidão da resposta é a prova da consciência construída pelo movimento feminista, ao longo de décadas. O “Não” à barbárie é um ato de dignidade. O aborto, além de um grave problema de saúde pública, é um direito democrático inalienável independente das circunstâncias. Trata-se de um tema de foro íntimo que deve ser decidido com autonomia, e não por heteronomia.

Pastores evangélicos e/ou legisladores fundamentalistas, ao trazer para si a decisão, abusam das prerrogativas espirituais e/ou legais. A deliberação sobre o assunto é indissociável da liberdade individual. Os próceres do liberalismo clássico foram os primeiros a reconhecer que os indivíduos têm a “propriedade” de seu corpo; não as famílias, as Igrejas ou o Estado. Na democracia que queremos, tal não é negociável. 

O Maio de 1968 nasceu do protesto de estudantes contra a divisão de dormitórios por gênero, na Universidade de Nanterre, na França. Não é a primeira vez e nem será a última que a roda da história se move, tendo à frente o punho erguido pelas mulheres contra o ultraconservadorismo. Depois da globalização do capital, quiçá estejamos assistindo o alvorecer de uma globalização da rebeldia com o sujeito mais denegado, através dos séculos: bem-vindo o otimismo da vontade.

 

Fonte: Por Giulia Gouveia e Mayra Goulart, em A Terra é Redonda

 

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