É preciso "empretecer" os espaços
de prestígio na sociedade
Ingressei no curso de
Letras na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) por meio do sistema de
cotas. Concorrer nessa modalidade sempre foi uma questão muito bem resolvida
para mim, pois compreendia que era uma questão de reparo histórico e que isso não
tirava o mérito das minhas conquistas. No entanto, ter consciência disso nunca
me isentou de passar por situações desconfortáveis nos espaços que ocupo.
Como pessoa negra em
um ambiente predominantemente branco, percebi que a representatividade importa
não apenas como uma questão simbólica, mas também como uma forma de construir
espaços seguros para que outras pessoas negras possam desenvolver suas potencialidades.
Encontrar pessoas negras em lugares de destaque não é somente uma questão de
representatividade, mas também de justiça social e inclusão.
Infelizmente, ainda há
um longo caminho a percorrer para tornar esses espaços mais inclusivos. Já
presenciei docentes afirmando que pessoas negras têm mais facilidade em lidar
com pessoas brancas devido ao histórico de racismo, além de universitários criticando
as cotas raciais, alegando que elas roubam vagas de outras pessoas. Essas
posturas evidenciam que nem sempre conseguimos fazer parte dos espaços que
ocupamos de forma plena. A sensação que tenho é de ser convidada para sentar à
mesa, mas sem ter o direito de falar.
Acredito que há uma
necessidade latente de "empretecer" os espaços de prestígio na
sociedade, para contarmos nossas histórias e nos reconhecermos como sujeitos
nesses locais. Dessa forma, não seremos mais meros objetos de estudo, mas sim
protagonistas de nossas histórias.
• Experiência profissional
No que diz respeito à
minha experiência profissional, comecei a procurar oportunidades para lecionar
ainda no terceiro semestre do curso, mesmo que fosse de forma voluntária. Minha
primeira experiência foi por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
à Docência (Pibid).
Como vim de escola
pública, voltar para esse espaço é uma experiência maravilhosa para mim. Sinto
que posso devolver aos estudantes toda a credibilidade, conhecimento e força de
vontade que um dia os meus professores incentivaram em mim. Porém também sinto
um grande desafio em relação à minha identidade racial. Muitas vezes, tenho
receio de como aquele espaço irá acolher e respeitar a minha negritude.
Acredito que o desafio
é ainda maior para mim, pois me vejo representada em cada jovem negro das
escolas públicas. Desse modo, busco refletir sobre como tornar a escola um
ambiente seguro, onde eles possam se desenvolver sem perder sua juventude,
enquanto lidam com as dificuldades impostas pela sociedade escravocrata em que
vivemos, aqui no Brasil.
• Escolas que trabalho
Gostaria de
compartilhar minhas experiências de trabalho em duas escolas diferentes, uma
pública e outra particular, e como elas me fizeram refletir sobre a minha
identidade racial e a forma como as pessoas me leem nesses espaços.
Na minha atuação na
escola pública, senti uma proximidade maior com os estudantes e percebi que
eles também se sentiam próximos de mim. Em um dia específico, auxiliei a
aplicação de uma prova, e um estudante me pediu ajuda para preencher o
formulário sobre sua cor, pois ele estava em dúvida se era negro ou branco.
Naquele momento, lembrei que só me reconheci como mulher negra aos 15 anos,
quando fui renovar meu RG e estava passando pela transição capilar. Essa
situação me fez refletir sobre como é importante ter representatividade e como
a falta dela pode afetar a autoimagem e a autoestima de crianças e jovens
negros.
Por outro lado, na
rede privada, eu tentei desenvolver atividades de integração com os alunos, mas
alguns não se interessavam em aprender mais sobre os conhecimentos que eu
poderia mobilizar com eles, para além do material didático. Isso gerou uma
relação distante entre nós.
Durante uma aula, um
aluno do 7º ano trouxe à tona o tema das cotas raciais, comentando que elas
diminuem o nível das universidades. Alguns alunos concordaram, afirmando que
não é necessário ter cotas, já que todos são iguais. Eu esperava que a
instituição tivesse mais consciência sobre esses assuntos e atuasse de forma
crítica com os alunos. É lamentável ver o desinteresse da escola em tratar
esses temas.
• Escolas precisam acolher negritude
Refletindo sobre as
experiências que vivenciei, percebi a importância da relação entre estudantes e
professores em ambientes escolares que valorizem a consciência e a
sensibilidade em relação a questões sociais e raciais.
Também notei que os
espaços que acolhem minha negritude me incentivam a desenvolver meu potencial
como educadora, enquanto aqueles em que não me sinto acolhida como educadora
negra me deixam desconfortável e não me ajudam a desafiar meu potencial. A afinidade
e abertura dos alunos comigo também refletem como eles me enxergam nesses
ambientes.
Na escola pública,
sinto que sou reconhecida como educadora negra, mas na escola particular sou
vista apenas como educadora, sem levar em conta minha identidade racial. Ser
uma educadora negra é parte de quem eu sou, e não ter essa parte de mim aceita
em um ambiente é frustrante.
Acredito que as
escolas devem desempenhar um papel fundamental em acolher e fortalecer
educadores e estudantes negros, pois por anos nossa identidade racial,
incluindo nossa língua, cultura e tradição, tem sido apagada de forma violenta.
Negar isso é uma forma de nos recolonizar diariamente. Meu sonho é que existam
mais espaços seguros para nós que resistimos todos os dias para sobreviver
nessa máquina escravocrata chamada Brasil.
• "Racismo recreativo é ódio sem
manchar imagem de brancos". Por Matheus Moreira
O termo "racismo
recreativo" ganhou notoriedade recentemente após o caso de duas tiktokers
que gravaram a si mesmas entregando bananas e macacos de pelúcia para crianças
negras. O caso, que aconteceu no Rio de Janeiro e veio à tona no fim de maio, é
investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
(Decradi) sob suspeita de racismo ou injúria racial.
Racismo recreativo é
tema de um dos livros de Adilson José Moreira, professor de direito da
Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em direito pela Universidade de
Harvard. O conceito, segundo Moreira, refere-se ao meio pelo qual a
discriminação racial se manifesta através do humor.
"O racismo também
se manifesta por meio de mensagens, de gestos, falas e atitudes que não são
abertamente racistas", destaca Moreira. Em entrevista à DW, pesquisador
fala sobre diferenças entre os conceitos que envolvem racismo, como funciona a
prática e qual seu impacto sobre em crianças e adultos negros.
LEIA A ENTREVISTA:
• O que é racismo recreativo?
Adilson José Moreira:
O racismo é um sistema de dominação social que tem dois propósitos
fundamentais: garantir que vantagens competitivas e respeitabilidade social
sejam atributos exclusivos de pessoas brancas.
Já o racismo
recreativo é um tipo de política cultural que tem como objetivo expressar
desprezo, ódio e condescendência por pessoas não brancas, mantendo, porém, uma
imagem positiva de pessoas brancas sob o argumento de que todas as formas de
humor são benignas. Legitimando, assim, a reprodução de hierarquias raciais por
meio da degradação moral de pessoas não brancas.
• No livro Racismo Recreativo, o senhor
cita o racismo aversivo como parte do racismo recreativo. Qual é a diferença
entre esses conceitos e como eles se comunicam?
A teoria do racismo
aversivo surgiu nos Estados Unidos para descrever como o processo de
socialização após o fim do sistema oficial de segregação continuou
influenciando a percepção de brancos em relação a negros. O que levou ao que
existe hoje [racismo aversivo]: pessoas brancas que dizem não ser racistas e
até lutam por igualdade racial, mas não têm negros em seus círculos sociais e,
na esfera privada, se relacionam apenas com pessoas brancas.
Embora essa teoria
tenha se desenvolvido nos EUA, aplica-se perfeitamente ao Brasil. Porque temos
no país a influência da ideologia da democracia racial [mito de que não há
discriminação no país devido à miscigenação].
O que está por trás do
racismo recreativo é o racismo aversivo que aparece, por exemplo, no
comportamento de uma pessoa que usa o humor racista de forma estratégica para
incomodar uma pessoa negra e, para não ser classificada como racista, usa
artifícios como dizer ter amigos ou familiares negros. Há, então, o racismo
aversivo pelo humor. O humor é uma forma de comunicação e, neste caso, uma
comunicação pelo desprezo, que por sua vez, revela ódio.
• Em discussões sobre racismo, não é
incomum ouvir o termo microagressão. O que são microagressões e como se
relacionam com o racismo recreativo?
Ainda nos EUA, nas
décadas de 60 e 70, houve uma tentativa de construção de um consenso sobre o
que era o racismo. Sendo o racismo incompatível com a democracia e com o fim
das leis de segregação, afirmava-se que o racismo tinha acabado.
Em 1972, reagindo a
essa ideia, um professor e psiquiatra americano escreveu um artigo de oito
páginas no qual desenvolvia o conceito de microagressões. Ele afirma que o fato
de termos eliminado o regime oficial de segregação não significa que a cultura que
legitimava esse regime tenha deixado de existir.
O racismo também se
manifesta por meio de mensagens, de gestos, falas e atitudes que não são
abertamente racistas e que são difíceis de caracterizar como discriminação
direta ou indireta, mas que, ainda assim, expressam desprezo e ausência de
reconhecimento de pessoas não brancas. Uma microagressão é, portanto, um ato
que expressa o desprezo racial, mas que não é suficientemente grave para
caracterizar crime.
• O senhor escreve que há subdivisões no
âmbito das microagressões. Quais seriam essas subdivisões?
Imagine que uma pessoa
negra, nascida na Alemanha, é questionada por uma pessoa branca sobre de onde
ela é. A resposta é "sou alemão". Então, a pessoa branca pergunta,
"sim, mas de onde você veio?". Isso é um microinsulto [um tipo de microagressão],
porque ser branco é o que é esperado como característica do povo alemão.
Portanto, se você é negro, só pode ser estrangeiro.
Já um microassalto,
podemos exemplificar com uma trombada de uma pessoa branca com uma negra na
rua. A pessoa branca não pede desculpas, mas teria se desculpado se tivesse
trombado com outra pessoa branca.
Agora imagine que uma
pessoa negra praticante de religiões de matriz africana tem os valores morais e
religiosos previstos na sua religião negados por uma pessoa cristã —
religiosidade europeia e imposta pelo homem branco ao mundo. Essa negação
indica que a crença daquela pessoa negra não tem valor e que o que interessa é
o que a religião cristã, do grupo dominante, tem a dizer. Isso é uma
microinvalidação.
Tudo isso revela que
aquilo está por trás do racismo recreativo é a preservação da supremacia
branca.
• Na última semana, viralizou a história
de uma tiktoker que filmava a entrega de bananas e macacos de pelúcia para
crianças negras. O caso reacendeu o debate sobre racismo recreativo. Quais são
os impactos dessas agressões em crianças e adultos negros?
O racismo é um fator
que produz estresse emocional com graves consequências na vida de pessoas
negras. Uma delas é a ansiedade. Vítimas de racismo podem sofrer de ansiedade
pela expectativa de que serão discriminadas e desrespeitadas, levando a um
estado de vigilância constante. O estresse emocional permanente produz
alterações no funcionamento do cérebro.
Crianças negras
começam a sofrer com o estresse emocional já na infância quando outras as
chamam de macaco. Como essas violências acontecem ao longo da vida, isso causa
o que pesquisas recentes chamam de trauma emocional, que corresponde a um
processo histórico de discriminação que impacta pessoas negras biologicamente.
Quando analisamos o
Brasil, vemos que as pessoas que mais cometem suicídio são homens negros, por
exemplo. O racismo é uma experiência permanente de estresse emocional, e a
classe social não protege as pessoas. Mesmo uma pessoa negra e rica sofre com
esse estresse, porque haverá um embate direto na disputa de oportunidades
sociais com pessoas brancas que, historicamente, ocupam espaços de prestígio.
• Como lidar com o racismo recreativo? É
possível responsabilizar quem pratica a discriminação com esse termo?
Em primeiro lugar, o
problema é o sistema judiciário não aplicar a lei de maneira adequada,
Precisamos educar os membros do sistema judiciário brasileiro, assim como
policiais, delegados e promotores, que são majoritariamente brancos.
A outra coisa
importante é o debate público e na mídia. Os mesmos meios de comunicação que
reproduzem o racismo recreativo devem cumprir a sua função constitucionalmente
prevista e utilizar o seu poder para dizer às pessoas que o uso do humor
racista é incompatível com uma sociedade comprometida com a democracia.
Fonte: Por Louise
Adélia Gama da Silva, para Deutsche Welle
Nenhum comentário:
Postar um comentário