Entulho,
lixões provisórios e medo de contaminação: depois de tragédia, Porto Alegre
ainda sofre com resíduos
Ao
retornar em 18 de maio ao seu apartamento de quarto andar no bairro Menino
Deus, em Porto Alegre, a profissional de educação física Cáren Cecília Baldo
sentiu-se em um “cenário de guerra”.
Treze
dias antes, ela tinha assistido pela janela a água espalhar-se pela vizinhança
— primeiro do meio da rua para a calçada, e em seguida para o interior do
prédio.
Agora,
ela via os vizinhos do térreo depositarem no meio-fio os pertences destruídos
pela inundação.
“No
domingo, aumentou muito a quantidade de entulho. Na segunda-feira, também”, diz
Cáren sobre os dias seguintes ao seu retorno ao apartamento.
Além
da lama e da sujeira, Cáren passou a observar no entorno do edifício montanhas
de lixo misturado a recordações das vítimas da enchente.
"A
gente passava e via fotos, árvores de Natal, brinquedos de crianças. Era bem
triste", descreve.
"Só
que o 'hoje à noite' nunca chegava", relata a moradora.
Com
pequenas diferenças, situações semelhantes à descrita pela professora no final
de maio ainda são visíveis nos 22,6% da área de Porto Alegre afetados pela
enchente.
Sem
plano de contingência para lidar com resíduos de catástrofes, a capital gaúcha
teve de apelar para soluções improvisadas e que atraem críticas em razão do
volume significativo de barro, lixo e entulho.
Passados
mais de 40 dias do início da inundação, porto-alegrenses continuam depositando
dejetos da enchente nas calçadas de bairros como o Centro Histórico, Cidade
Baixa e Menino Deus, que já estão drenados há semanas.
Em
outros, como Humaitá e Sarandi, na zona norte, a água ainda persiste em ruas
inteiras, com lixo acumulado em grandes proporções nas partes secas.
Finalmente, no Arquipélago, região da capital composta pelas ilhas do Delta do
Jacuí, a água ainda cobre a maior parte da área e não há luz.
Até
segunda-feira (10/6), a prefeitura havia recolhido 48,3 mil toneladas de
resíduos pós-enchente. A coleta mobiliza 800 garis divididos em 22 grupos, que
trabalham em três turnos de seis horas, incluindo sábados, domingos e feriados.
Na
terça-feira (11/6), por meio de contratação emergencial, mais 256 trabalhadores
de quatro empresas terceirizadas, divididos em oito equipes, foram acrescidos
ao contingente.
Além
de coleta de dejetos, os operários executam raspagem de lodo e terra e varrição
de vias. A Prefeitura enfatiza que a enchente não provocou em nenhum momento a
interrupção dos serviços de coleta, varrição e capina na parte da capital que
não foi inundada.
Nas
primeiras horas da enchente, a prefeitura decidiu que não colocaria pessoal e
maquinaria em risco em áreas alagadas. Nesses locais, a operação limpeza teria
início somente depois do fim da inundação.
Nas
regiões em que a água tinha escoado totalmente, a orientação foi de que os
moradores colocassem resíduos na calçada.
"Foi
a única alternativa que a gente teve de dar agilidade ao processo de
coleta", justifica o diretor-geral do Departamento Municipal de Limpeza
Urbana (DMLU), Carlos Alberto Hundertmarker.
Mas
um novo pico do volume de chuva, na quinta-feira (23/5), agravou a situação em
bairros como Menino Deus.
Foi
essa circunstância que levou a professora Cáren Baldo e seu marido, o
empresário Luis Guilherme Menezes, a deixar o apartamento do Menino Deus pela
segunda vez em menos de 20 dias — o casal saiu do imóvel novamente em 23 de
maio.
"A
gente não imaginava que a água ia subir do jeito que subiu. O nível atingido
antes em dois dias da segunda vez foi alcançado em duas horas", afirma
Cáren, que atualmente está morando novamente no imóvel.
O
repique da inundação nos dias 23 e 24 de maio provocou uma reviravolta na
orientação da prefeitura. Em uma postagem nas redes sociais, a administração
afirmou: “Até a estabilização do clima, pedimos que a população evite colocar o
lixo nas ruas nos próximos dias. Com a previsão de chuva e vento forte, é
importante evitar acúmulo de resíduos que possam ser levados pela água”.
Apesar
das orientações desencontradas, Hundertmarker afirma que o lixo nas ruas depois
do primeiro período de inundações não foi responsável pelo entupimento da rede.
"Visualmente
nós até vimos [lixo boiando em] algumas áreas, mas não impactou em nenhum
momento na obstrução de bocas de lobo", diz o diretor-geral do DMLU.
Outra
preocupação é com os bota-espera, como foram designados os lixões temporários
criados pela prefeitura em vários pontos da cidade.
A
medida teve por finalidade facilitar a logística de descarte, coleta e
armazenamento de inertes, como são definidos os rejeitos da enchente.
Na
escala de contaminação estabelecida pela Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT), os inertes ocupam uma posição intermediária (II B).
Não
são excessivamente tóxicos a ponto de ser classificados como perigosos (ao lado
do lixo hospitalar e de certos tipos de resíduos industriais) nem
suficientemente inofensivos para figurar ao lado dos não-inertes (entre os
quais encontra-se a maior parte do lixo doméstico).
No
Complexo Cultural do Porto Seco, local previsto com uma das futuras “cidades
temporárias” planejadas pelo governo do Estado para desabrigados, um
bota-espera foi alvo de uma representação do vereador Jonas Reis (PT)
apresentada ao Ministério Público do Estado.
A
estrutura, disse o parlamentar, “tornou o espaço público insalubre, sem nenhum
tipo de manta de proteção no solo, misturando lixo orgânico que as pessoas
dispensaram junto com dejetos da enchente que também estão contaminados”.
O
presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes),
Paulo Robinson Samuel, também fez críticas ao local.
"Vi
pessoas catando material no meio daquele monte de resíduos. Não podemos
esquecer que esses dejetos estão contaminados. Podem conter ratos, escorpiões e
baratas, além de urina de roedores. As pessoas podem pegar doenças. Além de
exalar gases, a partir de dois ou três dias os resíduos podem gerar chorume
capaz de contaminar o lençol freático", afirma.
No
sábado (8/6), um grupo de moradores do bairro Humaitá protestou contra a
presença de um bota-espera nas imediações da Arena do Grêmio. O prefeito
Sebastião Melo (MDB) foi até o bairro e garantiu que o lixo será removido para
outro local.
Hundertmarker
diz que os bota-espera foram fundamentais para dar segurança e agilidade à
coleta nos bairros feita por caminhões pequenos.
O
DMLU reconhece ter orientado a população a utilizar apenas cinco estruturas
(duas no Centro Histórico, uma delas desativada no início do mês de junho, uma
no bairro Serraria, outra no bairro Humaitá e outra no bairro São Geraldo).
Na
terça-feira (11/6), o órgão informou que o lixão do Porto Seco "ainda
(está) sendo encerrado". Não há previsão para término das operações dos
outros quatro.
O
diretor técnico da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Gabriel
Ritter, defende que os bota-espera foram fundamentais para retirar montanhas de
resíduos da cidade e devolver dignidade aos moradores.
"Na
região metropolitana, é praticamente a casa inteira das pessoas que está indo
para a rua", observa.
"À
medida que se diminui o lixo nas casas, será possível reduzir o número de
carretas de resíduos em circulação e fazer a completa recuperação do espaço
urbano.”
Nos
momentos iniciais da catástrofe, a prefeitura, os órgãos de fiscalização e
especialistas chegaram a um primeiro consenso: os restos oriundos das zonas
inundadas não poderiam fazer o caminho usual do lixo da capital.
Porto
Alegre produz diariamente, em condições normais, cerca de 1,1 mil toneladas de
resíduos, das quais cerca de 50 toneladas são de recicláveis.
Esses
últimos são destinados a unidades de triagem do DMLU. O material orgânico e
resultante da limpeza pública é levado à Estação de Transbordo da Lomba do
Pinheiro, na zona leste da cidade, de onde segue para o Aterro Sanitário de
Minas do Leão, distante 113 km da capital.
Uma
vez que aterros sanitários e unidades de triagem de recicláveis são impedidas
por lei de receber inertes, a prefeitura teve de contratar um aterro específico
para os resíduos decorrentes das enchentes.
"Tivemos
de fazer uma busca em aterros para inertes aqui no Estado e até mesmo fora.
Chegamos a cogitar levar esses resíduos para um município em Santa
Catarina", explica Hundertmarker.
A
escolha acabou recaindo sobre o Aterro São Judas Tadeu, no município de
Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre.
Pesou
a favor do estabelecimento a pequena distância da capital (29 quilômetros,
percorridos em cerca de uma hora pelas carretas) e o licenciamento pelos órgãos
ambientais.
O
contrato emergencial firmado pela prefeitura com o aterro prevê o descarte de
77 mil a 180 mil toneladas de inertes.
Fonte:
BBC News Brasil
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