quinta-feira, 20 de junho de 2024

Elaine Tavares: ‘Lá vem o cidadão-cliente’

Quando o famoso “neoliberalismo” estava em alta, lá pelo começo dos anos 1990, a ideia que circulou pelo país era a do cidadão-cliente, proposta por Bresser Pereira, então ministro do FHC. O lance era privatizar tudo e só teria direitos de cidadão aqueles que pudessem pagar por isso. O Chile aparecia como o exemplo perfeito. Lá, tudo estava privatizado e a mídia o mostrava o país como modelo do capitalismo. Não era novidade. A turma do estado mínimo seguia as regras do chamado Consenso de Washington, que orientava aos países da periferia encolher o Estado e abrir as portas para o dinheiro estrangeiro, aprofundando ainda mais a dependência. Foi quando o Fernando Henrique começou a liquidação do país. Durante seu governo foram privatizadas 165 estatais, entre elas a gigante Vale do Rio Doce vendida por míseros três bilhões quando rendia mais de dois bilhões por ano. Um entrega absurda.

Naqueles dias houve muita luta, mas, ajudado pela imprensa, o bonitinho da burguesia afirmava que a venda das estatais ajudaria o Brasil a pagar a dívida e a se desenvolver. E esse foi o discurso que venceu. As empresas foram entregues, só que a dívida aumentou. Passou de 153 bilhões para 850 bilhões, exatamente como os movimentos sociais apontavam. E durante o governo de FHC se desmantelaram empresas de telecomunicações, transporte e energia com a promessa de modernização. Obviamente que tudo isso passou para as mãos privadas e a modernização só foi possível para quem teve dinheiro para pagar. O tal do cidadão-cliente.

Com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder em 2003 a promessa era de que esse caminho iria se reverter. Mas não foi o que aconteceu. As privatizações continuaram. Começou com a privatização das estradas e, depois, Lula trouxe uma “inovação”, as chamadas parcerias público-privadas, que dava aos empresários a garantia de que, investindo no Estado, caso desse prejuízo, o Estado bancaria. O mundo perfeito para o setor privado. Nesse diapasão vieram as parcerias para ferrovias e aeroportos, setores estratégicos da nação.

Os anos se passaram, vieram os governos de Temer e Bolsonaro, e a privatização seguiu caminhando. Foram reaproveitadas as Organizações Sociais, que são empresas privadas travestidas de públicas, para administrar o serviço público. Tomaram conta de setores de assistência e de hospitais. Sob a aparência do público elas vão sugando os recursos e sucateando o serviço público a ponto de a população implorar por um serviço privado. Quando tudo está destruído um empresário surge para “salvar” o serviço. Assim vamos caminhando nessa novela de enredo ruim.

Agora, as tais Organizações Sociais estão sendo chamadas para gerir postos de saúde e até escolas. Tudo na mesma toada. Inocula-se a lógica privada e o serviço público deixa de ser universal. Em pouco tempo o que era público se esfacela e o privado assume, salvando a pátria. Em São Paulo já caminha a proposta de privatização das escolas públicas, para que “se modernizem”. Mas só na periferia, para “ajudar” os pobres. Esse filme já vimos. Elas até se modernizam, mas não serão para os filhos dos trabalhadores. Serão para os cidadãos-clientes. Tem dinheiro? Certo! Não tem? Está fora!

E assim o capitalismo avança, escondendo-se atrás de nomes pomposos como neoliberalismo, modernização, globalização, eficiência. Lobo em pele de cordeiro. Não deu certo no passado e não dará agora quando a falta de memória leva a população a novamente acreditar que é o serviço público o mal do país. Por aqui seguimos gritando e infelizmente sendo os arautos da desgraça. Apontamos os males que a privatização do serviço público traz, mas poucos escutam. Deixam-se levar pelo canto da sereia, até que sobrevenha a desgraça. E ela vem, sem lugar a dúvidas.

Neste novo ciclo de governo do PT esse processo se aprofunda e não vai demorar a que propostas mirabolantes de privatização ou do eufemismo parceria público-privadas voltem a dar as cartas. A universidade tem sido um exemplo. Ano a ano as instituições federais de ensino superior vêm perdendo verbas, sendo, com isso, destruídas. A coisa deve piorar até que a sociedade clame por privatização. Vejam que em 2015 os valores de custeio chegavam a mais de 300 bilhões, e agora, em 2024, mal passam dos 150 bilhões. É um processo de aniquilamento por dentro que se aprofunda. E essa onda também faz com que ninguém mais queira saber de trabalhar numa universidade. Os salários são baixos e as condições precárias. É a velha lógica do sucateamento.

Neste mês de junho se completarão três meses de greve dos trabalhadores nas universidades, sem que o governo atue em consequência. Lula ironiza os trabalhadores: “agora vocês podem reclamar”, e não oferece saída. Ou melhor, oferece sim, a saída é justamente a saída da universidade, para que ela se apequene ainda mais. Nos últimos anos, o número de trabalhadores que deixam as Instituições Federais de Ensino Superior em busca de melhores salários é grande. Poucos ainda querem fazer carreira na educação. A universidade parece desnecessária neste país que cada dia mais se torna um grande fazendão. Por aqui, só o agro é pop.

E assim vai se destruindo tudo o que é público. Buscando o cidadão-cliente. Então, quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E que se faça a luta.

 

•           Por que Tarcísio quer a escola-empresa em São Paulo?

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) autorizou a abertura de uma licitação para entregar à iniciativa privada a gestão de 33 escolas da rede pública do estado.

As empresas ficarão responsáveis pela construção dos prédios e, depois, pela manutenção da infraestrutura, pela gestão de limpeza, alimentação, vigilância e jardinagem e pela contratação de funcionários para essas áreas. Sob a responsabilidade das empresas também estarão as atividades diárias escolares envolvendo o apoio aos alunos que não conseguem acessar com autonomia as instalações escolares.

A parte pedagógica, que envolve a definição do material didático, bem como o planejamento escolar, continua sob o guarda-chuva da Secretaria de Educação (Seduc), bem como a contratação de professores, que se dá por meio de concurso público.

Sara Santana, educadora integrante da coordenação do Comitê SP da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que o caminho não será esse. Para ela, a privatização de tarefas de gestão interfere no programa pedagógico. “O que está em jogo no processo de privatização da gestão é a concepção de educação”, afirma.

“A privatização da gestão das escolas é uma questão econômica. São empresas em busca de mercado que veem nos serviços públicos uma forma de aumentarem seus lucros. Começam defendendo a ideia de que é só a gestão, e vão avançando”, disse em entrevista ao Brasil de Fato. 

A expectativa é que o leilão seja realizado até o final deste ano. No total, as 33 escolas abarcarão 35,1 mil alunos em tempo integral, que ficarão sob a responsabilidade das empresas privadas em um contrato de 25 anos, de acordo com o edital publicado na última terça-feira (11). 

Atualmente existem mais de cinco mil escolas estaduais em São Paulo. Dessas, 2.332 escolas já estão no Programa de Ensino Integral, o que corresponde a 44% da rede estadual.

A Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) acompanhará a concessão e fará a fiscalização dos serviços prestados. O órgão terá acesso a informações da administração, contabilidade e aos dados econômicos e financeiros da empresa.

<><> Confira a entrevista:

•           Quais são os impactos da privatização da gestão aprovada pelo governo Tarcísio?

O conceito de que as questões burocráticas e administrativas podem e devem ser separadas da questão pedagógica é incorreto. O papel do diretor é central para o sucesso da escola enquanto instituição, e a esse personagem são atribuídas as responsabilidades sobre a gestão do espaço educativo, que é intrinsecamente ligado à aprendizagem dos estudantes.

Obviamente que a privatização interferirá no projeto pedagógico das escolas, que objetiva o pleno desenvolvimento dos estudantes. A privatização direciona os recursos da escola pública para a iniciativa privada, querendo dar legitimidade ao argumento de que o fracasso da escola pública é um problema de gestão, sendo que não é. 

Falta investimento nas escolas estaduais de São Paulo, e a pandemia explicitou a falta de estrutura a que os estudantes estão expostos diariamente (falta de água potável, janelas, pias e equipamentos tecnológicos, por exemplo). 

A proposta do governador, com a falta de investimento adequado à educação estadual ao longo dos anos, traz a falsa ideia de que alterar o modelo de gestão educacional trará bons resultados. 

As desigualdades serão aprofundadas, pois o alto investimento em poucas unidades, num estado com alto índice de estudantes em vulnerabilidade, não resolve o problema que é social também. A concepção de que gestão educacional e aprendizagem são divisíveis compromete o direito à educação no que diz respeito à formação plena em todas as dimensões humanas. 

•           Medidas como essa apontam para uma tendência de intensificação de privatizações de serviços públicos? O quão grave é essa decisão?

Uma agenda de desmonte aos serviços públicos, que visa enfraquecer e sucatear os serviços, vide o que ocorre na Saúde, em que são transferidos recursos públicos para um modelo que atende um menor número de pessoas, excluindo os mais vulneráveis de um serviço que se concebe universal. Fora a questão de recursos humanos, em que os profissionais perdem a capacidade de mobilização e identidade. 

É o recrudescimento de um processo que vem sendo traçado desde 1995. Esse processo tem sido amplamente pesquisado e existem inúmeros trabalhos publicados, resultantes de pesquisas sérias, apontando interesses neoliberais claramente revelados.

Parece vago, e soa quase como uma forma de “enrolação” ao responder, o uso do termo “interesses neoliberais”. Mas o fato é que poucos entendem a gravidade e a dimensão desse termo. Por isso, voltamos a insistir na necessidade de discussão, de debate sérios sobre o assunto.

Essa decisão é grave à medida que os direitos se transformam em serviços. Os serviços públicos passam a ser mercadoria. É aí que mora o perigo. Serviços são pagos e só compra quem tiver dinheiro para comprar. Além disso, serviços públicos são geridos com princípios democráticos. 

A gestão democrática está sendo lentamente (não tão lentamente) substituída por decisões monocráticas. E tem mais: a desigualdade aumenta assustadoramente. Basta avaliar a privatização dos serviços e limpeza das escolas. Esse tema merece atenção.

•           A gente pode fazer alguma relação com as escolas cívico-militares, também aprovada em São Paulo? 

Sim, está tudo junto e misturado. O projeto ideológico tem o mesmo princípio. O conceito das escolas cívico-militares é que uma policial é mais eficaz que uma professora no exercício de ensinar, é o sucateamento da educação.  

Essas medidas visam o enfraquecimento do conhecimento científico, a implantação de ideologias conservadoras no ambiente escolar, a desqualificação dos profissionais especialistas da educação, e o fortalecimento da ideia de que há valores e interesses que se contrapõem às famílias, quando o objetivo da escola é o aprendizado das crianças.  

•           O projeto é semelhante ao de privatização do Paraná, que transfere a gestão de 200 escolas públicas estaduais para empresas?

Sim. Os estudantes são tratados como cobaias desses experimentos. O histórico das privatizações no Brasil fornece dados suficientes para que tais medidas não sejam implementadas.  

A proposta de grupos privados com expertise em gestão empresarial, grupos esses que nada ou pouco entendem do processo educativo, que passarão a executar tarefas que já são executadas por servidores públicos especialistas na área, com a premissa de otimizar a gestão das escolas, é um grande erro. A questão sempre será a apropriação do recurso financeiro da educação, daí a pressão para privatizar o que for possível.

 

Fonte: Correio da Cidania/Brasil de Fato

 

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