Elaine
Tavares: ‘Lá vem o cidadão-cliente’
Quando
o famoso “neoliberalismo” estava em alta, lá pelo começo dos anos 1990, a ideia
que circulou pelo país era a do cidadão-cliente, proposta por Bresser Pereira,
então ministro do FHC. O lance era privatizar tudo e só teria direitos de
cidadão aqueles que pudessem pagar por isso. O Chile aparecia como o exemplo
perfeito. Lá, tudo estava privatizado e a mídia o mostrava o país como modelo
do capitalismo. Não era novidade. A turma do estado mínimo seguia as regras do
chamado Consenso de Washington, que orientava aos países da periferia encolher
o Estado e abrir as portas para o dinheiro estrangeiro, aprofundando ainda mais
a dependência. Foi quando o Fernando Henrique começou a liquidação do país.
Durante seu governo foram privatizadas 165 estatais, entre elas a gigante Vale
do Rio Doce vendida por míseros três bilhões quando rendia mais de dois bilhões
por ano. Um entrega absurda.
Naqueles
dias houve muita luta, mas, ajudado pela imprensa, o bonitinho da burguesia
afirmava que a venda das estatais ajudaria o Brasil a pagar a dívida e a se
desenvolver. E esse foi o discurso que venceu. As empresas foram entregues, só
que a dívida aumentou. Passou de 153 bilhões para 850 bilhões, exatamente como
os movimentos sociais apontavam. E durante o governo de FHC se desmantelaram
empresas de telecomunicações, transporte e energia com a promessa de
modernização. Obviamente que tudo isso passou para as mãos privadas e a
modernização só foi possível para quem teve dinheiro para pagar. O tal do
cidadão-cliente.
Com
a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder em 2003 a promessa era de
que esse caminho iria se reverter. Mas não foi o que aconteceu. As
privatizações continuaram. Começou com a privatização das estradas e, depois,
Lula trouxe uma “inovação”, as chamadas parcerias público-privadas, que dava
aos empresários a garantia de que, investindo no Estado, caso desse prejuízo, o
Estado bancaria. O mundo perfeito para o setor privado. Nesse diapasão vieram
as parcerias para ferrovias e aeroportos, setores estratégicos da nação.
Os
anos se passaram, vieram os governos de Temer e Bolsonaro, e a privatização
seguiu caminhando. Foram reaproveitadas as Organizações Sociais, que são
empresas privadas travestidas de públicas, para administrar o serviço público.
Tomaram conta de setores de assistência e de hospitais. Sob a aparência do
público elas vão sugando os recursos e sucateando o serviço público a ponto de
a população implorar por um serviço privado. Quando tudo está destruído um
empresário surge para “salvar” o serviço. Assim vamos caminhando nessa novela
de enredo ruim.
Agora,
as tais Organizações Sociais estão sendo chamadas para gerir postos de saúde e
até escolas. Tudo na mesma toada. Inocula-se a lógica privada e o serviço
público deixa de ser universal. Em pouco tempo o que era público se esfacela e
o privado assume, salvando a pátria. Em São Paulo já caminha a proposta de
privatização das escolas públicas, para que “se modernizem”. Mas só na
periferia, para “ajudar” os pobres. Esse filme já vimos. Elas até se
modernizam, mas não serão para os filhos dos trabalhadores. Serão para os
cidadãos-clientes. Tem dinheiro? Certo! Não tem? Está fora!
E
assim o capitalismo avança, escondendo-se atrás de nomes pomposos como
neoliberalismo, modernização, globalização, eficiência. Lobo em pele de
cordeiro. Não deu certo no passado e não dará agora quando a falta de memória
leva a população a novamente acreditar que é o serviço público o mal do país.
Por aqui seguimos gritando e infelizmente sendo os arautos da desgraça.
Apontamos os males que a privatização do serviço público traz, mas poucos
escutam. Deixam-se levar pelo canto da sereia, até que sobrevenha a desgraça. E
ela vem, sem lugar a dúvidas.
Neste
novo ciclo de governo do PT esse processo se aprofunda e não vai demorar a que
propostas mirabolantes de privatização ou do eufemismo parceria
público-privadas voltem a dar as cartas. A universidade tem sido um exemplo.
Ano a ano as instituições federais de ensino superior vêm perdendo verbas,
sendo, com isso, destruídas. A coisa deve piorar até que a sociedade clame por
privatização. Vejam que em 2015 os valores de custeio chegavam a mais de 300
bilhões, e agora, em 2024, mal passam dos 150 bilhões. É um processo de
aniquilamento por dentro que se aprofunda. E essa onda também faz com que
ninguém mais queira saber de trabalhar numa universidade. Os salários são
baixos e as condições precárias. É a velha lógica do sucateamento.
Neste
mês de junho se completarão três meses de greve dos trabalhadores nas
universidades, sem que o governo atue em consequência. Lula ironiza os
trabalhadores: “agora vocês podem reclamar”, e não oferece saída. Ou melhor,
oferece sim, a saída é justamente a saída da universidade, para que ela se
apequene ainda mais. Nos últimos anos, o número de trabalhadores que deixam as
Instituições Federais de Ensino Superior em busca de melhores salários é
grande. Poucos ainda querem fazer carreira na educação. A universidade parece
desnecessária neste país que cada dia mais se torna um grande fazendão. Por
aqui, só o agro é pop.
E
assim vai se destruindo tudo o que é público. Buscando o cidadão-cliente.
Então, quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E que se faça a luta.
• Por que Tarcísio quer a
escola-empresa em São Paulo?
O
governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) autorizou a abertura de uma
licitação para entregar à iniciativa privada a gestão de 33 escolas da rede
pública do estado.
As
empresas ficarão responsáveis pela construção dos prédios e, depois, pela
manutenção da infraestrutura, pela gestão de limpeza, alimentação, vigilância e
jardinagem e pela contratação de funcionários para essas áreas. Sob a
responsabilidade das empresas também estarão as atividades diárias escolares
envolvendo o apoio aos alunos que não conseguem acessar com autonomia as
instalações escolares.
A
parte pedagógica, que envolve a definição do material didático, bem como o
planejamento escolar, continua sob o guarda-chuva da Secretaria de Educação
(Seduc), bem como a contratação de professores, que se dá por meio de concurso
público.
Sara
Santana, educadora integrante da coordenação do Comitê SP da Campanha Nacional
pelo Direito à Educação, afirma que o caminho não será esse. Para ela, a
privatização de tarefas de gestão interfere no programa pedagógico. “O que está
em jogo no processo de privatização da gestão é a concepção de educação”,
afirma.
“A
privatização da gestão das escolas é uma questão econômica. São empresas em
busca de mercado que veem nos serviços públicos uma forma de aumentarem seus
lucros. Começam defendendo a ideia de que é só a gestão, e vão avançando”,
disse em entrevista ao Brasil de Fato.
A
expectativa é que o leilão seja realizado até o final deste ano. No total, as
33 escolas abarcarão 35,1 mil alunos em tempo integral, que ficarão sob a
responsabilidade das empresas privadas em um contrato de 25 anos, de acordo com
o edital publicado na última terça-feira (11).
Atualmente
existem mais de cinco mil escolas estaduais em São Paulo. Dessas, 2.332 escolas
já estão no Programa de Ensino Integral, o que corresponde a 44% da rede
estadual.
A
Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp)
acompanhará a concessão e fará a fiscalização dos serviços prestados. O órgão
terá acesso a informações da administração, contabilidade e aos dados
econômicos e financeiros da empresa.
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Confira a entrevista:
• Quais são os impactos da privatização
da gestão aprovada pelo governo Tarcísio?
O
conceito de que as questões burocráticas e administrativas podem e devem ser
separadas da questão pedagógica é incorreto. O papel do diretor é central para
o sucesso da escola enquanto instituição, e a esse personagem são atribuídas as
responsabilidades sobre a gestão do espaço educativo, que é intrinsecamente
ligado à aprendizagem dos estudantes.
Obviamente
que a privatização interferirá no projeto pedagógico das escolas, que objetiva
o pleno desenvolvimento dos estudantes. A privatização direciona os recursos da
escola pública para a iniciativa privada, querendo dar legitimidade ao
argumento de que o fracasso da escola pública é um problema de gestão, sendo
que não é.
Falta
investimento nas escolas estaduais de São Paulo, e a pandemia explicitou a
falta de estrutura a que os estudantes estão expostos diariamente (falta de
água potável, janelas, pias e equipamentos tecnológicos, por exemplo).
A
proposta do governador, com a falta de investimento adequado à educação
estadual ao longo dos anos, traz a falsa ideia de que alterar o modelo de
gestão educacional trará bons resultados.
As
desigualdades serão aprofundadas, pois o alto investimento em poucas unidades,
num estado com alto índice de estudantes em vulnerabilidade, não resolve o
problema que é social também. A concepção de que gestão educacional e
aprendizagem são divisíveis compromete o direito à educação no que diz respeito
à formação plena em todas as dimensões humanas.
• Medidas como essa apontam para uma
tendência de intensificação de privatizações de serviços públicos? O quão grave
é essa decisão?
Uma
agenda de desmonte aos serviços públicos, que visa enfraquecer e sucatear os
serviços, vide o que ocorre na Saúde, em que são transferidos recursos públicos
para um modelo que atende um menor número de pessoas, excluindo os mais
vulneráveis de um serviço que se concebe universal. Fora a questão de recursos
humanos, em que os profissionais perdem a capacidade de mobilização e
identidade.
É o
recrudescimento de um processo que vem sendo traçado desde 1995. Esse processo
tem sido amplamente pesquisado e existem inúmeros trabalhos publicados,
resultantes de pesquisas sérias, apontando interesses neoliberais claramente
revelados.
Parece
vago, e soa quase como uma forma de “enrolação” ao responder, o uso do termo
“interesses neoliberais”. Mas o fato é que poucos entendem a gravidade e a
dimensão desse termo. Por isso, voltamos a insistir na necessidade de
discussão, de debate sérios sobre o assunto.
Essa
decisão é grave à medida que os direitos se transformam em serviços. Os
serviços públicos passam a ser mercadoria. É aí que mora o perigo. Serviços são
pagos e só compra quem tiver dinheiro para comprar. Além disso, serviços
públicos são geridos com princípios democráticos.
A
gestão democrática está sendo lentamente (não tão lentamente) substituída por
decisões monocráticas. E tem mais: a desigualdade aumenta assustadoramente.
Basta avaliar a privatização dos serviços e limpeza das escolas. Esse tema
merece atenção.
• A gente pode fazer alguma relação com
as escolas cívico-militares, também aprovada em São Paulo?
Sim,
está tudo junto e misturado. O projeto ideológico tem o mesmo princípio. O
conceito das escolas cívico-militares é que uma policial é mais eficaz que uma
professora no exercício de ensinar, é o sucateamento da educação.
Essas
medidas visam o enfraquecimento do conhecimento científico, a implantação de
ideologias conservadoras no ambiente escolar, a desqualificação dos
profissionais especialistas da educação, e o fortalecimento da ideia de que há
valores e interesses que se contrapõem às famílias, quando o objetivo da escola
é o aprendizado das crianças.
• O projeto é semelhante ao de
privatização do Paraná, que transfere a gestão de 200 escolas públicas
estaduais para empresas?
Sim.
Os estudantes são tratados como cobaias desses experimentos. O histórico das
privatizações no Brasil fornece dados suficientes para que tais medidas não
sejam implementadas.
A
proposta de grupos privados com expertise em gestão empresarial, grupos esses
que nada ou pouco entendem do processo educativo, que passarão a executar
tarefas que já são executadas por servidores públicos especialistas na área,
com a premissa de otimizar a gestão das escolas, é um grande erro. A questão
sempre será a apropriação do recurso financeiro da educação, daí a pressão para
privatizar o que for possível.
Fonte:
Correio da Cidania/Brasil de Fato
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